terça-feira, 26 de agosto de 2014

A zen-criminalidade

Não que fosse um psicopata.
Josimar apenas desconhecia situações críticas em sua vida, passava incólume por elas.
Era,por assim dizer, uma pessoa zen.
O que era contraditório com sua função principal, um ladrão.
Acontece que Josimar não se via como tal.
Se auto nomeava um cidadão comum que tinha o furto como seu meio de vida.
Os carros dos outros sendo o escritório móvel onde despachava todos os dias.
Deles roubava apenas o que lhe garantisse as duas refeições principais, mais o café.
O som, o estepe, rodas de liga leve, além dos valores deixados lá dentro por descuido, como um relógio, bolsas caras, material esportivo.
Disso tudo se desfazia rapidamente, pegando alguns trocados de volta.
Mas o sustento não era a única motivação dos seus delitos.
Josimar, como adepto da meditação e esoterismo, adorava quando encontrava objetos dessa, digamos, linha mística dentro dos carros.
Fazia do pára-brisa a vitrine de seu shopping zen, não resistindo à tentação de amuletos, incensos e objetos afins.
Numa dessas incursões, foi flagrado pela dona do carro quando saía portando o objeto do furto: um mat de yoga.
Rendido pela arma da mulher, que era escrevente da polícia, Josimar transpareceu calma ao ser revistado.
Portava apenas um pente e não era de revólver.
Isso acalmou a mulher, que nem sequer o algemou.
Ela sabia que haviam objetos de valor em lugares fáceis do carro, como o porta-luvas, e ao checar que continuavam ali, ficou intrigada pela pouca ambição do meliante.
Verdade que o mat de yoga era precioso para ela, o modelo mais confortável dos que tinha experimentado, pinçado como última peça de uma promoção.
Mas a escrivã nem imaginava que ladrões soubessem o que era um mat, nem tampouco vissem qualquer valor ou função em um.
Portanto, ela mesmo se encarregou de ordenar que Josimar entrasse no banco do passageiro, e a acompanhasse para "averiguações".
- Anda, entra no carro.
Sendo empurrado para dentro, Josimar reclama:
- Sem violência, por favor.
- Cala boca ou te arrebento.
- Por que você está alterada?
A escrivã desfere uma coronhada no topo da cabeça de Josimar, que reclama:
- Ai, ai, que é isso? Você me machucou.
- Falei pra ficar calado.
- Ok, mas sou contra essa violência gratuita.
- Peraí. Você acaba de furtar meu carro e vem me dizer que é contra a violência?
- Não ando armado. E meu teto de violência em delitos é o furto, sem atentar contra a integridade física de ninguém.
- Não pense que com a sua eloquência você vai me convencer de que não é um criminoso, você acabou de arrombar meu carro para levar um mat de yoga!!!
- Vejo que a yoga não está surtindo efeito para você.
- Não me lembro de algum princípio da yoga que defenda o furto.
- Ok, é uma fraqueza minha, que tenho trabalhado em meditação. Tenho compulsão por produtos da linha mística/esotérica.
- Vai ter um tempão na prisão para trabalhar isso.
- Prisão? Pelo mero furto de um mat?
- Furto do carro de uma PO-LI-CI-AL.
- Ah, bom, pensei que você era uma civil brincando de bang-bang. Pelo menos isso.
- Você atentou contra a polícia, agora vai pagar por isso.
- Tem certeza de que não quer negociar? Podemos achar um solução de meio-termo, um caminho do meio de comum acordo.
- Cala a boca, eu não tô aqui pra negociar nada. Você é um criminoso e eu tô te levando pra cadeia.
- Por causa do furto de um mat?
- Sim, senhor.
- Só por curiosidade, que linha você pratica? Hatha, Ashtanga, Swasthya, Ayengar ?
- Hatha.
- Eu também, não acredito em artifícios nem modismo. Sou yoga de raiz.
- Pois é, Hatha é a linha pura, evoca nossa essência em seu âmago, sem intermediários.
- Com certeza, já tive aulas de quase todas essas pseudo-correntes da yoga e nenhuma chegou nem perto dos resultados do Hatha.
- Que resultados? Você é um criminoso.
- Criminoso-zen, com muito orgulho.
- Mas de que adianta pregar o zen e espalhar a violência?
- O que você chama de violência é só minha subsistência. E ao furtar, eu ajudo pessoas a se desvincular da matéria. Por exemplo, quantas pessoas irão repor coisas como CDs, massageador de assento e aquele Garfield com ventosa nas patas, se forem furtadas?
- Bom, nisso você tem razão. Mas no meu caso eu iria ter que repor meu mat e talvez não achasse um tão confortável quanto esse.
- Mudando de assunto, eu vou ser preso mesmo?
- Sim, você foi pego em flagrante.
- Mas eu preciso continuar com a meditação. E tenho dificuldade para meditar no chão frio da cela.
- E eu com isso?
- Posso ficar com o seu mat?


