O forte cheiro de enxofre e o bafo quente das brasas foram suficientes para que Freitas, ainda que no escuro, sentisse o hálito de boas vindas de Lúcifer.
Como previsto, após uma vida vivida na contravenção, fora mandado para o umbral das camadas inferiores.
Apesar de não ter matado ninguém diretamente - indiretamente, todo crime pode matar - não se sentia injustiçado ao se ver misturado a assassinos, estupradores, assaltantes, bandidos de "patente" bem mais alta que ele.
Se é verdade que se misturar a esse tipo de gente pode corromper, isso era o de menos agora que ele estava condenado a passar uma infinidade de tempo sem ver o sol.
Não acreditava em reencarnação, não se via voltando à terra sob a forma orgânica mais desprezível.
Queria fazer daquele primeiro dia nas profundezas o início de um repouso mais do que merecido, ainda que não fosse na colônia de férias de seus sonhos.
Aos poucos foi reconhecendo alguns companheiros de ostracismo compulsório.
Algumas celebridades como políticos e apresentadores de enlatados televisivos, pessoas de seu convívio como o pároco da missa dominical, seu vizinho, o chefe de 30 anos de repartição pública, a diretora da instituição de caridade para a qual contribuiu a vida inteira, seu sogro.
Não se surpreendia e nem se indagava sobre os pecados que levaram essas pessoas a disputar com ele o escasso oxigênio naquele ambiente empestiado do cheiro de enxofre.
Para Freitas isso pouco importava, em vida ele já contestava a visão maniqueísta, preferindo adotar o equilíbrio do julgamento sobre pessoas e coisas.
Mas sentiu um pequeno arrepio quando divisou entre os pecadores o perfil de alguém que lhe pareceu bastante familiar e que, depois de esfregar os olhos,ele confirmou ser ninguém menos do que ela, a santidade em pessoa Madre Teresa de Calcutá.
Sua identificação não foi automática, já que a idosa, embora mantivesse o mesmo estilo de indumentária com que era reconhecida na mídia, não tinha exatamente o comportamento comedido da semi-santa com que estamos acostumados.
Ao contrário, ela gesticulava muito com os braços, conversando e rindo em voz alta, centro das atenções de um grupo heterodoxo que reunía figuras carimbadas do inferno como Hitler, Stalin, Charles Manson, Saddan Hussein e Orestes Quércia.
Madre Teresa contava causos que levava seus interlocutores às gargalhadas e Freitas não se conteve em se aproximar para ouvir mais de perto.
Aos poucos Freitas foi se infiltrando até entrar na roda de conversa, não encontrando resistência por parte das celebridades, que julgavam conhecer de vista aquele homem de meia idade.
Foi assim que Freitas se inteirou das atrocidades cometidas pela velhinha em vida, através de relatos onde se declarou culpada dos mais diversos crimes ocultados por sua imagem de santidade.
Até o próprio Lúcifer, já íntimo daqueles maldosos célebres, confessou que a Madre já estava em sua lista muito antes de se envolver com tantos delitos, já que em sua avaliação a vaidade era o maior dos crimes.
Sob esse ponto de vista, a soberba de ser a pessoa mais bondosa do mundo foi mais do que suficiente para jogar Teresa no calabouço eterno.
Freitas entendeu os motivos da condenação da idosa, embora não concordasse.
Quando a roda se desfez e Freitas cruzou com a ex-bondosa, ao encarar aquele preservado olhar de santa, ele não resistiu e indagou:
"Até tu, Teresa?"
Ao que a velhinha retrucou, sem titubear:
"Estamos todos perdoados, meu filho".
terça-feira, 31 de maio de 2016
sábado, 21 de maio de 2016
O esquecedor
Ele sempre tinha a impressão de que estava esquecendo algo.
Quando saía de casa, fechava a porta do carro, saindo do trabalho.
Uma sensação de vazio, de deixar pra trás algo muito importante, que o faria dar meia volta sem titubear.
Às vezes, já dentro do elevador ou chegando ao escritório percebia que era uma coisinha de nada, um guarda-chuva, uma carregador de celular, uma janela aberta, a chave de uma gaveta.
Algo assim que daria uma pequenina dor de cabeça, um percalço que não impediria aquele dia de transcorrer como todos os outros.
Era uma mecanismo de defesa, seu subsconsciente avisando aquele homem já tão prevenido.
Mas ele se perguntava o porquê de viver tão alarmado, com sua cabeça se precavendo em detalhes mínimos e quase insignificantes.
Talvez houvesse algo por trás, pequenas preocupações escondendo uma ameaça maior à quebra de sua paz interior.
Só com o tempo foi percebendo que não era uma alerta para evitar o esquecimento de objetos e de providências para o correto desenrolar do dia.
Era a vontade maquiada do subsconsciente de avisar sobre a transitoriedade do tempo, sobre as coisas que não poderiam deixar de ser feitas.
Porque o foco nos detalhes insignificantes do dia-a-dia o faziam se esquecer de tomar as providências para realizar seus objetivos e sonhos, e isso sim eram um problema que lhe tiravam um sono.
Tudo que havia acalentado por longo tempo ainda estava em compasso de espera, por isso ele vivia angustiado, afundado em um um lodaçal de esperanças infrutíferas.
Resolveu parar por um momento e fazer um balanço.
Fazer um checkup geral da alma e avaliar o que valia ou não a pena.
Assim como se precisa de uma faxina pesada de vez em quando, ele precisava dar um basta na bagunça de seu quarto de despejos interno, se livrar de antigas crenças que o haviam paralisado tanto e por tanto tempo.
Não queria mais se sentir impotente diante do precipício que o separava de seus desejos, do qual, por manter sempre distância segura, não sabia nem a profundidade.
Então passou a se prevenir menos.
A se permitir esquecer mais.
A se perdoar por pequenos esquecimentos, panelas queimadas e luzes acesas por um fim de semana inteiro de ausência.
Porque queria ficar mais próximo de sua falibilidade.
Se expor aos riscos de fratura de suas certezas sólidas.
Estava focado nas tarefas diárias que fariam muita diferença a curto prazo.
Por isso saiu sem levar o guarda chuva.
E finalmente tomou uma tempestade de realidade redentora.
Quando saía de casa, fechava a porta do carro, saindo do trabalho.
Uma sensação de vazio, de deixar pra trás algo muito importante, que o faria dar meia volta sem titubear.
