domingo, 29 de novembro de 2015

40 dpi

Numa maternidade virtual, em um dia qualquer da era de aquarius, nasceu a menina em baixa resolução.
Ela não era a cara da mãe nem do pai, nem tinha as sombrancelhas da avó, ela era totalmente pixealizada.
Claro que isso não impediu o choro automático da mãe ao ver o rebento na mesa de parto, assim como o registro em câmera do pai babão.
Mas que era estranho ver a filha com a mesma cara indefinida do ultrassom, ah, isso era mesmo.
No começo foi difícil até dar papinha para o bebê, porque mal se podia localizar o contorno de sua boca - o que rendia dezenas de babadores sujos por dia.
Também foi problemático tirar qualquer documento da garotinha, pois uma foto 3x4 e nada dava no mesmo, já que não identificava ninguém.
Mas mesmo com tantos percalços, e despertando a curiosidade mais pela estranheza do que pela fofura, a garota pixealizada teve uma infância relativamente normal, passando ao largo do preconceito pelo menos na tenra infância.
Os problemas só começaram a aparecer naquela idade em que a rivalidade entre crianças aflora, onde a garotinha passou a ser alvo de zombaria na escola, na vizinhança, onde quer que ela buscasse seu lugar de existência.
Foi nesse fase que se iniciaram as crises de identidade e a garotinha naturalmente se isolou, trancafiada em seu quarto e passando horas a fio de frente para o espelho.
Obviamente os pais se preocuparam e ela acabou num consultório, onde a própria terapeuta se viu desorientada por aquele caso inédito.
O tempo passou, a garotinha se adaptou e a vida seguiu, pois a natureza é mesmo a mãe de todas as coisas.
Claro que a garotinha, apesar de sugerir uma belo rosto e um corpo bem torneado, teve que conformar com sua condição de excentricidade e se juntar aos "esquisitos" em todos os grupos de que fazia parte.
Foi assim na escola, no clube, na escola de teatro.
Isso não impediu que fizesse boas amizades, o que confortou seu coraçãozinho oprimido nas horas de baixo astral, por que todas as pessoas, inclusive as ditas normais, passam.
O que ela não esperava era que um certo rapazinho forasteiro, que havia passado quase toda a infância no exterior, se aproximasse dela como quem não queria nada e se tornasse, digamos, o primeiro affair de sua vida.
Era um tipo loirinho e misterioso, cabelo desgrenhada e visual punk, que havia chamado a atenção das garotas alternativas da escola, algumas muito mais bonitas que a menina pixealizada, se é que poderia haver um termo de comparação.
Talvez não houvesse mesmo, pois o rapazinho só tinha olhos para aquela fisionomia que não queria dizer nada.
Puxou papo, perguntou o nome, eram vistos juntos com frequencia, com a aura do amor a envolvê-los e encantá-los como uma redoma, despertando a atenção inclusive das patricinhas e outras garotas que nem se sentiam atraídas por ele, mas que invejavam aquele entrosamento perfeito.
Mas o enlevo da paixão e a certeza de ser amada não resolveu os complexos da garota, e quando ela se viu diante da possibilidade de ter um rosto como a das outras, não hesitou em procurar a solução.
Do outro lado do país, ouviu-se a notícia de um novo método parecido como uma cirurgia plástica, que multiplicava os pontos de um rosto e criava uma nova fisionomia.
No caso da garota, um novo rosto, baseado numa mistura dos traços dos pais.
Ela não queria que ninguém soubesse da sua intenção de mudar, nem mesmo seus progenitores.
Por isso falsificou assinaturas e conseguiu um empréstimo no banco, assim como a assinatura para fazer a cirurgia.
Para os pais, inventou uma excursão de escola, e para o rapaz, disse que uma tia havia falecido, e viajava às pressas para a cidade dela.
A cirurgia foi feita em pouco mais de 2 horas, nada complicado.
Exigia uma completo remapeamento de seu rosto e a produção de uma nova epiderme a partir de seu patrimônio genético, mas essas técnicas já eram dominadas há tempos pela moderna cirurgia plástica.
