sexta-feira, 28 de novembro de 2014

You should try

Crença, tudo é uma questão de ter ou não ter.
A vida individual, racionalmente falando, é insignificante.
Se outro cometa colidir com o planeta e a humanidade for exterminada, o planeta seguirá o seu curso com ratos, baratas ou amebas.
E de nada terá valido tanta fortuna, pose e soberba do ser humano.
Mas isso é impossibilidade remota para nós que aprendemos a olhar para a vida como ao próprio umbigo ou no máximo ao umbigo dos que nos cercam.
Queremos e precisamos acreditar que a vida tem um sentido e, mais que isso, que temos um papel de protagonista nesse script.
Partindo dessa perspectiva, aprendemos a planejar os anos futuros dentro das nossas metas pessoais e profissionais, e medindo nossa capacidade de viver conforme nosso sucesso nessas empreitadas.
Assim, em linhas gerais as pessoas felizes seriam as que atingiram esse sucesso.
Deus e os psicanalistas sabem que não é bem assim.
Felicidade é algo que não se pode medir pelas aparências, pelos sinais de sucesso material e conformidade com o modelo enaltecido pela sociedade de consumo.
A não ser que você se refira a pequenos sinais emitidos por quem está de bem com a vida.
Aí sim estaremos captando os sintomas de saúde e do contentamento, os verdadeiros sintomas do que podemos chamar de felicidade.
O maior problema é atrelar felicidade ao sucesso, ou seja, como o prêmio pelo resultado alcançado, algo projetado num futuro que nunca chega.
Porque fazemos isso, existe sempre a expectativa por uma performance ainda melhor, que no final vai nos servir de bandeja essa tal felicidade.
É a maneira como o consumismo nos ensinou a pensar, pois essa promessa é que move a roda da relação trabalho x ganho x consumo que sustenta nosso modo de viver.
Mas como diriam as frases feitas, viver a jornada contribui mais para o nosso contentamento do que o destino final.
Basta indagar quem seria o piloto de F1 mais feliz: o campeão ou o que corre por prazer e não necessariamente vence?
Nesse caso os dois traços podem estar reunidos na mesma pessoa, mas como o mundo é 99,9% constituídos por não campeões, não detentores de recorde, então a perspectiva de achar sempre o sentido de vitória no simples fazer é mais alentador.
Aqueles que tentam mais e, na maioria das vezes apenas falham, deveriam ser mais valorizados.
Talvez uma boa receita para ser feliz seja tentar mais e diferentes coisas.
Just try.

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Todo livro é de auto-ajuda

É uma frase da escritora Martha Medeiros, e que corroboro aqui.
Talvez para rebater um enquadramento equivocado dos seus livros a essa categoria, Martha quis dizer que a leitura de qualquer livro sempre ajuda. E é verdade.
Primeiro porque qualquer leitura já é benéfica ao aprendizado da auto-expressão, oral e escrita, tão importante em tempos onde o marketing pessoal ultrapassa o conhecimento técnico.
Afinal, hoje o mundo é dos que gritam mais alto.
Também porque os livros, principalmente os clássicos, falam de relações humanas que atravessam as gerações e encontram eco nas cabecinhas perdidas de hoje, de qualquer idade. É bom saber que os nobres da idade média, com uma vida envolta em luxo e prazeres, também tinham problemas como os nossos.
Por isso os livros funcionam como conselheiros para aqueles momentos de reflexão onde o interlocutor mais útil é você mesmo.
Onde o amigo do peito que você procura pra bater um papo é mesmo o seu coração.
Às vezes eles são chatos e devem ser abandonados - não importa quanto você tenha investido em reais, o investimento de tempo em um livro chato sai bem mais caro para a sua vida.
Às vezes eles demoram a engrenar, mas lá pela página 100 dá pra saber.
Às vezes eles são longos, mas extremamente compensadores.
E em raras vezes, você vai se deparar com um livro que te toca, talvez por abordar um tema que é caro a você ou te pegar em um momento frágil da vida, e ele irá ficar para sempre no cânone eterno da sua mesinha de cabeceira.
Não à toa o livro fica ali exposto na prateleira, como um objeto de decoração.
São como troféus para quem encarou uma epopéia de 300, 500, 1000 páginas.
Para quem ama a leitura, é sempre bom passar a mão na lombada e recordar que você já folheou aquelas páginas e contribuiu para o processo de amarelecimento a que todo livro está condenado.
Já disseram que um país é feito de homens e livros e eu assino embaixo.
Um país pode até feito de estradas, ferrovias, hidrelétricos.
Mas a sociedade com certeza é construída com pilhas de livros, que são o alicerce de seus homens.