Às vezes, já dentro do elevador ou chegando ao escritório percebia que era uma coisinha de nada, um guarda-chuva, uma carregador de celular, uma janela aberta, a chave de uma gaveta.
Algo assim que daria uma pequenina dor de cabeça, um percalço que não impediria aquele dia de transcorrer como todos os outros.
Era uma mecanismo de defesa, seu subsconsciente avisando aquele homem já tão prevenido.
Mas ele se perguntava o porquê de viver tão alarmado, com sua cabeça se precavendo em detalhes mínimos e quase insignificantes.
Talvez houvesse algo por trás, pequenas preocupações escondendo uma ameaça maior à quebra de sua paz interior.
Só com o tempo foi percebendo que não era uma alerta para evitar o esquecimento de objetos e de providências para o correto desenrolar do dia.
Era a vontade maquiada do subsconsciente de avisar sobre a transitoriedade do tempo, sobre as coisas que não poderiam deixar de ser feitas.
Porque o foco nos detalhes insignificantes do dia-a-dia o faziam se esquecer de tomar as providências para realizar seus objetivos e sonhos, e isso sim eram um problema que lhe tiravam um sono.
Tudo que havia acalentado por longo tempo ainda estava em compasso de espera, por isso ele vivia angustiado, afundado em um um lodaçal de esperanças infrutíferas.
Resolveu parar por um momento e fazer um balanço.
Fazer um checkup geral da alma e avaliar o que valia ou não a pena.
Assim como se precisa de uma faxina pesada de vez em quando, ele precisava dar um basta na bagunça de seu quarto de despejos interno, se livrar de antigas crenças que o haviam paralisado tanto e por tanto tempo.
Não queria mais se sentir impotente diante do precipício que o separava de seus desejos, do qual, por manter sempre distância segura, não sabia nem a profundidade.
Então passou a se prevenir menos.
A se permitir esquecer mais.
A se perdoar por pequenos esquecimentos, panelas queimadas e luzes acesas por um fim de semana inteiro de ausência.
Porque queria ficar mais próximo de sua falibilidade.
Se expor aos riscos de fratura de suas certezas sólidas.
Estava focado nas tarefas diárias que fariam muita diferença a curto prazo.
Por isso saiu sem levar o guarda chuva.
E finalmente tomou uma tempestade de realidade redentora.
quarta-feira, 18 de maio de 2016
As vozes
Heleno era o morador mais misterioso do condomínio.
Não que tivesse uma aparência excêntrica, algo que chamasse mais a atenção do que o necessário.
É que apesar de introvertido, do tipo que cumprimenta no máximo com o olhar, ele era visto o tempo todo pelos moradores, subindo e descendo o elevador.
Fazia esse movimento de vai e volta sem aparente motivo, como se o elevador fosse pra ele um brinquedo que não enjoava.
É compreensível o estranhamento, já que para a maioria das pessoas, esperar e pegar um elevador não passa de uma chatice necessária, ainda mais quando alguém puxa uma conversa indesejável.
Por isso era no mínimo intrigante descobrir as razões do "tesão" de Heleno por elevadores.
Na verdade, Heleno gostava de ouvir "vozes".
Aqueles lampejos de conversas que testemunhamos quando passamos rapidamente de elevador pelos andares.
São pequenas amostras de diálogo, pequenas interjeições no dia-a-dia, com que Heleno construía mundos inteiros em sua imaginação de voyeur.
Porque era isso que Heleno era: um voyeur da vida.
Alguém que sentia prazer em idealizar vidas alheias, só que em seu caso não sendo nem ao menos uma testemunha ocular.
Para ele, as pequenas interferências sonoras entre um andar em outro já eram suficientes para compor uma narrativa, mais do que fantasiosa, sobre aquelas pessoas comuns.
Era como se o prédio fosse uma coleção de literatura, onde a cada andar correspondia um romance, narrando a vida daquelas pessoas.
E cada romance era de um gênero diferente, determinado pelas primeiras impressões que Heleno tivesse da trama.
Imaginou pessoas mantidas em cativeiro, grandes reuniões de maçonaria, escritórios de conspiração, casas de masoquismo.
Alguém já disse que o problema da imaginação era que ela não tinha limites, mas no caso Heleno usava sua imaginação a favor de uma vida mais rica, ainda que apenas dentro de sua caixa craniana.
O difícil era, à medida que as histórias já se desenrolavam, encarar seus vizinhos como as pessoas pacatas que eram.
Para Heleno, entrar no elevador era como entrar em 25 tramas diferentes e sucessivas, onde ele pulava de uma para outra sem necessariamente seguir a ordem dos andares.
Mas claro que tamanha exploração de sua imaginacão era perigosa, e um dia Heleno se viu vítima de conspiracões que ele mesmo construiu.
Aqueles susurros que ele caçava em seu puçá imaginativo começaram a soar como ameaças diretas a Heleno, que passou a se apavorar cada vez que o elevador parava em um andar.
Quando isso acontecia, preparava-se para o pior, esperando receber a estocada fatal que poria fim às suas tramas.
Mesmo quando os moradores entravam no elevador e nada se sucedia, Heleno via assassinos por trás de expressões de uma impassibilidade absoluta.
Até de inocentes crianças Heleno se afastava, temendo um ataque surpresa fatal.
Sua paranóia só aumentava quando um dia um acontecimento precipitou o fim.
O elevador parou subitamente, completamente lotado.
A ameaça que já era enorme, condimentada com a sensação claustrofóbica, causou uma síncope que deitou Heleno ao chão irremediavelmente.
Quando os bombeiros enfim resgataram os moradores, o corpo de Heleno jazia há horas no canto do elevador, em posição de súplica em direção aos seus "assassinos".
Naquele átimo entre o desmaio e seu total desfalecimento, Heleno entendeu que aquelas 25 histórias dos 25 andares eram apenas tramas secundárias da verdadeira história que ele queria contar.
A história do fim premeditado de sua vida.
Não que tivesse uma aparência excêntrica, algo que chamasse mais a atenção do que o necessário.
É que apesar de introvertido, do tipo que cumprimenta no máximo com o olhar, ele era visto o tempo todo pelos moradores, subindo e descendo o elevador.
Fazia esse movimento de vai e volta sem aparente motivo, como se o elevador fosse pra ele um brinquedo que não enjoava.
