terça-feira, 28 de outubro de 2014

O calango expiatório

Eleição a gente já viveu muitas e, apesar de ficarem apregoando a importância da democracia, esta é praticada em termos, porque nos é dada apenas a escolha de uns 2 ou 3 candidatos, se isso.
Essas últimas eleições então, mais pareceram o exercício do preconceito, do clubismo, da intolerância, e bem menos da prática democrática.
Foi um festival de acusação, um tiroteio verbal, que seria fácil imaginar as pessoas chegando às vias de fato não fosse a arena da luta um post de rede social.
De um lado os simpatizantes tucanos, que aos poucos se tornaram verdadeiros militantes da causa maior desse prélio eleitoral, para eles: tirar o PT do poder.
Referendados por uma avalanche de corrupção testemunhada nesses 12 anos de dominio vermelho, somada à pane econômica dos últimos tempos.
Tudo isso criou um clima de avidez por mudanças que datam das fatídicas manifestações do ano passado e que se reavivaram com a ida de Aécio Neves para o segundo turno.
Do outro lado da balança estão os eternos militantes petistas, paladinos da principal plataforma governista, a chamada reforma social.
O choque dessas forças acendeu um acalorado debate de idéias e pontos de vistas, muito superior aos debates dos candidatos na tv, mais preocupados em não meter os pés pelas mãos em público debaixo dos olhos de seus marketeiros.
Ficou nítida a insatisfação da classe média com uma política econômica que privilegia manter o assistencialismo em detrimento do combate à inflação e à eliminação de gargalos como a infra-estrutura deficiente.
Classe média que formava o côro tanto nas ruas como nas arquibancadas, mas que foi em parte anestesiada pelo pão e jogo da Copa.
Pode-se dizer que nessas eleições se evidenciou sim uma luta de classes enrustida, que redundou em preconceito contra pobres, negros, nordestinos.
Isso não só por "culpa" apenas da maioria dos nordestinos e pobres terem votado na mãe eternamente provedora, a Dona Dilma.
Mas também pela simplificação de que, diante de nossas dificuldades em mudar nossas perspectivas de vida, e isso incluindo a própria situação do país, preferimos achar os culpados.
É o famoso bode expiatório, que no caso se traveste de calango, bicho que até pouco tempo atrás fazia parte da cesta básica do sertanejo nordestino.


terça-feira, 21 de outubro de 2014

Diário de bordo de uma viagem sem destino

Uma mínima correção de rota, de fração de grau, pode fazer um navio com destino à Europa chegar na África.
Uma frase surrada diz que quando não se sabe aonde quer chegar, todos os caminhos estão errados.
Mas e quando não importa se vamos chegar à África ou à Europa?
Quando estamos desorientados, e em vários momentos ficamos mesmo, nosso destino acaba sendo um detalhe irrelevante.
Ficar voluntariamente à deriva nos define melhor.
Estarmos cansados em alto mar torna inútil qualquer remada, por isso deixamos os remos submergirem sem receio.
Já não importa que o bote salva-vidas fique dando voltas em torno de si como um prato de microondas a rodar sob o sol escaldante.
Ainda que o sabor dos ventos seja insípido, é o que temos para o momento.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

As coisas como são

Por aqui as pessoas estão no calor de um segundo turno de eleições, imaginando que têm um destino na ponta do dedo.
A Rede Globo cumpre seu papel de chefe de torcida, pendendo para Aécio porque dá respaldo ao candidato que seus anunciantes querem.
O povo, até o mais intelectualizado, se ilude achando que uma escolha ou outra muda alguma coisa profundamente.
Mas sabemos que qualquer um que assuma em janeiro têm mais condições de fazer benfeitorias a si próprio e seu grupo do que contribuir por uma reforma relevante da sociedade.
Porque isso ainda estará nas mãos dos interesses de associações de classe, representadas por lobistas e bancadas preocupadas em manter as regras como estão.
Mais uma eleição em que o choque social será apenas encenado e nada irá mudar.

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

A caça às bruxas internas

Você passa 4 anos (sim, porque eleição municipal não conta) onde política é um dos assuntos mais corta-papo de almoço ou qualquer encontro social.
Daí, quando a eleição presidencial chega e afunila, vira uma discussão sem fim, um maniqueísmo sem tamanho, onde muitos mal sabem do que estão falando e o debate se nivela às rodas de futebol, tipo se aquele caso de corrupção foi mão na bola ou bola na mão, etc.
Enquanto os marketeiros se esmeram em esconder as falhas e defeitos de caráter de seus candidatos, por aqui todo mundo se revela em texto e subtexto, o que de fato são e pensam.
Fariam melhor se usassem suas próprias opiniões como espelho para se conhecer melhor e definir um plano de auto-governo para os próximos anos.