domingo, 24 de agosto de 2014

O segredo revelado

Joaquim foi a fundo na desconfiança de sua própria sanidade.
Procurou médicos, psiquiatras e até monges para comprovar que não estava imaginando coisas.
De todos recebeu um diagnóstico negativo em qualquer suspeita de demência, esquizofrenia ou a mínima tendência à alucinação.
Portanto estava convencido de que os últimos acontecimentos não provinham de manifestações de um inconsciente liberto.
Inclusive porque não era afeito a nenhum tipo de substância alucinógena. Não fumava e não bebia também, restringindo seus vícios a sexo e uma coleção de baralhos de tarô.
Três situações de tentativa de assassinato acometeram Joaquim nos últimos seis meses, que ele interpretou como premeditadas.
Não entraremos em detalhes sobre como ocorreram.
Preferimos dar ênfase ao que Joaquim suspeita como sua motivação: a descoberta sobre sua ex-namorada, Vanessa, morta em condições muito misteriosas. Mas também não vem ao caso elucidá-las.
O fato é que durante seu relacionamento de 2 anos, Vanessa, que era 25 anos mais jovem que Joaquim, apresentou um comportamento muito semelhante a Ana Maria, ex-mulher do nosso protagonista.
Foram tantas as coincidências, tantas lembranças do antigo relacionamento de Joaquim, que ele começou a desconfiar que as duas eram a mesma pessoa.
A princípio, guardou essas constatações para si mesmo, mas a confluência de similaridades entre as duas mulheres o levou a um estado que beirou a insanidade. Daí a procura por vários especialistas que malograram explicar qualquer coisa.
No dia em que conheceu Vanessa, Joaquim foi involuntariamente atraído pelo mesmo charme de sua ex-esposa: o jeito de andar, de jogar o cabelo, de piscar o olho ao falar.
Foi uma constatação fria e calculista, pois embora sentisse falta de Ana Maria, não estava mais enamorado da ex-mulher a ponto de enxergar tudo isso em seu novo alvo de cobiça.
Em grupos diferentes naquele bar, eles trocaram olhares insinuantes e não foi difícil "marcar um encontro" junto ao balcão, onde se apresentaram e com uma breve amostra de seu poder sedutor, Joaquim logo arrancou risos e o telefone de Vanessa.
A paixão fulminante aflorou logo no primeiro encontro, e um mês depois ele já abria espaço em seu armário para as badulaques dela.
O estranhamento veio com o tempo, quando além de seu comportamento, Vanessa relatou fatos do passado que Joaquim lembrou que observara em sua ex-esposa ou mesmo tinha compartilhado com ela.
A mesma data de aniversário, a mesma cicatriz no ombro por causa de um acidente doméstico, uma temporada no exterior nos mesmos país e cidade, o nome do primeiro cão de estimação, tudo isso e mais uma série de peculiaridades em comum unia aquelas vidas separadas por gerações e que nunca coexistiram.
O que no início deixou Joaquim curioso, aos poucos foi evoluindo para um encantamento, até terminar em franca obsessão.
Não demorou para Joaquim estar convicto de que Ana Maria e Vanessa eram a mesma pessoa.
Reencarnação, coexistênca em dimensões paralelas, para Joaquim não importava como chamariam isso, apenas que ele era testemunha única de um fenômeno natural.
Esteve a ponto de compartilhar o segredo com Ivone, sua ex-sogra afastada de sua convivência.
Mas decidiu guardar para si, pois a senilidade da mulher potencializada por seu envolvimento emocional de nada ajudaria a elucidar o caso. Além do que, envolver testemunhas nesse caso "esotérico" poderia expor sua reputação de renomado pesquisador.
Para Joaquim, ter Vanessa como confidente de sua experiência já supria sua carência de um interlocutor para debater o que lhe acontecia.
