Eram aproximadamente uma dúzia de senhores em torno de uma mesa redonda, debatendo há dias e não chegando a nenhuma conclusão.
O motivo da discórdia seria banal para quem acompanha a política nacional: a distribuição de cargos.
Só que não se tratava de cargos políticos, nem de qualquer instituição pública ou privada.
Os homens ali ferrenhamente disputavam a mórbida função de testemunhar mortes.
Explico: os presentes não eram propriamente homens de carne e osso, e sim uma espécie de cavaleiros do apocalipse, entidades encarregadas de recolher as almas que acabavam de se despedir da vida mundana.
O que estava em disputa era a atribuição de um tipo de morte para cada entidade, porque também nas exigências curriculares dos céus a especialização era pré-requisito.
Assim, havia entidades para mortes de causas naturais, doenças, acidentes, assassinatos, etc.
E para cada especialidade, haviam subdivisões que geravam toda uma hierarquia de cargos dentro de cada modalidade de morte.
Mas nesse caso a dsputa de atinha ao mais alto cargo, o de CEO.
Os postulantes apresentavam suas credenciais para cada cargo específico e o eterno porteiro e zelador dos céus, São Pedro, mediava as discussões e dava a palavra final.
O debate acontecia mais ou menos assim:
- Sou o mais corajoso e frio, por isso mereço ser a Entidade dos Assassinatos.
- Para presenciar um assassinato também é preciso um grau de morbidez, e isso eu tenho de sobra.
- Bom, eu não entrarei nessa disputa, já que tenho todos os predicados para ser a Entidade dos Acidentes.
- E quais seriam?
- Estar sempre de prontidão, já que acidentes não tem hora nem lugar pra acontecer. E não podem esperar, pois podem obstruir o trânsito, por exemplo.
- A mim, que tenho natureza sossegada e paciente, cabe melhor a vaga das mortes naturais.
- É, algumas podem demorar décadas para acontecer. Que tédio...
- Eu prefiro o das doenças.
- Eu também: se mimam as forças aos pouquinhos ou de forma fulminante, ao menos é carta marcada para morrer. Não farei plantão à toa.
São Pedro intervém na discussão:
- Gente, tem pelos 3 candidatos para cada cargo. E pelo jeito não haverá consenso, pois apesar de estarmos no céu, não vejo como a resignação pode vencer o ego nessa disputa. Sendo assim, vou me advogar o direito de nomear os cargos.
Sob uma enxurrada de protestos, São Pedro procedeu à nomeação das entidades.
Nem sempre o bom senso prevaleceu na escolha, criando conflito entre cargos e aptidões.
Os mais afeitos a mortes trágicos tiveram que se conformar com recolher vítimas das mortes naturais. E vice-versa.
O resultado é que os espíritos inquietos acabavam perdendo a paciência.
E os mais calmos, eram pegos de surpresa por maus súbitos ou acidentes inesperados.
No final as almas ficaram mais expostas a tentações de quem nunca se ausentava no juízo final: ele mesmo, o coisa ruim.
Os agentes do mal, com sua competência de sedução ímpar, convenciam cada vez mais almas a povoar as delícias do subsolo, gerando uma grande crise de gestão entre os admnistradores lá de cima.
Definitivamente aquela gente do bem não tinha se preparado para o livre comércio de almas, com ênfase no melhor atendimento ao cliente.
Em pouco tempo todas as entidades foram demitidas.
E São Pedro deu lugar a um marqueteiro formado na Harvard, cuja missão agora é remodelar e tornar novamente atrativo o combalido reino dos céus.
segunda-feira, 29 de setembro de 2014
quinta-feira, 18 de setembro de 2014
Medinho de planta
"Ah, mas esse menino é a sua cara escrita".
Ele preferia ouvir "sua cara desenhada", já que era Diretor de Arte.
De qualquer forma, perceber que a cada dia seu rebento confirmava em aparência e trejeitos a quem tinha "puxado", enchia Antonio de orgulho.
O pequeno Lionel seria criado na rígida cartilha da família, onde os varões cedo aprendiam a fazer tudo com as próprias mãos.
Não "tarefas de mulher" como cozinhar, cerzir ou decorar, mas coisas de macho como talhar madeira, puxar fiação, até rebocar parede se fosse preciso.
Foi assim desde seu tatara-tataravô e não seria Antonio que amoleceria.
