quarta-feira, 30 de julho de 2014

O anjo da guarda suicida

Como dizem por aí, a vida nos reserva imprevistos.
Mas quando Heitor saiu pela janela do escritório e se equilibrou no parapeito da do 15º andar da fachada, era como se tivesse colocado suas funções motoras no automático.
Seguia apenas a última página de um script mórbido há muito pensado, mas escrito de improviso na última meia hora.
Nesse intervalo de tempo, Heitor foi da esperança ao desespero ao ouvir sua ex-mulher ao telefone.
Da esperança do "oi, tudo bem?" ao desespero do "conheci o grande amor da minha vida".
Mas, peraí, não era assim que ela o chamava há 9 anos, quando eles se conheceram?
No entanto, a frivolidade da alcunha "grande amor da minha vida" não era o que mais incomodava.
O que o incomodava era não se incomodar com isso.
Não havia desintoxicação para o vício de amar incondicionalmente Alice.
Era uma droga tão forte essa mulher, que se houvesse clínica de reabilitação para ela, demoraria uma vida para receber alta.
Por isso ele estava ali, dando passinhos cuidadosos sobre o parapeito, para o lado e de costas para a parede , procurando o melhor local para o salto da morte.
Mas eis que encontra uma janela aberta pelo caminho e presencia uma cena tão bizarra quanto a de quem o visse no contraplano: uma executiva solitária, sentada à sua mesa, brincando de roleta-russa.
A princípio ele imaginou mesmo uma brincadeira, mas sua expectativa foi revertida quando a mulher levantou os olhos contra o espelho, e neles Heitor viu o mesmo tom de desamor que se acostumou a identificar nos seus.
Seu instinto de sobrevivência, que há pouco o havia abandonado, alojou-se de novo em seu corpo para dar o primeiro passo para dentro do apartamento da mulher, que a fez sobressaltar num grito abafado:
- Ai!!
- Calma, eu sou quero ajudar, só ajudar.
Mulher aponta a arma para Heitor:
- Sai, sai daqui!!
- Calma, eu vi o que você estava tentando fazer, quero ajudar.
- É um assalto? Ah, não, foi ELE né? Mandou me matar, é isso?
- Quem é ELE?
- Larga a arma!!
- Mas eu não tenho arma, olha (levantando e tirando de dentro da casa) Não sei quem é você e não conheço ELE, seja quem for.
- Quem é você? O que fazia lá fora?
- Olha, é difícil explicar, mas se você abaixar a arma, eu posso...
A mulher abaixa a arma e se acalma.
- Meu nome é Heitor, trabalho num escritório de advocacia desse prédio. Queria te pedir desculpa pela forma como eu invadi sua privacidade.
- Você quase me matou do coração, isso sim.
- Bom, é que eu imaginei que você...
- Que eu ia me matar? Ah, sim, tava ensaiando. Mas a arma está descarregada. Agora que você não é mais uma ameaça, posso te contar.
- Desculpe, achei que era tudo verdade e quis impedir essa besteira.
- Tá, tá desculpado. Só não fica invadindo apartamento por aí porque é perigoso. Pra pessoa e pra você.
- Não vou fazer mais isso.
- Você não me parece um limpador de vidraças. Tava fazendo o que lá fora?
- Pois é, (disfarçando) o dia tava tão bonito...
- Ah, sem piadinhas, desembucha logo.
- Hã?
- Cara, também tô passando por isso.
- Isso o que?
- Teu momento difícil, pô. Acha que não saquei?
- O que?
- Olha pra mim! Eu sei o que é uma dor de cotovelo!!! Não viu que eu estava ensaiando me livrar dela com um tiro?
Só tô avaliando se é suficiente.
- O que é suficiente?
- Tirar minha própria vida. Não sei se vai machucá-lo como eu preciso. E pra você, é suficiente?
- Não pensei em vingança, estou viciado nela e essa crise de abstinência tá me matando. Droga.
- Paixão das bravas?
- Amor da minha vida. Mas a cagada foi minha.
- A sempre diz que é a nossa cagada. Mas essa é a desculpa que damos para o imponderável. A gente tem que entender que um dia o outro desencana, é só isso.
- Não, eu fui muito negligente, ela tava pedindo socorro faz muito tempo.
- Homem, o comodista de sempre, né? Os homens sempre merecem o que lhe acontecem, mas não acho que seja o seu caso. Assim, olhando de fora.
- É uma longa história, não sei se quero te contar isso agora.
- Bom, agora que você me impediu de me matar, temos tempo.
- Você não ia se matar, a arma nem tava carregada.
- Você também não.
- Como você pode saber?
- Ora, no primeiro pretexto você desistiu, né?
- Não desisti ainda, a janela tá ali, aberta.
- Então se joga, ué?
- Você quer que eu me jogue?
- Ah, pára, vai. Não vem com essa.
- Pode ser que você não fosse só um pretexto.
- Olha só, do suicídio à cantada em questão de minutos. Sua terapeuta ficaria orgulhosa.
- Nunca fiz terapia na vida. Acho um desperdício de tempo e dinheiro.
- Bom, mas voltemos à cantada. Como é que eu estava com uma arma na cabeça? Sexy?
- Pô, eu desisti de me matar pra te salvar e você fica de brincadeira?
- Eu já te falei, você não ia se matar.
- Como pode ter tanta certeza?
- Eu sei o que é se tentar se matar.
- Só porque faz roleta russa com a arma descarregada?
- Não, olha aqui.
Ela mostra os pulsos com cicatrizes de corte.
- Tá vendo, isso sim é a morte à sua espreita.
- Quando foi isso?
- Há uns 6 anos.
- Dor de cotovelo?
- Não,foi o maior amor da minha vida.
- Quem era ele?
- Tinha 10 anos.
- Nossa... sinto muito.
- Uma vida ceifada por um carro desgovernado, um filho da puta de um motorista bêbado.
- ...
- Eu sei o que significa a expressão "ferida que não fecha". É exatamente esse o sentimento.
- Então o cara era só um pretexto.
- Nem isso. Se eu me decidisse me matar, era pra me juntar de novo ao meu bebê. Nenhum cretino mereceria isso de mim.
- Entendo.
- Então, quer falar sobre você e ela?
- Não, não quero.
- Pode falar, a minha tristeza não desmerece a sua.
- Não, a minha tristeza não faz sombra à sua. Independente disso, eu não quero falar do meu problema.
- Eu também não quero falar do meu. Falemos de que, então?
- Por hoje é só, eu já vou indo.
Heitor já passava uma perna pela janela, quando ela o interrompe.
- Ei, ei, aonde você vai?
- Voltar ao meu escritório.
- Tá louco? Use a porta.
- Só se você me prometer que toma uma cerveja comigo?
- Aí fora? Nem pensar.
- Não, to falando do Neco's. Atravessando a rua.
- Tá, então volta.
- Ok.
Heitor desce da janela e volta para dentro do apartamento. Ele abre a porta para ela e os dois saem, fechando a porta atrás deles.