É compreensível o estranhamento, já que para a maioria das pessoas, esperar e pegar um elevador não passa de uma chatice necessária, ainda mais quando alguém puxa uma conversa indesejável.
Por isso era no mínimo intrigante descobrir as razões do "tesão" de Heleno por elevadores.
Na verdade, Heleno gostava de ouvir "vozes".
Aqueles lampejos de conversas que testemunhamos quando passamos rapidamente de elevador pelos andares.
São pequenas amostras de diálogo, pequenas interjeições no dia-a-dia, com que Heleno construía mundos inteiros em sua imaginação de voyeur.
Porque era isso que Heleno era: um voyeur da vida.
Alguém que sentia prazer em idealizar vidas alheias, só que em seu caso não sendo nem ao menos uma testemunha ocular.
Para ele, as pequenas interferências sonoras entre um andar em outro já eram suficientes para compor uma narrativa, mais do que fantasiosa, sobre aquelas pessoas comuns.
Era como se o prédio fosse uma coleção de literatura, onde a cada andar correspondia um romance, narrando a vida daquelas pessoas.
E cada romance era de um gênero diferente, determinado pelas primeiras impressões que Heleno tivesse da trama.
Imaginou pessoas mantidas em cativeiro, grandes reuniões de maçonaria, escritórios de conspiração, casas de masoquismo.
Alguém já disse que o problema da imaginação era que ela não tinha limites, mas no caso Heleno usava sua imaginação a favor de uma vida mais rica, ainda que apenas dentro de sua caixa craniana.
O difícil era, à medida que as histórias já se desenrolavam, encarar seus vizinhos como as pessoas pacatas que eram.
Para Heleno, entrar no elevador era como entrar em 25 tramas diferentes e sucessivas, onde ele pulava de uma para outra sem necessariamente seguir a ordem dos andares.
Mas claro que tamanha exploração de sua imaginacão era perigosa, e um dia Heleno se viu vítima de conspiracões que ele mesmo construiu.
Aqueles susurros que ele caçava em seu puçá imaginativo começaram a soar como ameaças diretas a Heleno, que passou a se apavorar cada vez que o elevador parava em um andar.
Quando isso acontecia, preparava-se para o pior, esperando receber a estocada fatal que poria fim às suas tramas.
Mesmo quando os moradores entravam no elevador e nada se sucedia, Heleno via assassinos por trás de expressões de uma impassibilidade absoluta.
Até de inocentes crianças Heleno se afastava, temendo um ataque surpresa fatal.
Sua paranóia só aumentava quando um dia um acontecimento precipitou o fim.
O elevador parou subitamente, completamente lotado.
A ameaça que já era enorme, condimentada com a sensação claustrofóbica, causou uma síncope que deitou Heleno ao chão irremediavelmente.
Quando os bombeiros enfim resgataram os moradores, o corpo de Heleno jazia há horas no canto do elevador, em posição de súplica em direção aos seus "assassinos".
Naquele átimo entre o desmaio e seu total desfalecimento, Heleno entendeu que aquelas 25 histórias dos 25 andares eram apenas tramas secundárias da verdadeira história que ele queria contar.
A história do fim premeditado de sua vida.
segunda-feira, 16 de maio de 2016
A indústria da notoriedade
Ele estava no topo, no auge, em seu esplendor.
Aclamado no Oscar, em Cannes, Berlim.
Prestigiado pelos colegas, amado pelos amigos e familiares.
Por isso ninguém entendeu nada.
Acordar morto numa suíte presidencial, acompanhado da família que acabava de chegar para prestigiar a entrega de mais um prêmio, não estava mesmo no script.
Era no mínimo estranho, porque a morte como opção não era uma opção, pelo menos não nesse momento.
Por isso, quando a falta de indícios de crime atribuiu sua morte à insanidade do artista, a maioria, inclusive seus familiares e staff, se deu por satisfeita.
Alguma coisa naquele laudo, porém, cheirava a fraude.
Pois a polícia dera com o apartamento revirado como se tivesse sido invadido, e isso foi estranhamente ocultado das provas, como um silêncio comprado.
Por isso o investigação se deu por encerrada num prazo inaceitavelmente curto, o que só contou com a anuência da família porque a perícia foi taxativa quanto ao suicídio e, ademais, nenhum membro da família ou equipe de filmagem queria permanecer numa cidade estrangeira acompanhando um caso que não mostrava sinais de reviravolta.
O fato de que ninguém tivesse ficado minimamente intrigado também levantou suspeitas entre os que consentiram com o arquivamento do processo.
Porque se apenas um deles se detivesse na análise racional dos fatos, teria por certo dado prosseguimento às investigações.
O que provavelmente redundaria em mais queima de arquivo vivo.
Arfonso perdeu a vida porque descobriu o que não deveria: a grande roda da humanidade.
Todo um sistema de manipulação de corações e mentes, que faz a sociedade funcionar como um relógio.
É simples: quantos de nós acordaríamos todos os dias para ajudar a roda a girar, se não nos fosse dado a esperança de uma compensação, ainda que mínima?
Não digo no caso da classe trabalhadora mais desesperançada, dos quais se diz que "vende o almoço pra comprar o jantar".
Me refiro a nó, pessoas instruídas que, contra todas as pregorrativas da razão, não resistem a se agarrar a qualquer fiapo de promessa de bem-aventurança.
Porque o sistema sempre encontra um meio de fazer você acreditar que está no trilho, mesmo que não saibamos o que nos espera na última estação.
Mas o que seria esse prêmio, afinal?
Pode ser de todos os tipos de formas, tem sempre um que "cola" com o seu jeito de enxergar a vida.
Para mulheres, a maternidade.
Para ambiciosos, o dinheiro e poder.
Para artistas, o afago do ego.
Para fanáticos religiosos, a promessa de vida eterna.
No caso do cineasta, era mais um prêmio, só que Arfonso acabou testemunhando mais do que deveria.
Devido a alguma falha do sistema ele acabou flagrando conversas, o que o levou a empreender uma investigação pessoal.
Foi um erro se meter sozinho no que é provavelmente o esquema dos esquemas, o maior de todos.
Acordou inapelavelmente morto, assim como acontecera com milhares de outras vítimas que estavam no lugar errado no momento idem, vendo coisas que não deveriam.
