segunda-feira, 30 de novembro de 2015

O instinto de sobrevivência

A sobrevivência orgãnica, relacionada à saúde, é a primordial, diz respeito às funções básicas do corpo como comer, beber, respirar, dormir.
Enfim, é a sobrevivência por essência, a luta do corpo pela continuidade de suas funções que permitem manter o indivíduo vivo.
Mas, satisfeitas as funções vitais, podemos enumerar outros tipos de sobrevivência, principalmente as do ponto de vista psicológico.
A proteção da auto-estima, por exemplo, que protege o ego humano da destruição por experiências como o fim de um relacionamento, de uma carreira, de um sonho a que o ser em questão se encontra muito apegado.
Mas o ponto a que eu quero chegar vai além dessas modalidades de sobrevivência.
É uma indagação não sobre a sobrevivência imediata, mas a uma sobreviva relacionada à qualidade de vida do indivíduo.
A questão é: quanto mais a pessoa vive em conformidade com sua essência, não estaria ela mais propensa a uma vida longa?
Não estou considerando escolhas como se alimentar bem ou respirar um ar mais puro.
Me refiro a escolhas como viver de acordo com os princípios e aspirações estritamente individuais.
Como por exemplo, a "teimosia" de um artista em viver em função de sua arte, ainda que ela não renda a recompensa financeira nem pessoal.
Poderia também incluir aí as pessoas que abriram mão de um estilo de vida materialista por um jeito mais "light" de ser, às vezes de uma forma radical, como virando monges ou se dedicando integralmente à espiritualidade.
A questão que coloco é: não será o instinto de sobrevivência, em qualquer nível, ligado à sobrevivência em si?
Em outras palavras, executivos que lutam contra sua natureza não estariam se matando aos poucos?
Assim como artistas que não dão vazão ao seu instinto de criar não começariam a definhar?
Conheço um escritor que apresentou melhoras em seu estado de saúde assim que largou uma profissão que o consumia pelo exercício de sua arte em tempo integral.
Defendo que sim, que estar em sintonia consigo ajuda e muito na saúde.
Entendo que os consultórios de psicanálise não são altares para o pranto de mimados, pelo contrário, são importantes agentes para a cura de mentes e consequentemente, corpos doentes.
Daí a importância de compreender os recados que o corpo dá o tempo todo, quando não seguimos as diretrizes de vida que ele aponta.
São mensagens cifradas, manifestadas sob a forma de conflitos, geralmente em momentos de silêncio interior, quando não são abafados pela nossa ânsia de ocupar a mente com qualquer porcaria que se apresente.
Esses remédios para nossas angústias só podem ser manipulados pelo farmacêutico interno de cada um, e requerem vontade para serem elaborados.
Às vezes conseguimos acessá-los, às vezes não.
Muita vezes, precisamos de remédios novos porque os antigos já não fazem efeito, pois em cada etapa da vida as necessidades são diferentes.
Resumindo, nem só de pão e vinho vive o nosso organismo.
O alimento ideológico que escolhemos ou que a vida escolheu para nós, é tão essencial quanto.