Por isso, foi com um misto de decepção e temor que Antonio soube por sua esposa da primeira fraqueza demonstrada por Lionelzinho: o medo de plantas.
Peralá, eu ouvi direito?
Sim, medo de plantas.
Não de cachorro, rato ou qualquer outro animal doméstico que pudesse, com alguma mordida ou arranhão, constituir uma real ameaça a um bebê.
Era o medo inexplicável de plantas que assombrava aquela pequena alma.
Mais especificamente de um buchinho, espécie das mais "fofinhas" dentro do reino vegetal, inofensiva se comparada a um feroz comigo-ninguém-pode, aterrorizantes plantas carnívoras ou mesmo a uma rosa, com seu caule espinhoso.
Com Lionelzinho no colo, Antonio procedeu a uma série de testes "in loco" para saber se aquilo não era delírio da patroa.
E não teve que chegar muito perto do vaso do buchinho para se confirmar o que temia: o bebê virou seu rosto e se encolheu todo junto ao peito de Antonio, abrindo um comovente berreiro de pânico.
No que o pai quase o acompanhou, pois era grande sua tristeza ao ver solapado o orgulho de uma linhagem inteira de homens, acostumados a enfrentar incólumes toda sorte de revezes e ameaças.
Mas momentos de dor também podem ser de clarividência.
Num átimo, Antonio recolheu a lágrima que ameaçava cair, se aprumou e entendeu seu papel de pai.
Ele não colocaria uma pedra sobre aquele assunto.
Não deixaria o medo do seu filho virar fofoca de familia ou motivo de chacota.
Também não confiaria a um psicólogo a solução - psicologia, meu filho, é para os fracos.
Antonio resolveria a seu modo, que foi o modo do seu pai e do seu avô: com as próprias mãos.
Aproximou-se do vaso do buchinho e, segurando a mão do menino, a fez resvalar na planta seguidamente, demonstrando o quão suave era o contato com a natureza.
A cara de choro que já se afigurava imediatamente se desvaneceu, dando lugar a um sorriso epifânico de que só uma criança em sua inocência é capaz.
Lionel afastou os galhos do buchinho como se descortinasse um pequeno portal dentro do seu mundo de faz de conta.
Onde os demônios se revertem em anjos caídos para preparar o final feliz.
Mas o desfecho não encantou mais ao menino do que ao seu pai.
Antonio percebeu que no final não foi a tradição familiar de "educar à mão" quem triunfara.
Foi a própria natureza quem quebrou o galho do pai.
E de quebra, também esfacelou toda a sua rigidez.
Simples assim.
Ele preferia ouvir "sua cara desenhada", já que era Diretor de Arte.
De qualquer forma, perceber que a cada dia seu rebento confirmava em aparência e trejeitos a quem tinha "puxado", enchia Antonio de orgulho.
O pequeno Lionel seria criado na rígida cartilha da família, onde os varões cedo aprendiam a fazer tudo com as próprias mãos.
Não "tarefas de mulher" como cozinhar, cerzir ou decorar, mas coisas de macho como talhar madeira, puxar fiação, até rebocar parede se fosse preciso.
Foi assim desde seu tatara-tataravô e não seria Antonio que amoleceria.
Por isso, foi com um misto de decepção e temor que Antonio soube por sua esposa da primeira fraqueza demonstrada por Lionelzinho: o medo de plantas.
Peralá, eu ouvi direito?
Sim, medo de plantas.
Não de cachorro, rato ou qualquer outro animal doméstico que pudesse, com alguma mordida ou arranhão, constituir uma real ameaça a um bebê.
Era o medo inexplicável de plantas que assombrava aquela pequena alma.
Mais especificamente de um buchinho, espécie das mais "fofinhas" dentro do reino vegetal, inofensiva se comparada a um feroz comigo-ninguém-pode, aterrorizantes plantas carnívoras ou mesmo a uma rosa, com seu caule espinhoso.
Com Lionelzinho no colo, Antonio procedeu a uma série de testes "in loco" para saber se aquilo não era delírio da patroa.
E não teve que chegar muito perto do vaso do buchinho para se confirmar o que temia: o bebê virou seu rosto e se encolheu todo junto ao peito de Antonio, abrindo um comovente berreiro de pânico.
No que o pai quase o acompanhou, pois era grande sua tristeza ao ver solapado o orgulho de uma linhagem inteira de homens, acostumados a enfrentar incólumes toda sorte de revezes e ameaças.