Para Arfonso, mais doloroso que deixar uma vida glamurosa foi descobrir que ele mesmo era o protagonista de uma fábula inventada, o eleito para receber as glórias nem sempre merecidas por seu trabalho.
Enfim ele entendera porque tinha sido incompreensivelmente tão sortudo.
Era obra de um destino, mas de um destino fabricado.
Jamais imaginaria que seu último suspiro seria de estupefacão diante da revelação do segredo que rege a própria vida.
No breve momento entre a descoberta e sua morte, Arfonso teve uma iluminação.
Descobriu que havia sim um juízo final.
Onde ele acabou pagando por atos de que nunca foi protagonista.
Aclamado no Oscar, em Cannes, Berlim.
Prestigiado pelos colegas, amado pelos amigos e familiares.
Por isso ninguém entendeu nada.
Acordar morto numa suíte presidencial, acompanhado da família que acabava de chegar para prestigiar a entrega de mais um prêmio, não estava mesmo no script.
Era no mínimo estranho, porque a morte como opção não era uma opção, pelo menos não nesse momento.
Por isso, quando a falta de indícios de crime atribuiu sua morte à insanidade do artista, a maioria, inclusive seus familiares e staff, se deu por satisfeita.
Alguma coisa naquele laudo, porém, cheirava a fraude.
Pois a polícia dera com o apartamento revirado como se tivesse sido invadido, e isso foi estranhamente ocultado das provas, como um silêncio comprado.
Por isso o investigação se deu por encerrada num prazo inaceitavelmente curto, o que só contou com a anuência da família porque a perícia foi taxativa quanto ao suicídio e, ademais, nenhum membro da família ou equipe de filmagem queria permanecer numa cidade estrangeira acompanhando um caso que não mostrava sinais de reviravolta.
O fato de que ninguém tivesse ficado minimamente intrigado também levantou suspeitas entre os que consentiram com o arquivamento do processo.
Porque se apenas um deles se detivesse na análise racional dos fatos, teria por certo dado prosseguimento às investigações.
O que provavelmente redundaria em mais queima de arquivo vivo.
Arfonso perdeu a vida porque descobriu o que não deveria: a grande roda da humanidade.
Todo um sistema de manipulação de corações e mentes, que faz a sociedade funcionar como um relógio.
É simples: quantos de nós acordaríamos todos os dias para ajudar a roda a girar, se não nos fosse dado a esperança de uma compensação, ainda que mínima?
Não digo no caso da classe trabalhadora mais desesperançada, dos quais se diz que "vende o almoço pra comprar o jantar".
Me refiro a nó, pessoas instruídas que, contra todas as pregorrativas da razão, não resistem a se agarrar a qualquer fiapo de promessa de bem-aventurança.
Porque o sistema sempre encontra um meio de fazer você acreditar que está no trilho, mesmo que não saibamos o que nos espera na última estação.
Mas o que seria esse prêmio, afinal?
Pode ser de todos os tipos de formas, tem sempre um que "cola" com o seu jeito de enxergar a vida.
Para mulheres, a maternidade.
Para ambiciosos, o dinheiro e poder.
Para artistas, o afago do ego.
Para fanáticos religiosos, a promessa de vida eterna.
No caso do cineasta, era mais um prêmio, só que Arfonso acabou testemunhando mais do que deveria.
Devido a alguma falha do sistema ele acabou flagrando conversas, o que o levou a empreender uma investigação pessoal.
Foi um erro se meter sozinho no que é provavelmente o esquema dos esquemas, o maior de todos.
Acordou inapelavelmente morto, assim como acontecera com milhares de outras vítimas que estavam no lugar errado no momento idem, vendo coisas que não deveriam.
Para Arfonso, mais doloroso que deixar uma vida glamurosa foi descobrir que ele mesmo era o protagonista de uma fábula inventada, o eleito para receber as glórias nem sempre merecidas por seu trabalho.
Enfim ele entendera porque tinha sido incompreensivelmente tão sortudo.
Era obra de um destino, mas de um destino fabricado.
Jamais imaginaria que seu último suspiro seria de estupefacão diante da revelação do segredo que rege a própria vida.
No breve momento entre a descoberta e sua morte, Arfonso teve uma iluminação.
Descobriu que havia sim um juízo final.
Onde ele acabou pagando por atos de que nunca foi protagonista.
domingo, 15 de maio de 2016
Clube dos Ultrapassados
Bento acordou com gosto acre na boca, mal abrindo e já cerrando os olhos sob a forte luz de um abajur esquecido desleixadamente aceso.
Apóia o cotovelo sobre o colchão e antes de alcançar o interruptor, fita a pilha dos antigos guias de rua que compõem sua mesa de cabeceira.
Com um suspiro, enfim apaga a luz.
Pega o celular na cabeceira e vê as horas: 3 da manhã.
Lê por cima algumas mensagens de amigos na tela e com outro suspiro lembra que pela primeira vez se esqueceu do encontro do pessoal do Clube.
É assim que chama seu grupo de amigos mais íntimos, formado por inventores de coisas que foram muito úteis no passado, mas que agora jazem no esquecimento dos mais velhos.
O extinto guia de ruas, por exemplo, era um filho seu.
O grupo ainda reunia inventores de coisas que um dia achamos que não viveríamos sem, como o videocassete, a máquina de escrever e o fax.
O Clube dos Ultrapassados é um apanhado de pessoas criativas que já conheceram o apogeu, mas que hoje estão no limbo, assim como suas invenções estão jogadas num cantinho de quarto de despejos ou numa barraca de feirinha de antiguidades.
A cada ano e com cada vez mais frequência o Clube ganhava novas adesões, à medida em que a voracidade do mercado torna tudo rapidamente obsoleto.
Foi o que aconteceu com o inventor do walkman, suplantado pelo do iPod, que por sua vez foi aposentado quando os celulares passaram a armazenar música.
A sede do Clube também era emblemática, um depósito de um parque de diversões de bairro abandonado, exposto à decomposição implacável do sol e da chuva.
O pequeno balcão era forrado de lembranças gloriosas de seus membros: recortes de jornais e patentes, registros de patentes, protótipos de invenções, carcaças dos primeiros modelos de suas invenções.
Bento era o decano dos atuais membros, o presidente do conselho, e tinha a obrigação moral de abrir todas as reuniões.