domingo, 29 de novembro de 2015

40 dpi

Numa maternidade virtual, em um dia qualquer da era de aquarius, nasceu a menina em baixa resolução.
Ela não era a cara da mãe nem do pai, nem tinha as sombrancelhas da avó, ela era totalmente pixealizada.
Claro que isso não impediu o choro automático da mãe ao ver o rebento na mesa de parto, assim como o registro em câmera do pai babão.
Mas que era estranho ver a filha com a mesma cara indefinida do ultrassom, ah, isso era mesmo.
No começo foi difícil até dar papinha para o bebê, porque mal se podia localizar o contorno de sua boca - o que rendia dezenas de babadores sujos por dia.
Também foi problemático tirar qualquer documento da garotinha, pois uma foto 3x4 e nada dava no mesmo, já que não identificava ninguém.
Mas mesmo com tantos percalços, e despertando a curiosidade mais pela estranheza do que pela fofura, a garota pixealizada teve uma infância relativamente normal, passando ao largo do preconceito pelo menos na tenra infância.
Os problemas só começaram a aparecer naquela idade em que a rivalidade entre crianças aflora, onde a garotinha passou a ser alvo de zombaria na escola, na vizinhança, onde quer que ela buscasse seu lugar de existência.
Foi nesse fase que se iniciaram as crises de identidade e a garotinha naturalmente se isolou, trancafiada em seu quarto e passando horas a fio de frente para o espelho.
Obviamente os pais se preocuparam e ela acabou num consultório, onde a própria terapeuta se viu desorientada por aquele caso inédito.
O tempo passou, a garotinha se adaptou e a vida seguiu, pois a natureza é mesmo a mãe de todas as coisas.
Claro que a garotinha, apesar de sugerir uma belo rosto e um corpo bem torneado, teve que conformar com sua condição de excentricidade e se juntar aos "esquisitos" em todos os grupos de que fazia parte.
Foi assim na escola, no clube, na escola de teatro.
Isso não impediu que fizesse boas amizades, o que confortou seu coraçãozinho oprimido nas horas de baixo astral, por que todas as pessoas, inclusive as ditas normais, passam.
O que ela não esperava era que um certo rapazinho forasteiro, que havia passado quase toda a infância no exterior, se aproximasse dela como quem não queria nada e se tornasse, digamos, o primeiro affair de sua vida.
Era um tipo loirinho e misterioso, cabelo desgrenhada e visual punk, que havia chamado a atenção das garotas alternativas da escola, algumas muito mais bonitas que a menina pixealizada, se é que poderia haver um termo de comparação.
Talvez não houvesse mesmo, pois o rapazinho só tinha olhos para aquela fisionomia que não queria dizer nada.
Puxou papo, perguntou o nome, eram vistos juntos com frequencia, com a aura do amor a envolvê-los e encantá-los como uma redoma, despertando a atenção inclusive das patricinhas e outras garotas que nem se sentiam atraídas por ele, mas que invejavam aquele entrosamento perfeito.
Mas o enlevo da paixão e a certeza de ser amada não resolveu os complexos da garota, e quando ela se viu diante da possibilidade de ter um rosto como a das outras, não hesitou em procurar a solução.
Do outro lado do país, ouviu-se a notícia de um novo método parecido como uma cirurgia plástica, que multiplicava os pontos de um rosto e criava uma nova fisionomia.
No caso da garota, um novo rosto, baseado numa mistura dos traços dos pais.
Ela não queria que ninguém soubesse da sua intenção de mudar, nem mesmo seus progenitores.
Por isso falsificou assinaturas e conseguiu um empréstimo no banco, assim como a assinatura para fazer a cirurgia.
Para os pais, inventou uma excursão de escola, e para o rapaz, disse que uma tia havia falecido, e viajava às pressas para a cidade dela.
A cirurgia foi feita em pouco mais de 2 horas, nada complicado.
Exigia uma completo remapeamento de seu rosto e a produção de uma nova epiderme a partir de seu patrimônio genético, mas essas técnicas já eram dominadas há tempos pela moderna cirurgia plástica.
Já em recuperação em seu quarto d clínica, a garota permaneceu 1 dia com ataduras, com os olhos recobertos, que a impediu de ver sua nova feição.
Mas antes do nascer do dia seguinte ela já estava desperta, ansiosa pelo momento em que deixaria para trás sua vida de até então.
Por isso, quando ouviu o abrir da maçaneta e uma luz mais intensa atravessar a trama da gaze, sua caixa toráxica quase rompeu com as batidas do coração ansioso.
O médico a alertou que a princípio ela veria um rosto em estágio pós-cirúrgico, precisando aguardar a cicatrização e a pele se desprender para dar lugar ao resultado final.
Quando o doutor retirou a gaze, sua vista de turvou num átimo, e ela não sabia se a causa era a luz, as lágrimas que escorriam ou mesma a expectativa.
A enfermeira colocou um espelho de cabo em sua mão e quando a garota se mirou, não demorou nada para transbordar em lágrimas e felicidade.
Ela não segurou a emoção quando seus pais e os garoto ligaram mais tarde, mas não contou nada, deixando os pais preocupados e seu namorado, compreensivo, imaginando que era o efeito da perda da tia.
Guardou o segredo para uma grande surpresa, e o primeiro contemplado com a novidade era o garoto, aquele que a amou como ela era, pois aos pais sempre resta amar incondicionalmente.
Quando entrou triunfalmente pela porta da frente da escola, todos se voltaram para aquela menina linda, imaginando se tratar de uma aluna nova.
Sua chegada coincidiu com o intervalo das aulas e a garota não precisou de muitos passos para avistar seu amado cercado pelas megeras que, aproveitando-se de sua ausência, testavam a fidelidade do garoto.
Ela o observou à distância e, aliviada, viu ele abandonar o grupo e se isolar num canto, sacando seu celular com um ar de saudade.
Claro que a ligação era para ela.
Mas dessas coisas precisamos de confirmação.
E ela veio com o vibrar do aparelho em sua bolsa, que retirou com o cuidado de quem faz um carinho no rosto.
Ela atendeu com o "alô" mais confiante já emitido por um apaixonado.
Ele disse que estava com saudades.
Ela disse que deveria ser a proximidade e ele não entendeu a piada.
Só quando sentiu as mãos dela cobrindo seus olhos e o sopro morno de sua voz rouca acariciando suas orelhas.
Mas quando se virou, ele não entendeu.
Porque ela não o preparou para nada.
E mesmo de ouvir toda a explicação, ele não conseguiu explicar para si mesmo o sentimento de tê-la nos braços, mas ao mesmo tempo não tê-la mais.
Porque foi com esse sentimento de perda que ele a largou, e mesmo com súplicas engasgadas da menina, o garoto foi saindo, decepcionado, aturdido, desencontrado.
Os dias seguintes foram marcados por sentimentos contrastantes, porque os pais receberam muito bem a notícia, e não cansavam de admirar seu novo rosto, contemplar o que tinham de semelhança e imaginar como aquele semblante completaria os álbuns e as memórias de infância.
Mas do seu lado a menina era uma vale de angústia, pois não conseguia falar com o rapaz, e ele cruelmente não a recebeu quando foi procurá-lo em casa.
Depois de quase um mês, ele aceitou conversar e no novo encontro os sentimentos aflorados foram expostos à luz, para que decidissem os rumos da relação.
Aquele intervalo fez com o que o garoto investigasse a si mesmo, procurando nos escaninhos do seu mistério as respostas para sua confusão sentimental.
E ele emergiu dessa incursão com a certeza de que era ele a ponta fraca, já que percebeu que não tinha amado alguém, e sim a sua própria indefinição.
A garota ficou desconsolada, mas não quis argumentar.
Estava por demais magoada com sua desculpa incoerente, e interpretou isso como uma fraqueza incontornável de caráter.
Deu-lhe as costas e saiu para sua nova vida, deixando o rapaz encolhido, afundado em sua covardia.
A garota voltou para casa andando, com passos seguros que ela jamais imaginou que pudesse comandar, uma aura de força que foi percebida por todos que a cruzaram e viram passar, e principalmente, por ela mesma.