Mas momentos de dor também podem ser de clarividência.
Num átimo, Antonio recolheu a lágrima que ameaçava cair, se aprumou e entendeu seu papel de pai.
Ele não colocaria uma pedra sobre aquele assunto.
Não deixaria o medo do seu filho virar fofoca de familia ou motivo de chacota.
Também não confiaria a um psicólogo a solução - psicologia, meu filho, é para os fracos.
Antonio resolveria a seu modo, que foi o modo do seu pai e do seu avô: com as próprias mãos.
Aproximou-se do vaso do buchinho e, segurando a mão do menino, a fez resvalar na planta seguidamente, demonstrando o quão suave era o contato com a natureza.
A cara de choro que já se afigurava imediatamente se desvaneceu, dando lugar a um sorriso epifânico de que só uma criança em sua inocência é capaz.
Lionel afastou os galhos do buchinho como se descortinasse um pequeno portal dentro do seu mundo de faz de conta.
Onde os demônios se revertem em anjos caídos para preparar o final feliz.
Mas o desfecho não encantou mais ao menino do que ao seu pai.
Antonio percebeu que no final não foi a tradição familiar de "educar à mão" quem triunfara.
Foi a própria natureza quem quebrou o galho do pai.
E de quebra, também esfacelou toda a sua rigidez.
Simples assim.
quarta-feira, 17 de setembro de 2014
Ex-burguer
"Gourmet é o a de haute cuisine ou alta cozinha, evocando assim um ideal cultural, associado com as artes culinárias. Assim um vinho ou um restaurante diz-se gourmet quando este é de alta qualidade e está reservado a paladares mais avançados e a experiências gastronômicas mais elaboradas. Por consequência os produtos e ou refeições gourmet são normalmente mais caras que os seus equivalentes não gourmet."
(fonte: Wikipedia)
Sou do tempo em que Gourmet era só uma marca de maionese.
Eram os primórdios do marketing e esse termo em francês ainda não tinha a conotação pseudo-sofisticada de hoje.
A vida também era mais simples e barata.
Se não me engano, "Gourmet" voltou às paradas no recente boom imobiliário, desta vez para adjetivar a enganosa varanda com churrasqueira.
E daí, pegando carona no marketês, passou a designar tudo que dentro da culinária se atribui como sofisticado, restrito e caro.
O cúmulo desse fenômeno se deu quando simples brigadeiro, picolé e hamburguer receberam a alcunha "gourmet".
Meros lanchinhos ganharam status de refeições e preços idem.
Mas a gourmetização não se restringiu à gastronomia - ou baixa gastronomia -, levando essa sofistição - ou frescura mesmo - para outros segmentos do comércio, usando esse artifício para elevar seus preços e aumentar margens de lucro.
Não vou citar exemplos, mas não ficaria surpreso se encontrasse por aí lavanderias premium, engraxates vip ou über salões de barbeiro.
Dizem que isso é um reflexo da mudança dos parâmetros do status, que evoluiu da aquisição do objeto de desejo para o conhecimento profundo sobre esse objeto.
A chamada valorização dos connoisseurs, especialistas em assuntos como vinho, charutos, carros de luxo e agora, até picolé.
Pena que num país como o Brasil isso não contamine setores carentes de connoiseurs, como a educação e a saúde.
Mas os tempos da simplicidade, de quando a gente corria para alcançar os carrinhos de lanche para comer "aquele hamburguer que não sei o que o tio coloca que fica bom pra c.", esses já se foram.
Hoje o bom é arrotar conhecimento sobre esse hamburguer enquanto degusta o lanche com uma qualidade aquém daquele antigo, mas que parece infinitamente melhor pela embalagem e discurso que o acompanham - como acompanhante, até a batata palha perdeu status.
O hamburguer gourmet de hoje é um ex-burguer.
domingo, 14 de setembro de 2014
O caminhão de mudanças
Ele vem correndo, descendo desgovernado pela ladeira, ou melhor, pelo sobe e desce da montanha russa que se transformou sua vida.
Estaciona sorrateiro bem em frente à sua casa e buzina ensurdecedoramente até que você não suporta e atende a porta.
Na verdade, você já estava ali esperando pela sua visita, meio que empacotando tudo aquilo que não servia mais, das roupas velhas aos instrumentos musicais encostados, dos extratos do banco aos velhos planos adiados para o futuro que não veio.
