Ernesto tinha consciência de sua falta de talento, mas não via isso como entrave a uma carreira de escritor.
Ainda que as evidências não eram nem um pouco promissoras: contava com alguns artigos publicados em jornalecos de bairro, um blogue jogado às moscas e uma carreira medianamente sucedida de publicitário.
Sua esperança provinha da crença de que os modelos não nascem prontos e valia a pena lapidar sua vocação às custas de horas debruçadas sobre o pobre material de sua vida, já que ao se dedicar tanto à escrita se esquecia de sua fonte primordial, as experiências.
Não obstante Ernesto ainda não vislumbrasse uma nesga de sucesso, algo que comprovasse sua premonição de se tornar um grande escritor, era agradecido ao que tinha alcançado na arte de ordenar letras.
Mas já contava 30 anos de estrada, por isso quando aquele material jornalístico chegara em suas mãos, reagiu com o sentimento misto entre euforia e medo.
Há tempos um amigo, um ex-policial afastado da narcóticos, investigava o caso do assassinato de uma bela garota de classe média baixa, executada por um traficante.
A narcóticos arquivara o caso, já que recebera a cota da milícia para abafá-lo, por conta de um graúdo "cala-boca" enviado pelos comparsas do traficante.
Mas o ex-policial infiltrado na favela conseguira as provas por intermédio de um bandidinho alcaguete.
E antes que ambos fossem parar no "microondas", o material do ex-policial lhe foi entregue num encontro arquitetado pelo próprio.
O ex-policial ouvira falar de Ernesto por um amigo em comum, e este último promoveu um encontro às escuras entre os dois, para selarem um pacto de publicação do material caso pegassem o investigador.
Não se passaram dois meses para que a "autorização" chegasse.
Ernesto já falara em segredo com uns 5 editores, que recusaram pela alta periculosidade do material, uma bomba-relógio para todos os possíveis envolvidos.
A história traria à tona mortes de inocentes, policiais e jovens, tudo na conta do traficante, que até então, por uma postura low profile e nem um pouco midiática, reinava incólume no pequeno morro de sua sede.
O traficante, conhecido por Tio Leo, ignorava a existência dessas provas, e a princípio Ernesto não corria risco de vida.
O dilema em que se encontrava, entre a glória póstuma e a mediocridade perene, angustiava Ernesto já há algum tempo.
Ernesto tinha tempo para se decidir, mas sabia que o potencial de seu livro era proporcional ao ineditismo de sua denúncia.
Temia ser furado por algum veículo, pois seu material já circulara por vários editores, alguns sabidamente inescrupulosos.
Mas uma ligação telefônica foi o suficiente para transmutar seu temor em euforia, o contato de um editor obscuro, porém em sintonia com sua concepção da obra que enfim começava a germinar.
Marcou um encontro com Steve, era esse seu codinome, num boteco perto da casa daquele.
Ao entrar no recinto teve dificuldades para identificar seu interlocutor, cuja voz grave sugeria uma figura amendrotadora, desmentida com um sujeito mignon de constituição frágil, dessas reversões de expectativa típicas dos filmes.
O papo foi franco e rápido, ficando acertado que caberia 60% dos lucros ao editor, que iria bancar toda a produção e divulgação do livro.
Ernesto teria 40 dias para revisar todo o material, deixando uma versão em inglês engatilhada, já que o editor apostava nesse título para livrá-lo do prejuízo acumulado em 3 anos de publicações malsucedidas.
Quando o material começou a rodar na gráfica, um galpão clandestino alugado por Steve para resguardar o sigilo, Ernesto passou a frequentar o local diariamente, como se fosse a sala de espera da maternidade.
Era com orgulho de progenitor que via as páginas sendo paridas das rotativas, atividade que tomava boas horas de seu dia, divididas entre reuniões com Steve e sua costumeira ronda noturna na Praça Roosevelt.
Pois foi com o sentimento de uma mãe abortada que Ernesto um belo dia se deparou com o galpão totalmente vazio, nenhum sinal de que aquilo abrigara uma gráfica improvisada.
A essa reação estupefata se somou a traição de Steve, descoberta quando este surgiu ao lado de Tio Leo, revelando que negociara seu projeto de best-seller com o meliante por um preço mais compensador.
Ernesto foi colocado de joelhos e, apesar de sua execução instantânea, ainda conseguiu ouvir o estampido do tiro que penetrou seu crânio sem resistência.
Tiro que seria seguido por uma saraivada que mergulhou o malandro Steve em sua própria piscina de sangue.
Os dois corpos foram encontrados alguns dias depois, e jamais se chegou nem perto de revelar a razão de seu aniquilamento.
Nenhum comentário:
Postar um comentário