Mesmo que a possibilidade de abrigar a alma de outra pessoa passasse ao largo de um temperamento descompromissadamente jovial.
Até que um fato tirou Joaquim e Vanessa de seu "laboratório" para aterrissar em terreno mais sério.
Foi no dia em que Joaquim, andando sozinho pela rua, foi arremessado no meio do asfalto com violência, fazendo um carro frear seco e por um triz não enviando ele para o plano espiritual, onde pelo menos elucidaria o mistério.
Nas suas contas, Joaquim sofreria mais dois "atentados", primeiro num vazamento de gás do aquecedor de sua casa e depois num quase sequestro, onde conseguiu escapar escalando o muro de uma casa.
Estava convencido de que era o castigo por ter descoberto o "segredo da reencarnação de Ana Maria em Vanessa".
E não via como escapar, porque decerto era alvo de gente muito grande, se é que isso se tratava de obra de seres humanos.
Passou a medir seus movimentos, só saindo de casa quando extremamente necessário, se valendo da mobilidade do emprego como free-lancer de jornalista.
Sua facilidade com a escrita também contribuiu para escrever um diário, que considerava seu testamento caso fosse capturado.
Joaquim só não esperava que esse caso fosse elucidado tão rápido, como também foi surpreendente e ao mesmo tempo decepcionante o seu desfecho.
Um dia, ao vasculhar um baú da despensa, na tentativa de achar um antigo álbum de fotografias, Joaquim descobriu uma brochura amarelada entre livros antigos de Ana Maria: seu diário secreto.
O que lhe chamou a atenção de imediato foi um marcador de livro atravessado ao meio, que notou ser recente, pois continha a propaganda de um lançamento editorial deste ano.
O diário estava sendo ou tinha sido lido por alguém, e como as suspeitas recaíam sobre Vanessa, preferiu não removê-lo do lugar onde encontrou, guardando isso para um segundo momento, em que estivesse só em casa.
Num final de semana em que Vanessa partiu sozinha para a casa dos pais, Joaquim pegou alguns acepipes na geladeira e se refestelou com o diário em sua poltrona preferida.
Seria uma longa volta ao passado, sobre a qual sua alma se debruçaria bem mais que um final de semana.
Demoraram poucas páginas para ele comprovar o que já era evidente: Vanessa mimetizava o comportamento de Ana Maria.
Não apenas da rotina do convívio de Ana e Joaquim, mas também todos os aspectos de sua personalidade, visão de mundo, opiniões, suas aflições, esperanças.
Qualquer linha do diário era dissecada para ser reescrita no script da personagem de Vanessa.
Num insight Joaquim percebeu como a festiva Vanessa era tão distante da introspectiva cover de Ana Maria.
Essa discrepância só não tinha levantado maiores suspeitas porque seu relacionamento com a falsa Vanessa não completara ainda seis meses.
Isso explicava porque ele ainda não tinha se enfastiado da moça: Vanessa era Ana Maria, de quem Joaquim ainda guardava uma harmonia de convívio que não encontrara em nenhuma outra mulher, se é que isso não poderia ser chamado de amor.
Ao final de leitura, Joaquim ficou com o sentimento dividido entre a compulsão de desmascarar a farsa e a compaixão pela autora da mesma, o que se explicava também porque não desejava excluir a Vanessa verdadeira de sua vida.
Assim, Joaquim optou por ocultar o diário e fingir sua descoberta.
Vanessa desconfiaria de um sumiço intencional, mas teria tempo de reverter seu erro e incorporar de novo a personalidade inquieta e espevitada que conquistou Joaquim, mas da qual desconfiou que pudesse segurá-lo.


