terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Gênese de um refugiado

Fugir não era uma questão de sobrevivência.
O hábito nos faz aceitar incômodos que nem percebemos.
Mesmo que aquele corpo não servisse mais, já era sua moradia desde que se conhecia por gente.
Aliás, esse era o problema, ele não se sentia mais gente.
Não no nível de exigência que sempre teve para si.
Ele era ambicioso, almejava alcançar os mais altos degraus de realização.
Ser feliz não vem ao caso.
Se realizar, no seu caso, tinha a ver com experimentar, se arriscar, descobrir.
E era nisso que o invólucro de seu corpo era limitante.
Era mandatório romper as paredes da epiderme e dos quilômetros de vasos e artérias onde cansou de dar voltas.
Para isso, precisava encontrar um meio.
Ou melhor, escolher o meio, já que muitas eram as opções para os que decidiam abandonar seus corpos.
Mas todas eram arriscadas e nenhuma delas prescindia de sorte para não deixar sequelas.
As pessoas aconselham: "se joga".
E ele bem que tentou, inúmeras vezes.
E até pensou ter atravessado a fronteira, navegado o mar morto de sua existência e atingido o outro lado da margem.
Mas, como se o barco estivesse ligado ao cais por um elástico, a cada partida foi trazido lentamente de volta ao ponto de origem.
Aos poucos foi aceitando a frustração de sempre voltar e suas tentativas de fuga se tornaram mecânicas.
Era como se repetisse uma história mentirosa para si, indefinidamente.
Até que um dia um barquinho aportou em sua praia, bem de frente a sua moradia.
Digamos que naufragou ali, depois de dias, meses, quem sabe décadas à deriva.
Seu bote salva-vidas.
No início ele nem o notou, a embarcação parecia tão frágil, difícil de imaginar que fosse salvar alguém.
Mas mesmo sem nada que o prendesse à praia, permaneceu por dias ali, subindo e descendo, suscitando nele uma desconfiança de que fosse mais que um barco.
Por isso, quando colocou seus pés hesitantes a bordo e o bote partiu mar afora, se sentiu imediatamente em comunhão com a embarcação.
Nem esboçou voltar para buscar algumas roupas e víveres.
Não olhou para trás.
Foi.
Quando o fundo do casco se elevou, foi como se seus pés se soltassem de amarras onipresentes que ele nem imaginava existir.
Naquela manhã de águas paradas, o motor de popa de seu coração produziu o próprio impulso de sua alma para longe de seu porto seguro.
E fez um vento imaginário verter júbilo de seu rosto cansado, avistando a terra prometida de sua imaginação.
Enfim, estava a caminho.

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