Era só uma questão de tempo para o caminhão chegar, mesmo assim você não se antecipou.
Não fez pequenos carretos para levar parte da tralha embora antes que a casa virasse um depósito abarrotado.
Dentro dela, foi se empihando as frustrações do dia a dia, os planos de estudo no exterior, os amores não realizados, os projetos de autonomia profissional, as viagens sonhadas.
Mas tudo bem.
Há que se dar o desconto de que o mais importante era viver um dia após o outro, como reza os manuais do budismo.
E na contabilidade geral, o saldo foi razoavelmente positivo.
Foram muitas alegrias, pequenos e grandes prazeres, projetos terminados e comemorados.
E se essas vitórias não foram apoteóticas, ao menos tornaram os dias mais suportáveis e alimentaram os sonhos de grandeza como contas de poupança que aos poucos se tornam polpudas.
Hoje é dia de olhar para dentro de casa como quem olha para o corpo por dentro, e repara com melancolia nas goteiras, nas manchas do piso, nos móveis lascados de uma existência comum.
Mas muita calma.
Não estamos aqui acusando nosso zelador interno de omissão diante das obras de reforma que tantas vezes foram socilitadas e ignoradas.
Como Lionel Shriver demonstrou, sempre que nos posicionamos abrimos mão de inúmeras possibilidades, mas nenhuma é superior à outra.
A decoração da nossa casa é só uma das infinitas combinações, mas para a maioria das passagens da vida, o cenário é irrelevante.
Nós só contamos com nosso termômetro interno para medir com quantas camadas de roupa vamos encarar a vida lá fora.
Mas insistimos em ignorá-los, nos deixando levar por ilusões de segurança e compreensão.
Para no final nos sentirmos como cachorros abandonados nas necessárias mudanças da vida.
Estaciona sorrateiro bem em frente à sua casa e buzina ensurdecedoramente até que você não suporta e atende a porta.
Na verdade, você já estava ali esperando pela sua visita, meio que empacotando tudo aquilo que não servia mais, das roupas velhas aos instrumentos musicais encostados, dos extratos do banco aos velhos planos adiados para o futuro que não veio.
Era só uma questão de tempo para o caminhão chegar, mesmo assim você não se antecipou.
Não fez pequenos carretos para levar parte da tralha embora antes que a casa virasse um depósito abarrotado.
Dentro dela, foi se empihando as frustrações do dia a dia, os planos de estudo no exterior, os amores não realizados, os projetos de autonomia profissional, as viagens sonhadas.
Mas tudo bem.
Há que se dar o desconto de que o mais importante era viver um dia após o outro, como reza os manuais do budismo.
E na contabilidade geral, o saldo foi razoavelmente positivo.
Foram muitas alegrias, pequenos e grandes prazeres, projetos terminados e comemorados.
E se essas vitórias não foram apoteóticas, ao menos tornaram os dias mais suportáveis e alimentaram os sonhos de grandeza como contas de poupança que aos poucos se tornam polpudas.
Hoje é dia de olhar para dentro de casa como quem olha para o corpo por dentro, e repara com melancolia nas goteiras, nas manchas do piso, nos móveis lascados de uma existência comum.
Mas muita calma.
Não estamos aqui acusando nosso zelador interno de omissão diante das obras de reforma que tantas vezes foram socilitadas e ignoradas.
Como Lionel Shriver demonstrou, sempre que nos posicionamos abrimos mão de inúmeras possibilidades, mas nenhuma é superior à outra.
A decoração da nossa casa é só uma das infinitas combinações, mas para a maioria das passagens da vida, o cenário é irrelevante.
Nós só contamos com nosso termômetro interno para medir com quantas camadas de roupa vamos encarar a vida lá fora.
Mas insistimos em ignorá-los, nos deixando levar por ilusões de segurança e compreensão.
Para no final nos sentirmos como cachorros abandonados nas necessárias mudanças da vida.
sexta-feira, 5 de setembro de 2014
A modelo de mão
Deus não a havia agraciado com um belo rosto nem uma grande inteligência.
Mas o acaso a brindou com uma graça inesperada para uma humilde empregada doméstica: mãos belíssimas.
Mãos que desafiavam o senso estético, capazes de afundar em impotência criativa um Michelangelo ou outro gênio da reprodução da anatomia humana.