Sua ausência naquele quinta-feira, quando tinham combinado de analisar a admissão de mais membros - o inventor do HD externo, com o advento da nuvem, já tinha sua inscrição encaminhada - era surpreendente, até para o próprio Bento.
Era estranho que tivesse cometido esse suposto ato falho, ele que lutava ferrenhamente para não deixá-los cair no esquecimento.
Talvez o dia intenso de trabalho do dia anterior, agora como motorista clandestino de Uber - já vislumbrava o dia em que os taxistas chegariam cabisbaixos pedindo sua admissão no Clube - o deixou tão extenuado, que sua agenda mental tinha sido deletada pelo banho quente, depois do que se atirou no colchão como uma pedra que cai num lago cristalino de água parada.
Todos esses questionamentos vieram à mente enquanto lia uma por uma as mensagens preocupadas de seus amigos.
"Onde você está?", "Está tudo bem?", "Esqueceu nossa reunião?".
Soube que um deles chegou até a bater na porta, mas foi demovido de acordá-lo por sua esposa, que preferiu deixar Bento gozar do descanso dos justos.
Ela sabia o quanto era exaustivo aquela jornada de motorista, ele que tinha passado sua vida despachando em escritórios.
Fora que Bento se sentia como um traidor do movimento, ao tirar vantagem de uma nova tecnologia, o Uber, em detrimento do modo analógico de operação dos taxistas.
Esse conflito era que verdadeiramente o exauria.
Muitos taxistas amigos viam em Bento um ombro amigo para deitar suas cabecinhas e lamentar com nostalgia de tempos com menos corridas e mais lucro.
Enfim, quando o despertador enfim tocou, Bento meio que já compreendia seu esquecimento.
Talvez fosse a hora de passar o bastão do Clube.
Algo dentro de si pedia que ele se desvinculasse desse passado preservado como numa câmera frigorífica, mas que agora o degelo expunha sua podridrão.
Por isso sua primeira providência ao se levantar foi desmontar a mesa de cabeceira improvisada, fazendo ecoar cada lista no fundo do lixão de recicláveis como uma bomba explodindo seu passado.
Tomou um banho, baixou a atualização do aplicativo do Uber e saiu para mais um dia de labuta.
Pediu sua renúncia do Clube pelo whatsapp e parou no próximo food truck para tomar seu café da manhã orgânico.
Apóia o cotovelo sobre o colchão e antes de alcançar o interruptor, fita a pilha dos antigos guias de rua que compõem sua mesa de cabeceira.
Com um suspiro, enfim apaga a luz.
Pega o celular na cabeceira e vê as horas: 3 da manhã.
Lê por cima algumas mensagens de amigos na tela e com outro suspiro lembra que pela primeira vez se esqueceu do encontro do pessoal do Clube.
É assim que chama seu grupo de amigos mais íntimos, formado por inventores de coisas que foram muito úteis no passado, mas que agora jazem no esquecimento dos mais velhos.
O extinto guia de ruas, por exemplo, era um filho seu.
O grupo ainda reunia inventores de coisas que um dia achamos que não viveríamos sem, como o videocassete, a máquina de escrever e o fax.
O Clube dos Ultrapassados é um apanhado de pessoas criativas que já conheceram o apogeu, mas que hoje estão no limbo, assim como suas invenções estão jogadas num cantinho de quarto de despejos ou numa barraca de feirinha de antiguidades.
A cada ano e com cada vez mais frequência o Clube ganhava novas adesões, à medida em que a voracidade do mercado torna tudo rapidamente obsoleto.
Foi o que aconteceu com o inventor do walkman, suplantado pelo do iPod, que por sua vez foi aposentado quando os celulares passaram a armazenar música.
A sede do Clube também era emblemática, um depósito de um parque de diversões de bairro abandonado, exposto à decomposição implacável do sol e da chuva.
O pequeno balcão era forrado de lembranças gloriosas de seus membros: recortes de jornais e patentes, registros de patentes, protótipos de invenções, carcaças dos primeiros modelos de suas invenções.
Bento era o decano dos atuais membros, o presidente do conselho, e tinha a obrigação moral de abrir todas as reuniões.
Sua ausência naquele quinta-feira, quando tinham combinado de analisar a admissão de mais membros - o inventor do HD externo, com o advento da nuvem, já tinha sua inscrição encaminhada - era surpreendente, até para o próprio Bento.
Era estranho que tivesse cometido esse suposto ato falho, ele que lutava ferrenhamente para não deixá-los cair no esquecimento.
Talvez o dia intenso de trabalho do dia anterior, agora como motorista clandestino de Uber - já vislumbrava o dia em que os taxistas chegariam cabisbaixos pedindo sua admissão no Clube - o deixou tão extenuado, que sua agenda mental tinha sido deletada pelo banho quente, depois do que se atirou no colchão como uma pedra que cai num lago cristalino de água parada.
Todos esses questionamentos vieram à mente enquanto lia uma por uma as mensagens preocupadas de seus amigos.
"Onde você está?", "Está tudo bem?", "Esqueceu nossa reunião?".
Soube que um deles chegou até a bater na porta, mas foi demovido de acordá-lo por sua esposa, que preferiu deixar Bento gozar do descanso dos justos.
Ela sabia o quanto era exaustivo aquela jornada de motorista, ele que tinha passado sua vida despachando em escritórios.
Fora que Bento se sentia como um traidor do movimento, ao tirar vantagem de uma nova tecnologia, o Uber, em detrimento do modo analógico de operação dos taxistas.
Esse conflito era que verdadeiramente o exauria.
Muitos taxistas amigos viam em Bento um ombro amigo para deitar suas cabecinhas e lamentar com nostalgia de tempos com menos corridas e mais lucro.
Enfim, quando o despertador enfim tocou, Bento meio que já compreendia seu esquecimento.
Talvez fosse a hora de passar o bastão do Clube.
Algo dentro de si pedia que ele se desvinculasse desse passado preservado como numa câmera frigorífica, mas que agora o degelo expunha sua podridrão.
Por isso sua primeira providência ao se levantar foi desmontar a mesa de cabeceira improvisada, fazendo ecoar cada lista no fundo do lixão de recicláveis como uma bomba explodindo seu passado.
Tomou um banho, baixou a atualização do aplicativo do Uber e saiu para mais um dia de labuta.