domingo, 9 de novembro de 2014

Poetas são maus agricultores

Eu tive um avô que era poeta e também agricultor.
O primeiro por ofício, porque ele se alimentava dos sonhos, e o segundo por necessidade, porque palavras enchem a boca, mas não a barriga.
E quando se divide a vida assim, entre sonho e realidade, as duas partes saem um pouco prejudicadas.
Todos nascemos com talento para algo, às vezes mais de um, que desenvolvemos durante a vida ou permanecem ocultos sem verem a luz do dia.
Nem sempre são aptidões que ocupam esferas diametralmente opostas como, por exemplo, talento para jogar basquete e escrever poesias.
Pois seria assim, como diria Deus, dar asas à cobra.
Mas exceções, como uma miss graduada em Harvard, existem por aí.
Eu nunca soube do meu avô ter talento para a agricultura.
Talvez tenham colocado ele no mesmo balaio de todo imigrante que, sem poder cultivar seu verdadeiro talento, acabou cultivando a terra mesmo.
Mas soube que meu avô costumava parar a enxada para irrigar sua mente e fazer brotar versos em caderninhos que ele carregava no bolso, à espera dessas semeaduras de palavras.
Os campos de cultivo por aqui eram terreno fértil para ele que era um expert em haicais japoneses, que tradicionalmente se inspira e têm como tema a natureza.
Às vezes fico imaginando como eram esses momentos de inspiração in loco, quando o vento batendo nos cafezais ou sol se pondo no horizonte eram transpostos para o papel em canetadas de caracteres japoneses mágicos.
Provavelmente eram dias em que a produtividade do dia não importava tanto quanto a colheita de um lapso de vida que iria se eternizar em seu manuscrito e decerto, em sua memória.

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

A UTI sentimental

Minha irmã me perguntou se já era hora de meu único sobrinho, João Pedro, começar a aprender o inglês.
Dizem que até os 6 a criança aprende sem sotaque, e meu sobrinho já conta com 8 anos completos, portanto está até "atrasado" pra começar a encostar a lingua no céu da boca para treinar o "th".
Eu disse que sim, que já podia dar sua largada na formação do pequeno cidadão global, mas que não esquecesse de reservar bastante tempo para a parte mais importante da infância: o brincar.
Nem é preciso dizer o quanto brincar foi importante para mim.
Brincar me aproximou de meus vizinhos, de colegas de escola, dos meus primos, e o mais importante, me aproximou de mim.
Mantenho vivo na memória que meu dia era dividido entre escola pela manhã e o brincar à tarde, entremeado por uma parada providencial para abastecer o tanque, que ia me garantir horas lúdicas ininterruptas até o toque de recolher de mamãe.
As brincadeiras não contavam com tantos recursos tecnológicos como hoje, dependiam muito mais da imaginação.
Por isso o resultado era mais mágico do que qualquer programador de PlayStation poderia alcançar.
Era brincar de feira com mato arrancado do quintal e preso em maços com tirinhas de erva.
Construir pistas na terra para rolar bolas de lama rampa abaixo, testando sua resistência.
Jogar queimada, mãe da rua, passa anel, morto-vivo, esconde-esconde.
Colecionar chaveiros, figurinhas, flâmulas.
Estourar bombinhas de São João, às vezes com mais medo do que a própria pessoa que tomava o susto.
Explorar terrenos e depósitos nas redondezas como se fossem territórios proibidos, assim como pescar guarus num corrego de esgoto próximo, com que mães de hoje ficariam horrorizadas.
Xeretar os arredores do circo que se instalava às vezes no campo de futebol de terra batida ao lado de casa.
E infinitas outras brincadeiras, incluindo umas 4 ou 5 horas diárias de uma boa pelada dividida com os craques mirins de toda a redondeza.
Tenho certeza de que se sou um curioso até hoje, é graças à oportunidade de navegar pela minha infância como o capitão Nemo das minhas próprias pernas.
E sou muito grato por isso.
A infância é um tesouro que esquecemos em algum escaninho perdido, mas a que sempre podemos recorrer para enriquecer um dia ruim.
A vida pode ser dura, difícil, por vezes cruel, mas quem teve infância consegue entender que ela não passe de uma ilusão.
E com algum esforço, transmutar essa ilusão em algo bom, lúdico, prazentoso.
Quando tudo parecer sem sentido, não se esqueça que o antídoto, a infância, está logo ali numa prateleira esquecida do coração.

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

O interior

Sou do interior, nos dois sentidos.
No sentido geográfico, sou de Bauru, interior de São Paulo.
Já nos cinco sentidos do ser humano, sou interiorizado pela introspecção.
Viajar para minha cidade natal me é caro tanto quanto percorrer os meandros da minha mente e do meu coração.
Sei que quando decido fazer a viagem ao interior, ainda que curta e não planejada, é sempre uma oportunidade de trazer de volta uma bagagem nova.
Em Bauru reencontro minhas raízes, o calorão abafado de sempre, que deixa os livros e as memórias emboloradas.
A parte nova da cidade brota da antiga, como se a velha fosse o esterco de uma modernidade daninha que se alastra sem pedir licença.
A gente quer preservar a infância das peladas nas ruas, mas há tempos ela foi driblada e humilhada pelas jogadas de playstation.
Ou a beleza das praças de coreto, que resistem às novas camadas de tinta que não fazem distinção entre roupagem nova e preservação.
É que o novo dita o ritmo da evolução - ou será involução - da espécie, aqui em Bauru ou em Nova Iorque.
Por outro lado, uma viagem ao interior de si mesmo pode ser a mais perigosa das epopéias.
É uma viagem sem destino, solitária, onde não se sabe o que vai encontrar: se os campos verdejantes da esperança ou o abismo dos arrependimentos e frustrações - provavelmente, os dois.
Mas ela se faz necessária, principalmente quando percebemos que pegar um avião por uns 20 dias para o mais paradisíaco dos destinos não irá trazer a renovação que você precisa.
A viagem ao interior pode ser longa, demorar estadias sem fim dentro de si mesmo.
E só sabemos que ela chegou ao fim quando, às vezes sem se dar conta, percebemos que desembarcamos em alguma plataforma nova pela primeira vez, embora você esteja voltando à sua velha e própria vida.
A viagem ao interior exige paciência, curiosidade, capacidade de frustração e, acima de tudo, a grande ambição de viver a sua verdade.