Deus não a havia agraciado com um belo rosto nem uma grande inteligência.
Mas o acaso a brindou com uma graça inesperada para uma humilde empregada doméstica: mãos belíssimas.
Mãos que desafiavam o senso estético, capazes de afundar em impotência criativa um Michelangelo ou outro gênio da reprodução da anatomia humana.
Assim como os modelos de passarela, os de mão também precisam ser descobertos, e no caso de Lourdes isso se daria quando ela assumiu a vaga de faxineira na casa de um fotógrafo publicitário, Jorge.
Assim como um dentista primeiro nota a arcada dentária alheia, para o fotógrafo não foi difícil reparar no potencial daquelas mãos divinas em campanhas impressas, fato que logo comentou com sua esposa e não foi repreendido pela mesma, já que o assunto eram mãos e não uma bela bunda.
Definitivamente não eram mãos para mediarem os duros embates entre a palha de aço e a louça suja, concluiu Jorge.
E logo levou Lourdes para testes em seu estúdio.
Ao apresentar as primeiras fotos para um amigo agenciador, Jorge percebeu que ele mesmo poderia assumir a representatividade de Lourdes no mercado, podendo arrecador bem mais do que como fotógrafo.
Lourdes, em sua ingenuidade de quem não tinha feito nada mais na vida do que organizar a casa dos outros, aceitou de bom grado assinar um contrato para fazerem não sei o que com suas mãos.
E por não saber ler, só assinar seu nome, não pôde ler o detalhe do contrato que seria o calcanhar de aquiles de sua escalada para o sucesso: parar de roer suas unhas.
Óbvio que Jorge já tinha reparado na voracidade com que Lourdes róia seu futuro ganha pão e já alertava para encontrar alguma saída para o vício.
Inclusive marcou uma consulta a uma amiga psicóloga, para que esta detectasse o fundo emocional por trás do apetite de Lourdes por suas unhas.
Mas que nada, aquilo era instinto mais básico, reflexo da fome e carência que ainda subsistia no âmago da retirante nordestina.
Todas as estratégias possíveis foram tentadas, desde amarrar suas mãos, embeber as pontas de seus dedos em pimenta forte, até uma protese de mão foi projetada para mimetizar as mãos de Lourdes enquanto esta assistisse à novela, mas disso nada resultou.
Lourdes continuaria a destruir suas unhas com força descomunal, fazendo um estrago que nenhum programa de retoque daria jeito, de modo que a carreira de Lourdes como modelo de mão malogrou antes mesmo de começar.
Mas esse suposto fracasso seria sentido apenas pelo fotógrafo, que viu esvair pelas suas mãos a chance de fazer fortuna.
Para Lourdes, isso só se confirmava o exagero que se criou em torno de um privilégio que ela não sentia, pois na sua concepção, suas mãos continuavam sendo banais, como as de qualquer outra serviçal.
Então Lourdes ficou feliz de continuar a estragá-las como quisesse no tanque, na pia, à base de muito Veja Multiuso e Bombril, e principalmente, com dentadas famintas no embalo dos excitantes capítulos de sua novela favorita.
Nenhum comentário:
Postar um comentário