quarta-feira, 13 de agosto de 2014

O escritor errante

Ernesto tinha consciência de sua falta de talento, mas não via isso como entrave a uma carreira de escritor.
Ainda que as evidências não eram nem um pouco promissoras: contava com alguns artigos publicados em jornalecos de bairro, um blogue jogado às moscas e uma carreira medianamente sucedida de publicitário.
Sua esperança provinha da crença de que os modelos não nascem prontos e valia a pena lapidar sua vocação às custas de horas debruçadas sobre o pobre material de sua vida, já que ao se dedicar tanto à escrita se esquecia de sua fonte primordial, as experiências.
Não obstante Ernesto ainda não vislumbrasse uma nesga de sucesso, algo que comprovasse sua premonição de se tornar um grande escritor, era agradecido ao que tinha alcançado na arte de ordenar letras.
Mas já contava 30 anos de estrada, por isso quando aquele material jornalístico chegara em suas mãos, reagiu com o sentimento misto entre euforia e medo.
Há tempos um amigo, um ex-policial afastado da narcóticos, investigava o caso do assassinato de uma bela garota de classe média baixa, executada por um traficante.
A narcóticos arquivara o caso, já que recebera a cota da milícia para abafá-lo, por conta de um graúdo "cala-boca" enviado pelos comparsas do traficante.
Mas o ex-policial infiltrado na favela conseguira as provas por intermédio de um bandidinho alcaguete.
E antes que ambos fossem parar no "microondas", o material do ex-policial lhe foi entregue num encontro arquitetado pelo próprio.
O ex-policial ouvira falar de Ernesto por um amigo em comum, e este último promoveu um encontro às escuras entre os dois, para selarem um pacto de publicação do material caso pegassem o investigador.
Não se passaram dois meses para que a "autorização" chegasse.
Ernesto já falara em segredo com uns 5 editores, que recusaram pela alta periculosidade do material, uma bomba-relógio para todos os possíveis envolvidos.
A história traria à tona mortes de inocentes, policiais e jovens, tudo na conta do traficante, que até então, por uma postura low profile e nem um pouco midiática, reinava incólume no pequeno morro de sua sede.
O traficante, conhecido por Tio Leo, ignorava a existência dessas provas, e a princípio Ernesto não corria risco de vida.
O dilema em que se encontrava, entre a glória póstuma e a mediocridade perene, angustiava Ernesto já há algum tempo.
Ernesto tinha tempo para se decidir, mas sabia que o potencial de seu livro era proporcional ao ineditismo de sua denúncia.
Temia ser furado por algum veículo, pois seu material já circulara por vários editores, alguns sabidamente inescrupulosos.
Mas uma ligação telefônica foi o suficiente para transmutar seu temor em euforia, o contato de um editor obscuro, porém em sintonia com sua concepção da obra que enfim começava a germinar.
Marcou um encontro com Steve, era esse seu codinome, num boteco perto da casa daquele.
Ao entrar no recinto teve dificuldades para identificar seu interlocutor, cuja voz grave sugeria uma figura amendrotadora, desmentida com um sujeito mignon de constituição frágil, dessas reversões de expectativa típicas dos filmes.
O papo foi franco e rápido, ficando acertado que caberia 60% dos lucros ao editor, que iria bancar toda a produção e divulgação do livro.
Ernesto teria 40 dias para revisar todo o material, deixando uma versão em inglês engatilhada, já que o editor apostava nesse título para livrá-lo do prejuízo acumulado em 3 anos de publicações malsucedidas.
Quando o material começou a rodar na gráfica, um galpão clandestino alugado por Steve para resguardar o sigilo, Ernesto passou a frequentar o local diariamente, como se fosse a sala de espera da maternidade.
Era com orgulho de progenitor que via as páginas sendo paridas das rotativas, atividade que tomava boas horas de seu dia, divididas entre reuniões com Steve e sua costumeira ronda noturna na Praça Roosevelt.
Pois foi com o sentimento de uma mãe abortada que Ernesto um belo dia se deparou com o galpão totalmente vazio, nenhum sinal de que aquilo abrigara uma gráfica improvisada.
A essa reação estupefata se somou a traição de Steve, descoberta quando este surgiu ao lado de Tio Leo, revelando que negociara seu projeto de best-seller com o meliante por um preço mais compensador.
Ernesto foi colocado de joelhos e, apesar de sua execução instantânea, ainda conseguiu ouvir o estampido do tiro que penetrou seu crânio sem resistência.
Tiro que seria seguido por uma saraivada que mergulhou o malandro Steve em sua própria piscina de sangue.
Os dois corpos foram encontrados alguns dias depois, e jamais se chegou nem perto de revelar a razão de seu aniquilamento.