Assim como os modelos de passarela, os de mão também precisam ser descobertos, e no caso de Lourdes isso se daria quando ela assumiu a vaga de faxineira na casa de um fotógrafo publicitário, Jorge.
Assim como um dentista primeiro nota a arcada dentária alheia, para o fotógrafo não foi difícil reparar no potencial daquelas mãos divinas em campanhas impressas, fato que logo comentou com sua esposa e não foi repreendido pela mesma, já que o assunto eram mãos e não uma bela bunda.
Definitivamente não eram mãos para mediarem os duros embates entre a palha de aço e a louça suja, concluiu Jorge.
E logo levou Lourdes para testes em seu estúdio.
Ao apresentar as primeiras fotos para um amigo agenciador, Jorge percebeu que ele mesmo poderia assumir a representatividade de Lourdes no mercado, podendo arrecador bem mais do que como fotógrafo.
Lourdes, em sua ingenuidade de quem não tinha feito nada mais na vida do que organizar a casa dos outros, aceitou de bom grado assinar um contrato para fazerem não sei o que com suas mãos.
E por não saber ler, só assinar seu nome, não pôde ler o detalhe do contrato que seria o calcanhar de aquiles de sua escalada para o sucesso: parar de roer suas unhas.
Óbvio que Jorge já tinha reparado na voracidade com que Lourdes róia seu futuro ganha pão e já alertava para encontrar alguma saída para o vício.
Inclusive marcou uma consulta a uma amiga psicóloga, para que esta detectasse o fundo emocional por trás do apetite de Lourdes por suas unhas.
Mas que nada, aquilo era instinto mais básico, reflexo da fome e carência que ainda subsistia no âmago da retirante nordestina.
Todas as estratégias possíveis foram tentadas, desde amarrar suas mãos, embeber as pontas de seus dedos em pimenta forte, até uma protese de mão foi projetada para mimetizar as mãos de Lourdes enquanto esta assistisse à novela, mas disso nada resultou.
Lourdes continuaria a destruir suas unhas com força descomunal, fazendo um estrago que nenhum programa de retoque daria jeito, de modo que a carreira de Lourdes como modelo de mão malogrou antes mesmo de começar.
Mas esse suposto fracasso seria sentido apenas pelo fotógrafo, que viu esvair pelas suas mãos a chance de fazer fortuna.
Para Lourdes, isso só se confirmava o exagero que se criou em torno de um privilégio que ela não sentia, pois na sua concepção, suas mãos continuavam sendo banais, como as de qualquer outra serviçal.
Então Lourdes ficou feliz de continuar a estragá-las como quisesse no tanque, na pia, à base de muito Veja Multiuso e Bombril, e principalmente, com dentadas famintas no embalo dos excitantes capítulos de sua novela favorita.
Mas o acaso a brindou com uma graça inesperada para uma humilde empregada doméstica: mãos belíssimas.
Mãos que desafiavam o senso estético, capazes de afundar em impotência criativa um Michelangelo ou outro gênio da reprodução da anatomia humana.
Assim como os modelos de passarela, os de mão também precisam ser descobertos, e no caso de Lourdes isso se daria quando ela assumiu a vaga de faxineira na casa de um fotógrafo publicitário, Jorge.
Assim como um dentista primeiro nota a arcada dentária alheia, para o fotógrafo não foi difícil reparar no potencial daquelas mãos divinas em campanhas impressas, fato que logo comentou com sua esposa e não foi repreendido pela mesma, já que o assunto eram mãos e não uma bela bunda.
Definitivamente não eram mãos para mediarem os duros embates entre a palha de aço e a louça suja, concluiu Jorge.
E logo levou Lourdes para testes em seu estúdio.
Ao apresentar as primeiras fotos para um amigo agenciador, Jorge percebeu que ele mesmo poderia assumir a representatividade de Lourdes no mercado, podendo arrecador bem mais do que como fotógrafo.
Lourdes, em sua ingenuidade de quem não tinha feito nada mais na vida do que organizar a casa dos outros, aceitou de bom grado assinar um contrato para fazerem não sei o que com suas mãos.
E por não saber ler, só assinar seu nome, não pôde ler o detalhe do contrato que seria o calcanhar de aquiles de sua escalada para o sucesso: parar de roer suas unhas.
Óbvio que Jorge já tinha reparado na voracidade com que Lourdes róia seu futuro ganha pão e já alertava para encontrar alguma saída para o vício.