Pediu sua renúncia do Clube pelo whatsapp e parou no próximo food truck para tomar seu café da manhã orgânico.
sexta-feira, 6 de maio de 2016
A reforma
Quando em 2006 adquiri um apartamento tipo penthouse, um sonho que acalentava há algum tempo, comecei a idealizar a reforma - descobri tardiamente que reformas em hipótese alguma devem ser idealizadas, já que via de regra demoram pra acabar.
No caso, 90% do meu pensamento estava voltado para o que fazer do terraço, que nesse tipo de apartamento costuma orientar o restante.
Eu sonhava com um jardim, mas não um tropical, um que lembrasse uma região que sempre foi alvo de minha cobiça e admiração: a Provence.
Lógico que não ia dar certo: o estilo provençal é rural, bucólico, combina no máximo com casas de campo e não tinha nada a ver com meu jardim da babilônia.
No auge do meu delírio, cheguei a visitar uma pintora que simulava o interior de castelos medievais e coisas afins.
Foram meses de indecisão, onde cometi atrocidades como pedir projetos especulativos para vários arquitetos, enfim, infernizei a vida de profissionais com um desejo que eu não conseguia tornar tangível.
Claro que fui demovido dessa idéia equivocada de decoração, com paredes artificialmente desgastadas, móveis com pintura de pátina e rusticidades.
Isso pode ter sido a manifestação da vontade de ser cidadão francês - não à toa adorei "Meia-noite em Paris" e na sequência emendei várias leituras que abordavam aquele momento efervescente da Cidade-Luz.
Acabei contratando um famoso paisagista e praticamente exigindo que ele implementasse um projeto da minha cabeça.
Ou seja, o idiota aqui pagou uma fortuna pra não deixar o cara trabalhar!!
Uma coisa meio megalomaníaca: um jardim orientado por um curso sinuoso de água corrente que acompanhava quase toda a borda do terreço, iluminado por lâmpadas em espeto e lanternas.
O que, obviamente, se provou uma insanidade.
Mais tarde, após provocar um vazamento que fez um vizinho irado bater à minha porta, acabei por abortar o projeto sob risco de ter a obra embargada.
Hoje, no lugar do tão sonhado jardim, jaz um grande vazio pontilhado por alguns vasos de improviso, cujas plantas sobrevivem a duras penas ao descaso do dono.
Entremeado a esse arremedo de jardim ficou o sonho inacabado, que um dia espero transpor para o quintal de uma casa térrea.
Infelizmente não tenho o talento de um Van Gogh pra cultivar um campo de lavanda numa tela de alguns cms quadrados, o que seria bem mais fácil.
No caso, 90% do meu pensamento estava voltado para o que fazer do terraço, que nesse tipo de apartamento costuma orientar o restante.
Eu sonhava com um jardim, mas não um tropical, um que lembrasse uma região que sempre foi alvo de minha cobiça e admiração: a Provence.
Lógico que não ia dar certo: o estilo provençal é rural, bucólico, combina no máximo com casas de campo e não tinha nada a ver com meu jardim da babilônia.
No auge do meu delírio, cheguei a visitar uma pintora que simulava o interior de castelos medievais e coisas afins.
Foram meses de indecisão, onde cometi atrocidades como pedir projetos especulativos para vários arquitetos, enfim, infernizei a vida de profissionais com um desejo que eu não conseguia tornar tangível.
Claro que fui demovido dessa idéia equivocada de decoração, com paredes artificialmente desgastadas, móveis com pintura de pátina e rusticidades.
Isso pode ter sido a manifestação da vontade de ser cidadão francês - não à toa adorei "Meia-noite em Paris" e na sequência emendei várias leituras que abordavam aquele momento efervescente da Cidade-Luz.
Acabei contratando um famoso paisagista e praticamente exigindo que ele implementasse um projeto da minha cabeça.
Ou seja, o idiota aqui pagou uma fortuna pra não deixar o cara trabalhar!!
Uma coisa meio megalomaníaca: um jardim orientado por um curso sinuoso de água corrente que acompanhava quase toda a borda do terreço, iluminado por lâmpadas em espeto e lanternas.
O que, obviamente, se provou uma insanidade.
Mais tarde, após provocar um vazamento que fez um vizinho irado bater à minha porta, acabei por abortar o projeto sob risco de ter a obra embargada.
Hoje, no lugar do tão sonhado jardim, jaz um grande vazio pontilhado por alguns vasos de improviso, cujas plantas sobrevivem a duras penas ao descaso do dono.
Entremeado a esse arremedo de jardim ficou o sonho inacabado, que um dia espero transpor para o quintal de uma casa térrea.
Infelizmente não tenho o talento de um Van Gogh pra cultivar um campo de lavanda numa tela de alguns cms quadrados, o que seria bem mais fácil.
A seleção de 82 de cada um
Ontem o entrevistado do Bola da Vez, programa de entrevistas da ESPN, foi um dos heróis da seleção de 82, Toninho Cerezo.
Estranho falar em herói de uma seleção que foi desclassificada na metade de uma Copa, mas todos os 11 daquele escrete foram sim heróis de uma das seleções mais icônicas da história do futebol mundial.
A seleção de 82, formada por quase 11 craques - as exceções, para mim, ficam por conta de Valdir Peres e Serginho Chulapa - deu um concerto de futebol na Espanha, e saiu de mãos abanando daquela fatídica tarde no estádio Sarriá, afundando a nau da maior nação futebolística num mar de lágrimas.
Para quem acompanhou o triste desfecho daquele jogo, basta citar "seleção de 82" para extrair um profundo suspiro de lamento.
E quantas vezes também não lamentamos a derrocada daquele sonho pessoal, a nossa "seleção de 82" particular?
Isso vale para um projeto profissional, uma grande paixão, qualquer coisa que você produziu e sentiu que tinha uma obra-prima nas mãos, mas que desandou pelo caminho.
Suando frio, segurávamos com todas as unhas a canastra limpa da reviravolta de nossas vidas, mas o vento bateu e as cartas voaram pela janela pra serem pegas pelo próximo Midas.
Então vivemos à espreita daquele próximo momento mágico, sem perceber que é impossível.
Já não somos o mesmo mágico de antes, com a segurança de sacar da cartola quantos coelhos forem necessários.
Conjugamos o verbo hesitar mais vezes do que gostaríamos.
Por isso, não conseguimos reproduzir as condições de frescor necessárias para produzir uma nova obra-prima.