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Amores relâmpagos

O que motiva as pessoas a assistir e gostar de melodramas é o fato desse gênero preencher o seu vazio existencial com requintes de horário nobre.
Olavo se encaixava a esse perfil, sua rotina casa-trabalho-padaria-casa reservava o período entre 9 e 10 da noite para exibições maçantes de seu folhetim preferido, a que ele acompanhava com seu cérebro no "automático".
Não era casado, não tinha filhos, nem constava em seu currículo uma paixão tórrida que pudesse um dia relatar em algum romance açucarado de banca de jornal.
Era, por assim dizer, um cidadão-mediano-espectador-do-SBT, sem grandes vitórias ou derrotas, nem grandes aspirações futuras além do bilhar com os amigos na noite de sexta-feira.
Para pessoas com essa folha corrida, é de se presumir que o inesperado possa causar danos psíquicos ou no mínimo reações instintivas de desenlace imprevisível.
Era o que se imaginaria de Olavo quando este encostou o carro na mesma cabine do Banco 24 Horas, nas 19h05 da sexta-feira, antes do excitante embate que travaria com Pingo, Duarte e Queixada sobre o feltro verde da mesa de bilhar.
A abordagem ensaiada de duas assaltantes na casa dos 20 anos - bem apessoadas, na visão de esguelha de Olavo - que o obrigou a servir de motorista de seu próprio carro durante as horas que durou o sequestro, poderia ter sido o ponto de inflexão negativo de sua vida.
Ao contrário, foi o momento mais agradavelmente memorável de sua árida existência.
Como coadjuvante de clichê masculino, em êxtase Olavo se deixou dominar pelas vontades de suas "donas".
Cada novo saque era um considerável desfalque em suas minguadas economias, mas o que deveria deprimir em Olavo tinha efeito excitante.
E nem ele sabia de onde vinha essa situação.
Decerto do misto de sentimentos que uma arma apontada para si e a intimidade inédita com duas gatas poderiam provocar num tipo como ele.
Lá pelas tantas, já saciadas e com seus bolsos cheios, as assaltantes deram abertura ao tímido Olavo:
- Ô, rapaz, o gato comeu sua língua?
- ...
- Pode falar, ninguém aqui vai te machucar.
- É, fez tudo direitinho. Qual o seu nome?
- O-Olavo.
- Olavo? Nome mais coxinha.
- Haha, verdade.
- Ei, rapaz, ia fazer o que hoje à noite?
- Sinuca.
- Que? Sinuca numa sexta à noite?
- Maluco...
- A gente tem uma proposta melhor pra você.
- Hã?
- Isso mesmo. Um programa muito melhor que esse seu aí da sinuca.
- Quer ir pra uma festinha da pesada?
- Festa? M-mas...
- Lá no Morro da Cocada. É do Brito, o dono da boca.
- Fica tranquilo, a gente faz a sua segurança. Simbora?
- Vamos lá.
A resposta veemente da até então hesitante vítima surpreendeu as duas garotas, que deram de ombros e começaram a indicar o caminho para Olavo.
Entrar no barraco da festa foi para Olavo como transpor um portal psicológico. Um ritual de transição para uma vida até então na desfrutada e que começava mostrar suas garras.
Claro que Olavo sentiu medo com os olhares de todos aqueles bandidos, de quem se poderia esperar qualquer reação.
Mas com o aval de Brito, que simpatizou imediatamente com Olavo, aquele clima pesado se desanuviou completamente.
Olavo estava em extase, aceitou todas as drogas que lhe ofereceram e inebriado por elas embarcou num delírio que poderia classificar de onírico, se algum tivesse sonhado com tamanha intensidade.
Como um lapso de memória antecipado, Olavo se viu nu na cama com suas duas ex-algozes, protagonizante cenas entrecortadas de um videoclip erótico psicodélico.
A avalanche de sensações até então virgens foi tamanha, que ao despertar em sua cama, ainda que com as mesmas roupas do dia anterior e o perfume adocicado das garotas, Olavo não conseguiu distinguir fantasia de realidade, atribuindo à primeira o que tinha vivido ou imaginado.
Consultou seu saldo bancário e, verificando que estava de fato alguns milhares de reais mais pobre, ainda assim não conseguiu concluir a veracidade do que tinha vivido.
O certo é que Olavo não era sombra do dia anterior, e teve certeza disso quando entrou na sala do chefe e sem nem dizer bom dia, pediu suas contas.
Nem pegou suas coisas.
Sabia que 23 anos de vida de contador seriam uma pífia experiência diante do mínimo que o destino lhe prometia daqui para a frente.
O que lhe garantia isso era o dia anterior, seja vivido ou imaginado.