domingo, 14 de setembro de 2014

O caminhão de mudanças

Ele vem correndo, descendo desgovernado pela ladeira, ou melhor, pelo sobe e desce da montanha russa que se transformou sua vida.
Estaciona sorrateiro bem em frente à sua casa e buzina ensurdecedoramente até que você não suporta e atende a porta.
Na verdade, você já estava ali esperando pela sua visita, meio que empacotando tudo aquilo que não servia mais, das roupas velhas aos instrumentos musicais encostados, dos extratos do banco aos velhos planos adiados para o futuro que não veio.
Era só uma questão de tempo para o caminhão chegar, mesmo assim você não se antecipou.
Não fez pequenos carretos para levar parte da tralha embora antes que a casa virasse um depósito abarrotado.
Dentro dela, foi se empihando as frustrações do dia a dia, os planos de estudo no exterior, os amores não realizados, os projetos de autonomia profissional, as viagens sonhadas.
Mas tudo bem.
Há que se dar o desconto de que o mais importante era viver um dia após o outro, como reza os manuais do budismo.
E na contabilidade geral, o saldo foi razoavelmente positivo.
Foram muitas alegrias, pequenos e grandes prazeres, projetos terminados e comemorados.
E se essas vitórias não foram apoteóticas, ao menos tornaram os dias mais suportáveis e alimentaram os sonhos de grandeza como contas de poupança que aos poucos se tornam polpudas.
Hoje é dia de olhar para dentro de casa como quem olha para o corpo por dentro, e repara com melancolia nas goteiras, nas manchas do piso, nos móveis lascados de uma existência comum.
Mas muita calma.
Não estamos aqui acusando nosso zelador interno de omissão diante das obras de reforma que tantas vezes foram socilitadas e ignoradas.
Como Lionel Shriver demonstrou, sempre que nos posicionamos abrimos mão de inúmeras possibilidades, mas nenhuma é superior à outra.
A decoração da nossa casa é só uma das infinitas combinações, mas para a maioria das passagens da vida, o cenário é irrelevante.
Nós só contamos com nosso termômetro interno para medir com quantas camadas de roupa vamos encarar a vida lá fora.
Mas insistimos em ignorá-los, nos deixando levar por ilusões de segurança e compreensão.
Para no final nos sentirmos como cachorros abandonados nas necessárias mudanças da vida.

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