domingo, 24 de agosto de 2014

O segredo revelado

Joaquim foi a fundo na desconfiança de sua própria sanidade.
Procurou médicos, psiquiatras e até monges para comprovar que não estava imaginando coisas.
De todos recebeu um diagnóstico negativo em qualquer suspeita de demência, esquizofrenia ou a mínima tendência à alucinação.
Portanto estava convencido de que os últimos acontecimentos não provinham de manifestações de um inconsciente liberto.
Inclusive porque não era afeito a nenhum tipo de substância alucinógena. Não fumava e não bebia também, restringindo seus vícios a sexo e uma coleção de baralhos de tarô.
Três situações de tentativa de assassinato acometeram Joaquim nos últimos seis meses, que ele interpretou como premeditadas.
Não entraremos em detalhes sobre como ocorreram.
Preferimos dar ênfase ao que Joaquim suspeita como sua motivação: a descoberta sobre sua ex-namorada, Vanessa, morta em condições muito misteriosas. Mas também não vem ao caso elucidá-las.
O fato é que durante seu relacionamento de 2 anos, Vanessa, que era 25 anos mais jovem que Joaquim, apresentou um comportamento muito semelhante a Ana Maria, ex-mulher do nosso protagonista.
Foram tantas as coincidências, tantas lembranças do antigo relacionamento de Joaquim, que ele começou a desconfiar que as duas eram a mesma pessoa.
A princípio, guardou essas constatações para si mesmo, mas a confluência de similaridades entre as duas mulheres o levou a um estado que beirou a insanidade. Daí a procura por vários especialistas que malograram explicar qualquer coisa.
No dia em que conheceu Vanessa, Joaquim foi involuntariamente atraído pelo mesmo charme de sua ex-esposa: o jeito de andar, de jogar o cabelo, de piscar o olho ao falar.
Foi uma constatação fria e calculista, pois embora sentisse falta de Ana Maria, não estava mais enamorado da ex-mulher a ponto de enxergar tudo isso em seu novo alvo de cobiça.
Em grupos diferentes naquele bar, eles trocaram olhares insinuantes e não foi difícil "marcar um encontro" junto ao balcão, onde se apresentaram e com uma breve amostra de seu poder sedutor, Joaquim logo arrancou risos e o telefone de Vanessa.
A paixão fulminante aflorou logo no primeiro encontro, e um mês depois ele já abria espaço em seu armário para as badulaques dela.
O estranhamento veio com o tempo, quando além de seu comportamento, Vanessa relatou fatos do passado que Joaquim lembrou que observara em sua ex-esposa ou mesmo tinha compartilhado com ela.
A mesma data de aniversário, a mesma cicatriz no ombro por causa de um acidente doméstico, uma temporada no exterior nos mesmos país e cidade, o nome do primeiro cão de estimação, tudo isso e mais uma série de peculiaridades em comum unia aquelas vidas separadas por gerações e que nunca coexistiram.
O que no início deixou Joaquim curioso, aos poucos foi evoluindo para um encantamento, até terminar em franca obsessão.
Não demorou para Joaquim estar convicto de que Ana Maria e Vanessa eram a mesma pessoa.
Reencarnação, coexistênca em dimensões paralelas, para Joaquim não importava como chamariam isso, apenas que ele era testemunha única de um fenômeno natural.
Esteve a ponto de compartilhar o segredo com Ivone, sua ex-sogra afastada de sua convivência.
Mas decidiu guardar para si, pois a senilidade da mulher potencializada por seu envolvimento emocional de nada ajudaria a elucidar o caso. Além do que, envolver testemunhas nesse caso "esotérico" poderia expor sua reputação de renomado pesquisador.
Para Joaquim, ter Vanessa como confidente de sua experiência já supria sua carência de um interlocutor para debater o que lhe acontecia.
Mesmo que a possibilidade de abrigar a alma de outra pessoa passasse ao largo de um temperamento descompromissadamente jovial.
Até que um fato tirou Joaquim e Vanessa de seu "laboratório" para aterrissar em terreno mais sério.
Foi no dia em que Joaquim, andando sozinho pela rua, foi arremessado no meio do asfalto com violência, fazendo um carro frear seco e por um triz não enviando ele para o plano espiritual, onde pelo menos elucidaria o mistério.
Nas suas contas, Joaquim sofreria mais dois "atentados", primeiro num vazamento de gás do aquecedor de sua casa e depois num quase sequestro, onde conseguiu escapar escalando o muro de uma casa.
Estava convencido de que era o castigo por ter descoberto o "segredo da reencarnação de Ana Maria em Vanessa".
E não via como escapar, porque decerto era alvo de gente muito grande, se é que isso se tratava de obra de seres humanos.
Passou a medir seus movimentos, só saindo de casa quando extremamente necessário, se valendo da mobilidade do emprego como free-lancer de jornalista.
Sua facilidade com a escrita também contribuiu para escrever um diário, que considerava seu testamento caso fosse capturado.
Joaquim só não esperava que esse caso fosse elucidado tão rápido, como também foi surpreendente e ao mesmo tempo decepcionante o seu desfecho.
Um dia, ao vasculhar um baú da despensa, na tentativa de achar um antigo álbum de fotografias, Joaquim descobriu uma brochura amarelada entre livros antigos de Ana Maria: seu diário secreto.
O que lhe chamou a atenção de imediato foi um marcador de livro atravessado ao meio, que notou ser recente, pois continha a propaganda de um lançamento editorial deste ano.
O diário estava sendo ou tinha sido lido por alguém, e como as suspeitas recaíam sobre Vanessa, preferiu não removê-lo do lugar onde encontrou, guardando isso para um segundo momento, em que estivesse só em casa.
Num final de semana em que Vanessa partiu sozinha para a casa dos pais, Joaquim pegou alguns acepipes na geladeira e se refestelou com o diário em sua poltrona preferida.
Seria uma longa volta ao passado, sobre a qual sua alma se debruçaria bem mais que um final de semana.
Demoraram poucas páginas para ele comprovar o que já era evidente: Vanessa mimetizava o comportamento de Ana Maria.
Não apenas da rotina do convívio de Ana e Joaquim, mas também todos os aspectos de sua personalidade, visão de mundo, opiniões, suas aflições, esperanças.
Qualquer linha do diário era dissecada para ser reescrita no script da personagem de Vanessa.
Num insight Joaquim percebeu como a festiva Vanessa era tão distante da introspectiva cover de Ana Maria.
Essa discrepância só não tinha levantado maiores suspeitas porque seu relacionamento com a falsa Vanessa não completara ainda seis meses.
Isso explicava porque ele ainda não tinha se enfastiado da moça: Vanessa era Ana Maria, de quem Joaquim ainda guardava uma harmonia de convívio que não encontrara em nenhuma outra mulher, se é que isso não poderia ser chamado de amor.
Ao final de leitura, Joaquim ficou com o sentimento dividido entre a compulsão de desmascarar a farsa e a compaixão pela autora da mesma, o que se explicava também porque não desejava excluir a Vanessa verdadeira de sua vida.
Assim, Joaquim optou por ocultar o diário e fingir sua descoberta.
Vanessa desconfiaria de um sumiço intencional, mas teria tempo de reverter seu erro e incorporar de novo a personalidade inquieta e espevitada que conquistou Joaquim, mas da qual desconfiou que pudesse segurá-lo.


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