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Merda

Suponha que você tenha entre 35 e 45 anos, seja casado(a) e forme uma família de comercial de margarina.
Que seja bem sucedido e admirado em sua profissão, tenha boa aparência, amigos zelosos, bens e uma vida financeira confortável, e que o caminho que dará prosseguimento ao seu sucesso esteja asfaltado com aquela perfeição de rodovia privatizada.
Isso é o ideal da grande maioria das pessoas que nascem sob a regência do capitalismo, onde o american way of life é a promessa da terra prometida.
Ideal alcançado por pouquíssimas pessoas na teoria e por nenhuma na prática.
Porque esse modelo de vida não passa de mais um produto exposto em prateleira, e que não entrega as benesses prometidas em sua embalagem.
Mas isso só se constata depois de abrir o pacote, experimentar o produto e verificar que seus defeitos não são corrigidos pela assistência técnica, já que são erros de projeto.
Ah, quem mandou acreditar em propaganda enganosa.
Mas não é porque seu modelo de vida adquirido não funciona como o combinado, que você vai dar bandeira de que fez a compra errada.
Afinal você é um ícone de sucesso, e mesmo que muitos já tenham dito que o êxito é resultado da teimosia, ninguém é louco de admitir que falhou tantas vezes.
Porque nunca foi tão imperioso manter as aparências como em tempos de redes sociais.
Um post que entregue seu ser frágil pode suscitar manisfestações de solidariedade, mas pode ser uma estocada doída numa auto-imagem até então irretocável.
Então melhor continuar a desfilar com seu brinquedinho de controle remoto que não obedece direito a seus comandos.
Esse é um brinquedo de que se enjoa rapidamente, mas que se pode substituir por uma versão mais nova na próxima data festiva.
Alguns apregoam que o certo é doar seu brinquedo, não ele inteiro, mas aquelas poucas peças que não te farão diferença, mas que dará um gostinho de quero mais aos felizardos.
Outros radicalmente se desfazem do brinquedo e fazem do sentimento de desapego o brinquedo novo, também exibido para os outros em vitrine.
Não importa.
A maneira como você vai encaixar ou desencaixar as peças da sua vida não o redimem da realidade de que você só aprendeu a montar Lego.
De que agora pode ser tarde para montar outras coisas, coisas que não fazem sentido para seus coleguinhas de diversão e que tampouco você tem certeza de fazerem nexo na sua cabeça.
Esse é o teatro automático da sua vida, de que você talvez não seja capaz de sair de cena.
Merda.