Inclusive marcou uma consulta a uma amiga psicóloga, para que esta detectasse o fundo emocional por trás do apetite de Lourdes por suas unhas.
Mas que nada, aquilo era instinto mais básico, reflexo da fome e carência que ainda subsistia no âmago da retirante nordestina.
Todas as estratégias possíveis foram tentadas, desde amarrar suas mãos, embeber as pontas de seus dedos em pimenta forte, até uma protese de mão foi projetada para mimetizar as mãos de Lourdes enquanto esta assistisse à novela, mas disso nada resultou.
Lourdes continuaria a destruir suas unhas com força descomunal, fazendo um estrago que nenhum programa de retoque daria jeito, de modo que a carreira de Lourdes como modelo de mão malogrou antes mesmo de começar.
Mas esse suposto fracasso seria sentido apenas pelo fotógrafo, que viu esvair pelas suas mãos a chance de fazer fortuna.
Para Lourdes, isso só se confirmava o exagero que se criou em torno de um privilégio que ela não sentia, pois na sua concepção, suas mãos continuavam sendo banais, como as de qualquer outra serviçal.
Então Lourdes ficou feliz de continuar a estragá-las como quisesse no tanque, na pia, à base de muito Veja Multiuso e Bombril, e principalmente, com dentadas famintas no embalo dos excitantes capítulos de sua novela favorita.
quinta-feira, 4 de setembro de 2014
O trote silencioso
Madrugada no callcenter do CVV. O telefone toca duas vezes e a voluntária de plantão, que estava cochilando, atende:
- Centro de Valorizacão da Vida, boa noite?
- ...
- Boa noite?
- ...
- Alô? Alô? Alô?
- ...
- Tem alguém na linha?
- ...
- Escuta, você tá de brincadeira? Isso aqui não é a casa da mãe Joana não, viu.
- ...
- O CVV é uma entidade séria, deve ter gente precisando urgente ligar aqui.
- ...
- Chega, vou acabar com essa palhaçada, vou desligar em 3,2,1...
Nisso a voluntária ouve o ruído de quem bate no bocal do telefone:
- TUM-TUM-TUM...
- Ah, tem alguém aí então. Pode falar, sou toda ouvidos.
- TUM-TUM-TUM...
- Por favor, não seja tímido.
- TUM-TUM-TUM.
- Tá bom, tá bom. Vamos combinar o seguinte. Eu faço as perguntas e você bate no bocal uma vez para "SIM" e duas vezes para "NÃO". Combinado?
- TUM.
- Você tá de sacanagem?
- TUM-TUM.
- Você é tímido?
- TUM-TUM.
- Você tem algo confidencial pra falar e tem medo de gravação?
- TUM-TUM.
- Mas você não pode falar.
- TUM.
- Ah...entendi. Você é mudo.
- TUM.
- Está desesperado?
- TUM.
- Ai meu Deus...por favor, amigo, não desligue.
- TUM-TUM-TUM-TUM-TUM...
- Centro de Valorizacão da Vida, boa noite?
- ...
- Boa noite?
- ...
- Alô? Alô? Alô?
- ...
- Tem alguém na linha?
- ...
- Escuta, você tá de brincadeira? Isso aqui não é a casa da mãe Joana não, viu.
- ...
- O CVV é uma entidade séria, deve ter gente precisando urgente ligar aqui.
- ...
- Chega, vou acabar com essa palhaçada, vou desligar em 3,2,1...
Nisso a voluntária ouve o ruído de quem bate no bocal do telefone:
- TUM-TUM-TUM...
- Ah, tem alguém aí então. Pode falar, sou toda ouvidos.
- TUM-TUM-TUM...
- Por favor, não seja tímido.
- TUM-TUM-TUM.
- Tá bom, tá bom. Vamos combinar o seguinte. Eu faço as perguntas e você bate no bocal uma vez para "SIM" e duas vezes para "NÃO". Combinado?
- TUM.
- Você tá de sacanagem?
- TUM-TUM.
- Você é tímido?
- TUM-TUM.
- Você tem algo confidencial pra falar e tem medo de gravação?
- TUM-TUM.
- Mas você não pode falar.
- TUM.
- Ah...entendi. Você é mudo.
- TUM.
- Está desesperado?
- TUM.
- Ai meu Deus...por favor, amigo, não desligue.
- TUM-TUM-TUM-TUM-TUM...
Assinar:
Postagens (Atom)