FIM





segunda-feira, 21 de julho de 2014

Carta a um velho escritor

Já reparou que todas as pessoas com, digamos, um pouco mais da meia-idade, se parecem?
Não me refiro ao proliferar de cabelos brancos e rugas, ou aos primeiros dentes falsos alugando seus espaços na boca.
É do temperamento que falo.
Existe um lugar comum entre pessoas de uma certa faixa etária, compreendida entre o final da juventude e o começo da velhice.
Esse lugar é o do desalento pelo fim dos anos dourados e o porvir das dificuldades físicas.
É quando sentimos que o terreno fértil de sonhos de antes se torna relutante em brotar novas idéias.
Tudo passa a ter um gostinho de releitura de vida, de flashback de filme obscuro.
A verdade é que se fica mais exigente, fica mais difícil encontrar algo que faça jus ao surrado termo reinvenção.
Com a idade, algumas características de personalidade como auto-crítica e inflexibilidade, tomam um caminho irreversível de crescimento.
É necessário um esforço de auto-ilusão para se continuar ambicioso.
Além de alcançar uma alta auto-estima, capaz de fazer a pessoa se apaixonar de novo por si mesma, por esse novo ser que é uma soma dos seus novos projetos.
Então, que tipo de personalidade seria capaz de fazer jus à expressão "a vida começa aos 40?".
Seria aquele tipo otimista por natureza, desde que se conhece por gente?
É bem provável, porque se na meia-idade se inicia a decrepitude física, e nessa se inclui a atrofia da confiança, então somente alguém capaz de encontrar dentro de si o elixir da juventude poderia empreender uma mudança drástica de trajetória.
Chamar de crise de meia-idade me parece uma simplificação.
Não se trata apenas do desalento com os seus fracassos, mas também com o enfado com a mecanização da vida.
Você quer se apaixonar por uma projeção em alta definição de si mesmo, encarar sua verdade de peito aberto e sair de cara lavada na tela da vida.
Isso é mais do que lutar pela sobrevivência.
É querer se agarrar desesperadamente à ponta do cipó que o destino faz passar na sua cara, sem saber quantas chances ainda se oferecerão.
Não é uma promessa do sucesso que não se alcançou.
É a possibilidade de um êxito pessoal onde você é o principal membro da comissão julgadora, o único capaz de dar a chancela pela qual se esperou a vida inteira.
Por isso quero escrever e dirigir.
Não é uma homenagem à vida.
É só coerência comigo.