Medo do papel em branco

Existia um menino pequenininho que morria de medo do papel em branco.
Era um pavor mesmo, porque mesmo adorando o desenho, e admirando os colegas que desenhavam bem, ele jamais se atreveu a se aproximar de uma mísera folha de papel vazia, aí incluídas as branquinhas e todos os seus matizes.
E o guri era mesmo um amante das artes, porque seja no aniversário ou natal, o presente que sempre pedia era uma caixa de qualquer coisa para colorir: lápis, giz de cera, canetinha.
Sua coleção desses artefatos era enorme e ocupava grande parte do armário e prateleiras de seu quarto, mas continuavam intactos, com suas pontas apontadíssimas, pela dificuldade do garotinho de empunhar qualquer "rabiscante" diante de uma folha vazia.
A superfície vazia, no caso, não incluíam paredes, porque desde cedo o garotinho tinha uma consciência cidadã suficiente para impedir que sucumbisse ao seu desejo e acabasse por emporcalhar os muros do bairro.
Mas o tempo passava, o garoto crescia, e não passava sua obsessão pelo papel em branco.
Até desviou seu foco para outros interesses à medida que ia crescendo, mas a sina também o perseguia em seus novos passos.
Sua primeira namorada, por exemplo, era filha de um dono de papelaria.
Seu professor de música não lecionava com folhas pautadas, somente com folhas em branco.
E assim por diante, fazendo com que o menino, agora um rapazote, enfim decidisse enfrentar seu medo.
Afinal, a puberdade era o momento ideal para se por à prova e amadurecer, segundo o que havia lido em tantos tratados sobre o assunto.
Resolveu que escreveria cartas de amor à moda antiga, de próprio punho, e remeteria à namorada.
Iniciou os preparativos para o momento de encarar seu trauma, primeiro escolhendo o artefato com que deitaria suas primeiras linhas nas páginas em branco.
Aponto vários tipos de lápis, testou diversas canetas, e enfim se decidiu por uma caneta tinteiro, já que a ocasião, solene para si mesmo, exigia um certo esmero na escrita.
Mas só de pousar a primeira folha de sulfite sobre a escrivaninha, sentiu as gotas de suor brotar da testa e escorrerem pelas têmporas, até pingarem sobre a folha.
Teve que substituí-la uma, duas, quantas vezes foram necessárias até estancar o suor.
Na sequencia, o simples empunhar da caneta tinteiro provocou uma tremedeira da mão que o bloqueou completamente, já que não desejava a hesitação como sinal inequívoco do primeiro traço de sua vida.
Mas o que mais temia aconteceu.
O pavor diante do papel voltou multiplicado, na forma de uma alucinação como se o branco leitoso em forma gasosa o envolvesse e o envenenasse, deixando o rapaz em estado letárgico.
Ele foi literalmente engolido pelo papel, que se dobrou na forma de um origami representando um unicórnio, e saiu voando pela janela aberta, como a metamorfose de alguém que nunca foi desse mundo.

terça-feira, 24 de novembro de 2015

Sabe de uma coisa?

Ao pé da letra a frase "A vida começa aos 40" pode ser interpretada erroneamente, como um alento a quem já passou pelos melhores anos da juventude ou um consolo nostálgico a quem nem chegou a viver intensamente sua fase dourada.
Mas só quem atingiu essa idade sabe o que isso significa.
Aos quarenta estamos livres - ou deveríamos estar - do fantasma da expectativa do porvir, aquela projeção do que você idealmente seria aos 30 e poucos anos.
No passado todo mundo acalentou um sonho do que poderia alcançar no ápice do seu potencial, e boa parte das pessoas - exceto as foram privados da sua potencialidade por carência de suas necessidades básicas - projetou para si mesmo um lugar ao sol que nem as próprias pessoas puderam na época dimensionar.
Mas elas chegam aos 35, 40 anos e constatam que suas vidas passaram muito ao largo do sonho.
Ou tomaram rumo diferente, em bifurcações que a vida nos oferece.
Muitos castelos de cartas foram desmoronados no caminho. E outros, feitos dos mais diversos materiais, se ergueram no lugar.
Se aos 40 você atingiu ou não o pódio planejado, pouco importa.
Aos vitoriosos caberá descobrir se as batatas alcançadas tinham mesmo o sabor imaginado.
E a partir daí, passar a buscar outro tipo de tubérculo.
Aos que sucumbirem ou acharem que sua busca foi em vão, restará o alívio de acordar do sonho - ou pesadelo - livres como nunca.
Mas desses sentimento, só os sábios desfrutarão.
A clarividência de que às vezes nos impomos tarefas que só a nós faz sentido só chega para quem consegue fazer o balanço dos 40 com sabedoria.
Porque é grande a chance dos "fracassados" se enredarem em novas missões auto-impostas substitutas dos sonhos juvenis.
E continuarem suas vidas nesse moto-contínuo de auto-flagelo de libertação.
Porque ainda não entenderam que a maior vitória todo mundo já alcançou: a de perceber que não há vitória a ser perseguida.