domingo, 5 de outubro de 2014

A etimologia da zona de conforto

Se você ler "zona" não como região e sim como a gíria que se refere a bagunça, verá que zona de conforto a princípio pode ser lida como uma contradição.
Zona versus conforto, desordem versus ordem, e assim por diante.
Mas também pode ter a interpretação inspirada de "bagunça feita de acomodação".
E se você pensar bem, a acomodação gera, sim, uma bagunça mental.
À medida que não damos a atenção devida à nossa, desculpe a expressão gasta, voz interior, a tendência é adiarmos nossas questões fundamentais.
Profissionais, amorosas, familiares e principalmente, os ideais.
Os ideais, aquilo que todo jovem tem na ponta de língua e dentro do coração, mas que os "adultos" deixam cair e se perder no vão do sofá da acomodação.
Lembra quando você jurou seguir seu coração e só abraçar as causas que falavam direto a ele?
Cadê as viagens sonhadas, a morada na praia, a ONG para ajudar crianças e bichos?
Ao que parece, não passaram de projetos juvenis que foram espremidos como espinhas dos rostos corados e que deixaram marcas que nenhuma plástica consegue esconder.
Na tenra idade os ideais se instalam no seu corpo como sementes com promessa de frutos suculentos.
Mas a rotina aos poucos inibe seu florescimento.
E o ideal acaba como um inseto no âmbar, contendo o DNA precioso que se demorar para voltar à vida, pode voltar como um dinossauro inadaptável à nova atmosfera do futuro.
Mas o corpo não se cansa de avisar.
Com todos os tipos de mensagens possíveis.
Eles ecoam nos meandros que inteligam coração e mente.
E você se entorpece de todas as formas para não ouví-los.
Com álcool, drogas, sexo, videogame, comida.
Mas uma vida sem propósito é uma promissória com juros em progressão geométrica.
E a dívida consigo mesmo é sempre a mais pesada, não importa quantos zeros tenha.
Esquecemos que ela tem uma data de vencimento que é o da própria vida.
Portanto, desligue o celular.
Procure o canto mais quieto da casa, um onde o sinal da conexão consigo mesmo pode ser mais forte que o wifi.
Sente-se e se escute.
Esse exercício, se praticado com a devida disciplina e com um pouco de sorte, pode promover uma faxina interna reveladora.
Remove o carpete solto debaixo do qual você varreu décadas - se você tiver mais de 40 - de lixo mental.
Impossibilidades, impotência, frustrações, mágoas, decepções.
Tudo arrastado para fora para no final trazer à tona o seu verdadeiro chão.
E esse chão não precisará de polimento, pois não possui qualquer revestimento.
É um piso de cimento duro e frio, e ao mesmo tempo reconfortante, porque verdadeiro.
É dali que você vai se reerguer.
Mas não pense em zona de conforto.
Pense que a vida é uma zona mesmo.
E que o conforto vem de se habituar às suas oscilações.

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

O eterno amante

Não é que os novos ricos não sejam afeitos à discrição.
Talvez a maioria dos que escalam a montanha social já ao pé dela não eram adeptos do comedimento.
Mas há exceções e Camilo é a prova disso.
Sempre de temperamento discreto, não titubeou em gozar as delícias que o acaso jogou em seu colo.
Literalmente, porque a fortuna lhe proporcionou aquilo que sempre amou durante a vida inteira: mulheres.
Elas vieram de repente aos borbotões, como num ataque de abelhas atraídas pelos doces confortos de que a rotina de Camilo se cercou.
Não, ele não largou sua senhora, aquela que sempre foi seu esteio nos infortúnios e fracassos, a respeitosa Dona Clotilde.
Essa teria um lugar eterno e único em seu coração.
Mas tirando seu apreço por Clotilde, de resto o coração de Camilo tinha apenas sua função de sobrevivência.
Quem mandava mesmo eram as partes baixas, essas as reais governantes de seus instintos.
Por isso Camilo não teve escrúpulos em amealhar o máximo de amantes possível.
E não tinha nenhum constrangimento em aplicar a famosa "carteirada" em ovelhinhas interesseiras.
Mas é claro, tudo feito longe da curiosidade de plantão.
Um de seus truques era evitar a mínima exposição pública.
Nada de motéis nem qualquer lugar do gênero onde pudesse cruzar com algum intrometido.
Para cada amante comprou uma garçoniére particular, não para a moradia da mulher, mas apenas para seus encontros esporádicos.
E o que é mais curioso: em nome da filha, para quem dizia que destinaria as rendas dos aluguéis quando o pai partisse para outro plano espiritual.
Mas como todo truque tem sua falha, um dia esse artifício também conheceu seu primeiro malogro.
Foi na ocasião em que Camilo, já nos seus avançados 90 anos, esqueceu de estender o tapetinho de borracha sob o chuveiro duplo onde se banhava com sua coelhinha da ocasião, a gostosa Bel.
No auge da paixão subaquática, Camilo deu uma fatídica pisada em um sabonete-armadilha e, se agarrando à desprevenida garota, acabou o casal indo à lona antes do segundo hound sob os lençóis.
Camilo permaneceu desacordado até a chegada da ambulância, sob a vigília da amante em estado de choque.
No final, se constatou uma quebra da bacia somada a algumas escoriações, que não tirariam Camilo de cena não fosse a descoberta pela filha de todo o circo amoroso montado por ele.
Afinal, eram nada menos que 25 amantes visitadas com uma frequencia por aquele ancião de dar inveja a muito garanhão no auge da carreira.
Camilo teve o sigilo de seu delito garantido por sua filha, desde que ele providenciasse o despejo imediato daquele harém custoso e indecente.
E hoje ele se contenta apenas com os mimos da enfermeira full time, contratada para dar salvaguarda à saúde precária de um ancião de 95 anos.
Diagnóstico que nunca foi subscrito por doutor nenhum.