sexta-feira, 4 de julho de 2014

O michê da terceira idade

Jurandir saiu da Câmara dos Deputados exultante.
Seu projeto de lei, que estabelece aposentadoria para michês, tinha passado em primeira instância.
Pela primeira vez na vida ele se sentia útil.
Não que achasse inglório vender sexo, do contrário não estaria lutando pelos direitos de uma categoria que não tinha regulamentação, muito menos carteirinha do INSS.
Justamente lutar pelos direitos de alguém em sua condição, isso era inédito.
Até então, sua baixa auto-estima o impedira até de muitas vezes se defender fisicamente.
Agora, como autor de um projeto de lei polêmico, que suscitou um acalorado debate envolvendo setores conservadores e liberais da sociedade, Jurandir precisava impedir que sua vaidade vulnerável tirasse o foco de seu objetivo.
Por anos ele sofreu batendo ponto na boca do lixo, atendendo a clientes de todos os tipos, desde adolescentes virgens a abastados chefes de família não assumidos.
Seu sonho era ser primeiro bailarino do municipal, ideal que perseguiu até ser enganado por um ex-bailarino sodomita, que tinha um cargo burocrático no teatro e se passou por caça-talentos para atraí-lo e violentá-lo.
Até esse episódio, suas experiências homosexuais tinham se resumido a uns "amassos" com amiguinhos de infância, cuja memória fora prontamente reprimida por uma educação que beirava a militar.
Mas embora sua iniciação no mundo gay tivesse beirado ao trauma, ao menos Jurandir se livrou do peso da vida falsa, e mesmo sobrevivendo de prostituição, acabou se encontrando.
Os dias - ou melhor, as noites - trabalhando nos arredores do Trianon lhe rendiam, além da sobrevivência, um punhado de amizades e a carteirinha de sócio de um mundo que aos olhos dos outros era bizarro, mas aos seus, bastante aprazível.
Naquelas poucas quadras que circundavam o parque, Jurandir se sentia apenas mais um, um camelô sexual de seu próprio corpo, livre para negociar seu produto como bem queria.
No seu auge podia escolher os clientes, e tinha preferência pelos mais jovens, sarados e endinheirado, que podiam proporcionar um pouco de conforto nas poucas horas juntos.
Já mais tarde, no crepúsculo da carreira, não podia mais se dar ao luxo de escolher clientes, quando não implorava a algum jovem mais requisitado para fazerem programas em dupla e dividirem o cachê artístico.
Foi nessa fase que ele começou a pensar em sua retirada.
Não queria acabar como muitos michês que não souberam fazer a transição para a derradeira etapa da vida, e acabaram ficando por ali mesmo, agora na mendicância.
Resolvou comprar a briga dos michês, se tornar um porta-voz não de uma profissão não regulamentada, mas de um ser humano invisível.
Afinal qual posição ocupa numa sociedade preconceituosa o homosexual prostituto?
O de duplo enjeitado, no mínimo.
Esse preconceito o repugnava ainda mais do que ele ao mais radical membro da TFP.
Mas não via a aprovação de sua lei como uma vingança, um revide de um tapa na cara.
No máximo uma vaidade, pois antes de tudo Jurandir era um pragmático.
Queria garantir o seu próprio leitinho, o da criança que ele ainda se julgava aos 62 anos.
Talvez posar de herói até para seus inimigos do Trianon, reação compreensível naquela fauna bizarra.
Por tantos motivos, não era de se esperar outra reação de Jurandir senão acompanhar a última votação do projeto de Lei no auditório do Senado, acompanhado dos amigos do Trianon e militantes de uma penca de entidades LGBT.
Foi quando os ecos da vitória se fizeram ouvir em todo o Planalto e vimos Jurandir sendo carregado em triunfo para fora do templo do poder, que vimos o quão efêmeros podem ser os sonhos.
Uma dúzia de Skin Heads, mais próximos de seus genéricos baratos, se atiraram contra o grupo que carregava Jurandir em êxtase, tombando e afundando seu líder em uma poça de sangue escuro, um adorno à arquitetura do Senado que Niemeyer não criaria nem em seus mais terrível pesadelo.
Jurandir foi carregado novamente pelos seus pares, agora como o mártir de um gueto, o gueto dentro do maior gueto de todos, um amontoado chamado Brasil.