E duvidamos que aquele seleção de 82 particular que conseguimos reunir no passado é de fato um compilado do melhor possível.
Será que Zico que você criou era bom mesmo?
Aquele passe de calcanhar do seu Sócrates era pura magia ou firula improdutiva?
Difícil dizer, porque a sua obra-prima não saiu do papel.
Assim como a seleção de 82 não materializou a merecida taça no pedestal do inconsciente coletivo nacional.
Ficamos no quase e o "quase", quase sempre é mais doce do que a realidade.
É do quase que a seleção de 82 ainda habita soberana o nosso sonho de perfeição.
Estranho falar em herói de uma seleção que foi desclassificada na metade de uma Copa, mas todos os 11 daquele escrete foram sim heróis de uma das seleções mais icônicas da história do futebol mundial.
A seleção de 82, formada por quase 11 craques - as exceções, para mim, ficam por conta de Valdir Peres e Serginho Chulapa - deu um concerto de futebol na Espanha, e saiu de mãos abanando daquela fatídica tarde no estádio Sarriá, afundando a nau da maior nação futebolística num mar de lágrimas.
Para quem acompanhou o triste desfecho daquele jogo, basta citar "seleção de 82" para extrair um profundo suspiro de lamento.
E quantas vezes também não lamentamos a derrocada daquele sonho pessoal, a nossa "seleção de 82" particular?
Isso vale para um projeto profissional, uma grande paixão, qualquer coisa que você produziu e sentiu que tinha uma obra-prima nas mãos, mas que desandou pelo caminho.
Suando frio, segurávamos com todas as unhas a canastra limpa da reviravolta de nossas vidas, mas o vento bateu e as cartas voaram pela janela pra serem pegas pelo próximo Midas.
Então vivemos à espreita daquele próximo momento mágico, sem perceber que é impossível.
Já não somos o mesmo mágico de antes, com a segurança de sacar da cartola quantos coelhos forem necessários.
Conjugamos o verbo hesitar mais vezes do que gostaríamos.
Por isso, não conseguimos reproduzir as condições de frescor necessárias para produzir uma nova obra-prima.
E duvidamos que aquele seleção de 82 particular que conseguimos reunir no passado é de fato um compilado do melhor possível.
Será que Zico que você criou era bom mesmo?
Aquele passe de calcanhar do seu Sócrates era pura magia ou firula improdutiva?
Difícil dizer, porque a sua obra-prima não saiu do papel.
Assim como a seleção de 82 não materializou a merecida taça no pedestal do inconsciente coletivo nacional.
Ficamos no quase e o "quase", quase sempre é mais doce do que a realidade.
É do quase que a seleção de 82 ainda habita soberana o nosso sonho de perfeição.
segunda-feira, 2 de maio de 2016
Rock me
Hoje eu ouvi Skid Row novamente.
Eu não sei classificar bandas de rock, não sei distinguir rock melódico do heavy metal, nada disso.
Aliás, não é isso que importa pra o que eu quero falar.
Quero falar do poder dos solos de guitarra e dos vocais rasgantes de nossas bandas favoritas.
Esses sons ancestrais que fazem eco no túnel do tempo de nossas vidas.
As músicas que evocam o que de melhor a gente acreditou que poderia ser.
E que a gente era, mas não sabia.
Cabeças ingênuas, almas puras, sonhos em rosto imberbe, partículas de um projeto coletivo.
Do tempo em que o ideal socialista não soava como um projeto fracassado, soterrado pela ganância de quem chega pra salvar e acaba se afundando na própria merda.
Havia brilho nos olhos e eles não refletiam os cifrões de um salário polpudo.
Havia entrega, sonho, delírio.
Havia projeto de gente decente.
Até que a multidão assassinou o ideal coletivo.
A garotada de hoje mimetiza os mortos-vivos que vêem nos seriados de TV.
Regurgitam o velho ideal do sucesso individual, do cada um por si.
É a geração que almeja carreiras meteóricas e acabam como satélites à deriva de sonhos que nunca tiveram.
Por isso eu evoco os ruídos da minha adolescência.
Os delírio dos porres que tomei, inebriado pelos petardos de guitarra na pista do clube alternativo.
Eu quero a redenção do jovem que fui para que ele continue ocupando o trono vazio deixado por essas gerações sem berço ideológico.
Chega de hipsters, cultura de brechó e afins.
Chega de reverenciar ídolos no altar do consumo.
Prefiro ser o bunda-mole que me tornei à aderir ao bunda-molismo instituído por quem não sabe o que é se revoltar.
Eu não sei classificar bandas de rock, não sei distinguir rock melódico do heavy metal, nada disso.
Aliás, não é isso que importa pra o que eu quero falar.
Quero falar do poder dos solos de guitarra e dos vocais rasgantes de nossas bandas favoritas.
Esses sons ancestrais que fazem eco no túnel do tempo de nossas vidas.
As músicas que evocam o que de melhor a gente acreditou que poderia ser.
E que a gente era, mas não sabia.
Cabeças ingênuas, almas puras, sonhos em rosto imberbe, partículas de um projeto coletivo.
Do tempo em que o ideal socialista não soava como um projeto fracassado, soterrado pela ganância de quem chega pra salvar e acaba se afundando na própria merda.
Havia brilho nos olhos e eles não refletiam os cifrões de um salário polpudo.
Havia entrega, sonho, delírio.
Havia projeto de gente decente.
Até que a multidão assassinou o ideal coletivo.
A garotada de hoje mimetiza os mortos-vivos que vêem nos seriados de TV.
Regurgitam o velho ideal do sucesso individual, do cada um por si.
É a geração que almeja carreiras meteóricas e acabam como satélites à deriva de sonhos que nunca tiveram.
Por isso eu evoco os ruídos da minha adolescência.
Os delírio dos porres que tomei, inebriado pelos petardos de guitarra na pista do clube alternativo.
Eu quero a redenção do jovem que fui para que ele continue ocupando o trono vazio deixado por essas gerações sem berço ideológico.
Chega de hipsters, cultura de brechó e afins.
Chega de reverenciar ídolos no altar do consumo.
Prefiro ser o bunda-mole que me tornei à aderir ao bunda-molismo instituído por quem não sabe o que é se revoltar.
Já viveu hoje?
Uma vez perguntei à Lucia, minha terapeuta na época, se era difícil ser gente.
Por mais ingênua que fosse a pergunta, seriamente ela respondeu sim.
