segunda-feira, 18 de abril de 2016

A ficha que não cai

Só quem é contemporâneo do orelhão - aquele telefone público que sofria tanto vandalismo que acabou desaparecendo da face da Terra - entende a expressão "caiu a ficha".
Pra quem não sabe, esse telefone público antigo pedia que você depositasse uma ficha redonda de metal para completar a ligação.
O inconfundível eco que a queda dela fazia no interior do orelhão era o sinal inconfundível de que a ligação tinha se completado, ainda que pudesse cair no nanosegundo seguinte.
E aí a ficha voltava pra você ou era "engolida", confiscada pelo aparelho, o que nos incitava uma raiva que, tivéssemos o espírito dos vândalos, seria descontada no pobre do orelhão.
Na verdade o que ensejou essa dissertação sobre a ficha é um exemplo de quando ela jamais cai.
É o caso da ficha da passagem do tempo, mais especificamente, da curta duração da vida.
Ainda que eu possa elencar alguns casos onde essa ficha ameaça cair, mas é devolvida ao usuário.
Por exemplo, quando você reencontra alguém do passado depois de uns 15, 20, 30 anos de vida não compartilhada.
Nesses encontros é possível perceber a ação letal do tempo, na terra arrasada de rugas, cabelos brancos e membros flácidos.
Um outro caso onde a ficha cai, ou quase, é quando de repente acordamos pai, mãe ou com qualquer responsabilidade repentina sobre seres indefesos que chegam sem pedir licença na sua vida.
Ou quando perdemos entes queridos, em especial nossos pais, sob cujas asas protetoras imaginávamos poder nos recolher eternamente.
Mas embora a força dessas experiências caiam como fichas de 1 tonelada no fundo de nossas almas, ainda insistimos em ignorar a ação devastadora do tempo sobre nossos corpos, sonhos e esperanças.
Corremos atrás de prazos e datas na mesma medida em que vivemos num tempo suspenso no espaço, dissociado do processo contínuo da putrefação da nossa matéria.
A culpa talvez seja do nosso instinto de sobrevivência, que nos mantém alheios às urgências da vida, num modo stand-by confortável e covarde.
O fato é que a ficha da passagem do tempo nunca cai.
Ela sempre volta para nossos bolsos, como garantia de que sempre haverá uma próxima ligação ao curso contínuo da vida.
Até que enfim ela cai de fato, mas já não estamos aqui para ouvir o ruído da queda.

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