Já em recuperação em seu quarto d clínica, a garota permaneceu 1 dia com ataduras, com os olhos recobertos, que a impediu de ver sua nova feição.
Mas antes do nascer do dia seguinte ela já estava desperta, ansiosa pelo momento em que deixaria para trás sua vida de até então.
Por isso, quando ouviu o abrir da maçaneta e uma luz mais intensa atravessar a trama da gaze, sua caixa toráxica quase rompeu com as batidas do coração ansioso.
O médico a alertou que a princípio ela veria um rosto em estágio pós-cirúrgico, precisando aguardar a cicatrização e a pele se desprender para dar lugar ao resultado final.
Quando o doutor retirou a gaze, sua vista de turvou num átimo, e ela não sabia se a causa era a luz, as lágrimas que escorriam ou mesma a expectativa.
A enfermeira colocou um espelho de cabo em sua mão e quando a garota se mirou, não demorou nada para transbordar em lágrimas e felicidade.
Ela não segurou a emoção quando seus pais e os garoto ligaram mais tarde, mas não contou nada, deixando os pais preocupados e seu namorado, compreensivo, imaginando que era o efeito da perda da tia.
Guardou o segredo para uma grande surpresa, e o primeiro contemplado com a novidade era o garoto, aquele que a amou como ela era, pois aos pais sempre resta amar incondicionalmente.
Quando entrou triunfalmente pela porta da frente da escola, todos se voltaram para aquela menina linda, imaginando se tratar de uma aluna nova.
Sua chegada coincidiu com o intervalo das aulas e a garota não precisou de muitos passos para avistar seu amado cercado pelas megeras que, aproveitando-se de sua ausência, testavam a fidelidade do garoto.
Ela o observou à distância e, aliviada, viu ele abandonar o grupo e se isolar num canto, sacando seu celular com um ar de saudade.
Claro que a ligação era para ela.
Mas dessas coisas precisamos de confirmação.
E ela veio com o vibrar do aparelho em sua bolsa, que retirou com o cuidado de quem faz um carinho no rosto.
Ela atendeu com o "alô" mais confiante já emitido por um apaixonado.
Ele disse que estava com saudades.
Ela disse que deveria ser a proximidade e ele não entendeu a piada.
Só quando sentiu as mãos dela cobrindo seus olhos e o sopro morno de sua voz rouca acariciando suas orelhas.
Mas quando se virou, ele não entendeu.
Porque ela não o preparou para nada.
E mesmo de ouvir toda a explicação, ele não conseguiu explicar para si mesmo o sentimento de tê-la nos braços, mas ao mesmo tempo não tê-la mais.
Porque foi com esse sentimento de perda que ele a largou, e mesmo com súplicas engasgadas da menina, o garoto foi saindo, decepcionado, aturdido, desencontrado.
Os dias seguintes foram marcados por sentimentos contrastantes, porque os pais receberam muito bem a notícia, e não cansavam de admirar seu novo rosto, contemplar o que tinham de semelhança e imaginar como aquele semblante completaria os álbuns e as memórias de infância.
Mas do seu lado a menina era uma vale de angústia, pois não conseguia falar com o rapaz, e ele cruelmente não a recebeu quando foi procurá-lo em casa.
Depois de quase um mês, ele aceitou conversar e no novo encontro os sentimentos aflorados foram expostos à luz, para que decidissem os rumos da relação.
Aquele intervalo fez com o que o garoto investigasse a si mesmo, procurando nos escaninhos do seu mistério as respostas para sua confusão sentimental.
E ele emergiu dessa incursão com a certeza de que era ele a ponta fraca, já que percebeu que não tinha amado alguém, e sim a sua própria indefinição.
A garota ficou desconsolada, mas não quis argumentar.
Estava por demais magoada com sua desculpa incoerente, e interpretou isso como uma fraqueza incontornável de caráter.
Deu-lhe as costas e saiu para sua nova vida, deixando o rapaz encolhido, afundado em sua covardia.
A garota voltou para casa andando, com passos seguros que ela jamais imaginou que pudesse comandar, uma aura de força que foi percebida por todos que a cruzaram e viram passar, e principalmente, por ela mesma.

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