Era final de sessão e havíamos discutido questões existenciais.
A Lucia fazia atendimento psicológico a grupos de comunidades carentes, como prostitutas e mães solteiras - ajudar sempre foi sua maior vocação e acabou culminando com sua decisão de se tornar médica sem fronteiras - o que me despertava a curiosidade sobre como essas pessoas humildes encaravam uma sessão de terapia.
Logicamente pessoas pobres têm necessidades mais prementes do que nós burgueses, preocupados com realização profissional e outras questões não vitais.
Mas a Lucia disse que de alguma forma, aquelas pessoas também se afligiam com questões existenciais.
Óbvio que todo indivíduo com consciência de sua própria mortalidade - aí incluo animais, que a ciência provou também serem dotados de consciência - deve se incomodar com o tic-tac do relógio.
Não porque sabe que irá morrer, mas porque não entende o sentido da vida, ainda mais quando falamos de gente que luta o tempo todo pra sobreviver.
É a essa fragilidade, que se esconde por trás das máscaras e papéis que desempenhamos no dia a dia, que me refiro.
Fragilidade que se escancara a cada queda de avião, mas que nos pega ainda mais de surpresa quando da notícia de algum conhecido "feliz" que se matou.
Uma das primeiras questões morais que aprendemos é o valor inexorável da vida - talvez isso explique porque "inocentemente" nos dedicamos à prática do assassinato de insetos e pequenos animais na tenra infância, ou seja, ainda não nos foram incutidos os códigos morais que mais tarde censurarão tais práticas.
Ao mesmo tempo o bombardeio da mídia nos torna anestesiados com atrocidades cotidianas, em parte porque, ao espetacularizar chacinas e matanças, as notícias se distanciam da nossa realidade, passando para o plano da ficção.
Mas apesar de todos os artifícios que procuram nos afastar da consciência da morte, uma luz de alerta insiste em piscar incessantemente lá fundo do nosso ser, alertando que no fim das contas nosso coração é uma bomba relógio armada no dia de nosso nascimento.
Talvez como mecanismo de defesa, esse alerta interno é sumariamente ignorado, como se o esvair do tempo não fosse algo importante.
Mas talvez esse seja o ponto: o que é importante?
Se alguém gasta seu tempo jogando videogame e outro pintando quadros, existe diferença de propósito do ponto de vista existencial?
Claro que não, já que a qualidade do tempo gasto é um critério inventado por nós.
Cabe a cada um mensurar esse "desperdício" segundo seus próprio critérios.
Só que ocupar o tempo não irá aplacar a angústia da percepcão de sua passagem.
O homem já inventou as maneiras mais variadas de fazer isso e não resolveu o problema.
A melhor maneira de lidar com essa questão, ainda que isso seja quase utópico, seria viver cada dia como se fosse o último.
Mas,de novo, trata-se de um teatro que não convence a nós mesmos, visto que nosso dia a dia está calcado em prazos, datas futuras, planejamentos, que sempre consideram o futuro próximo ou a longo prazo.
Só nos resta fazer as revisões periódicas de nossa vidas, considerando sempre que a cada dia ficamos com menos prazo para ser gente de verdade.
Por mais ingênua que fosse a pergunta, seriamente ela respondeu sim.
Era final de sessão e havíamos discutido questões existenciais.
A Lucia fazia atendimento psicológico a grupos de comunidades carentes, como prostitutas e mães solteiras - ajudar sempre foi sua maior vocação e acabou culminando com sua decisão de se tornar médica sem fronteiras - o que me despertava a curiosidade sobre como essas pessoas humildes encaravam uma sessão de terapia.
Logicamente pessoas pobres têm necessidades mais prementes do que nós burgueses, preocupados com realização profissional e outras questões não vitais.
Mas a Lucia disse que de alguma forma, aquelas pessoas também se afligiam com questões existenciais.
Óbvio que todo indivíduo com consciência de sua própria mortalidade - aí incluo animais, que a ciência provou também serem dotados de consciência - deve se incomodar com o tic-tac do relógio.
Não porque sabe que irá morrer, mas porque não entende o sentido da vida, ainda mais quando falamos de gente que luta o tempo todo pra sobreviver.
É a essa fragilidade, que se esconde por trás das máscaras e papéis que desempenhamos no dia a dia, que me refiro.
Fragilidade que se escancara a cada queda de avião, mas que nos pega ainda mais de surpresa quando da notícia de algum conhecido "feliz" que se matou.
Uma das primeiras questões morais que aprendemos é o valor inexorável da vida - talvez isso explique porque "inocentemente" nos dedicamos à prática do assassinato de insetos e pequenos animais na tenra infância, ou seja, ainda não nos foram incutidos os códigos morais que mais tarde censurarão tais práticas.
Ao mesmo tempo o bombardeio da mídia nos torna anestesiados com atrocidades cotidianas, em parte porque, ao espetacularizar chacinas e matanças, as notícias se distanciam da nossa realidade, passando para o plano da ficção.
Mas apesar de todos os artifícios que procuram nos afastar da consciência da morte, uma luz de alerta insiste em piscar incessantemente lá fundo do nosso ser, alertando que no fim das contas nosso coração é uma bomba relógio armada no dia de nosso nascimento.
Talvez como mecanismo de defesa, esse alerta interno é sumariamente ignorado, como se o esvair do tempo não fosse algo importante.
Mas talvez esse seja o ponto: o que é importante?
Se alguém gasta seu tempo jogando videogame e outro pintando quadros, existe diferença de propósito do ponto de vista existencial?
Claro que não, já que a qualidade do tempo gasto é um critério inventado por nós.
Cabe a cada um mensurar esse "desperdício" segundo seus próprio critérios.
Só que ocupar o tempo não irá aplacar a angústia da percepcão de sua passagem.
O homem já inventou as maneiras mais variadas de fazer isso e não resolveu o problema.
A melhor maneira de lidar com essa questão, ainda que isso seja quase utópico, seria viver cada dia como se fosse o último.
Mas,de novo, trata-se de um teatro que não convence a nós mesmos, visto que nosso dia a dia está calcado em prazos, datas futuras, planejamentos, que sempre consideram o futuro próximo ou a longo prazo.
Só nos resta fazer as revisões periódicas de nossa vidas, considerando sempre que a cada dia ficamos com menos prazo para ser gente de verdade.
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