Como dizem por aí, a vida nos reserva imprevistos.
Mas quando Heitor saiu pela janela do escritório e se equilibrou no parapeito da do 15º andar da fachada, era como se tivesse colocado suas funções motoras no automático.
Seguia apenas a última página de um script mórbido há muito pensado, mas escrito de improviso na última meia hora.
Nesse intervalo de tempo, Heitor foi da esperança ao desespero ao ouvir sua ex-mulher ao telefone.
Da esperança do "oi, tudo bem?" ao desespero do "conheci o grande amor da minha vida".
Mas, peraí, não era assim que ela o chamava há 9 anos, quando eles se conheceram?
No entanto, a frivolidade da alcunha "grande amor da minha vida" não era o que mais incomodava.
O que o incomodava era não se incomodar com isso.
Não havia desintoxicação para o vício de amar incondicionalmente Alice.
Era uma droga tão forte essa mulher, que se houvesse clínica de reabilitação para ela, demoraria uma vida para receber alta.
Por isso ele estava ali, dando passinhos cuidadosos sobre o parapeito, para o lado e de costas para a parede , procurando o melhor local para o salto da morte.
Mas eis que encontra uma janela aberta pelo caminho e presencia uma cena tão bizarra quanto a de quem o visse no contraplano: uma executiva solitária, sentada à sua mesa, brincando de roleta-russa.
A princípio ele imaginou mesmo uma brincadeira, mas sua expectativa foi revertida quando a mulher levantou os olhos contra o espelho, e neles Heitor viu o mesmo tom de desamor que se acostumou a identificar nos seus.
Seu instinto de sobrevivência, que há pouco o havia abandonado, alojou-se de novo em seu corpo para dar o primeiro passo para dentro do apartamento da mulher, que a fez sobressaltar num grito abafado:
- Ai!!
- Calma, eu sou quero ajudar, só ajudar.
Mulher aponta a arma para Heitor:
- Sai, sai daqui!!
- Calma, eu vi o que você estava tentando fazer, quero ajudar.
- É um assalto? Ah, não, foi ELE né? Mandou me matar, é isso?
- Quem é ELE?
- Larga a arma!!
- Mas eu não tenho arma, olha (levantando e tirando de dentro da casa) Não sei quem é você e não conheço ELE, seja quem for.
- Quem é você? O que fazia lá fora?
- Olha, é difícil explicar, mas se você abaixar a arma, eu posso...
A mulher abaixa a arma e se acalma.
- Meu nome é Heitor, trabalho num escritório de advocacia desse prédio. Queria te pedir desculpa pela forma como eu invadi sua privacidade.
- Você quase me matou do coração, isso sim.
- Bom, é que eu imaginei que você...
- Que eu ia me matar? Ah, sim, tava ensaiando. Mas a arma está descarregada. Agora que você não é mais uma ameaça, posso te contar.
- Desculpe, achei que era tudo verdade e quis impedir essa besteira.
- Tá, tá desculpado. Só não fica invadindo apartamento por aí porque é perigoso. Pra pessoa e pra você.
- Não vou fazer mais isso.
- Você não me parece um limpador de vidraças. Tava fazendo o que lá fora?
- Pois é, (disfarçando) o dia tava tão bonito...
- Ah, sem piadinhas, desembucha logo.
- Hã?
- Cara, também tô passando por isso.
- Isso o que?
- Teu momento difícil, pô. Acha que não saquei?
- O que?
- Olha pra mim! Eu sei o que é uma dor de cotovelo!!! Não viu que eu estava ensaiando me livrar dela com um tiro?
Só tô avaliando se é suficiente.
- O que é suficiente?
- Tirar minha própria vida. Não sei se vai machucá-lo como eu preciso. E pra você, é suficiente?
- Não pensei em vingança, estou viciado nela e essa crise de abstinência tá me matando. Droga.
- Paixão das bravas?
- Amor da minha vida. Mas a cagada foi minha.
- A sempre diz que é a nossa cagada. Mas essa é a desculpa que damos para o imponderável. A gente tem que entender que um dia o outro desencana, é só isso.
- Não, eu fui muito negligente, ela tava pedindo socorro faz muito tempo.
- Homem, o comodista de sempre, né? Os homens sempre merecem o que lhe acontecem, mas não acho que seja o seu caso. Assim, olhando de fora.
- É uma longa história, não sei se quero te contar isso agora.
- Bom, agora que você me impediu de me matar, temos tempo.
- Você não ia se matar, a arma nem tava carregada.
- Você também não.
- Como você pode saber?
- Ora, no primeiro pretexto você desistiu, né?
- Não desisti ainda, a janela tá ali, aberta.
- Então se joga, ué?
- Você quer que eu me jogue?
- Ah, pára, vai. Não vem com essa.
- Pode ser que você não fosse só um pretexto.
- Olha só, do suicídio à cantada em questão de minutos. Sua terapeuta ficaria orgulhosa.
- Nunca fiz terapia na vida. Acho um desperdício de tempo e dinheiro.
- Bom, mas voltemos à cantada. Como é que eu estava com uma arma na cabeça? Sexy?
- Pô, eu desisti de me matar pra te salvar e você fica de brincadeira?
- Eu já te falei, você não ia se matar.
- Como pode ter tanta certeza?
- Eu sei o que é se tentar se matar.
- Só porque faz roleta russa com a arma descarregada?
- Não, olha aqui.
Ela mostra os pulsos com cicatrizes de corte.
- Tá vendo, isso sim é a morte à sua espreita.
- Quando foi isso?
- Há uns 6 anos.
- Dor de cotovelo?
- Não,foi o maior amor da minha vida.
- Quem era ele?
- Tinha 10 anos.
- Nossa... sinto muito.
- Uma vida ceifada por um carro desgovernado, um filho da puta de um motorista bêbado.
- ...
- Eu sei o que significa a expressão "ferida que não fecha". É exatamente esse o sentimento.
- Então o cara era só um pretexto.
- Nem isso. Se eu me decidisse me matar, era pra me juntar de novo ao meu bebê. Nenhum cretino mereceria isso de mim.
- Entendo.
- Então, quer falar sobre você e ela?
- Não, não quero.
- Pode falar, a minha tristeza não desmerece a sua.
- Não, a minha tristeza não faz sombra à sua. Independente disso, eu não quero falar do meu problema.
- Eu também não quero falar do meu. Falemos de que, então?
- Por hoje é só, eu já vou indo.
Heitor já passava uma perna pela janela, quando ela o interrompe.
- Ei, ei, aonde você vai?
- Voltar ao meu escritório.
- Tá louco? Use a porta.
- Só se você me prometer que toma uma cerveja comigo?
- Aí fora? Nem pensar.
- Não, to falando do Neco's. Atravessando a rua.
- Tá, então volta.
- Ok.
Heitor desce da janela e volta para dentro do apartamento. Ele abre a porta para ela e os dois saem, fechando a porta atrás deles.
FIM
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