quarta-feira, 18 de maio de 2016

As vozes

Heleno era o morador mais misterioso do condomínio.
Não que tivesse uma aparência excêntrica, algo que chamasse mais a atenção do que o necessário.
É que apesar de introvertido, do tipo que cumprimenta no máximo com o olhar, ele era visto o tempo todo pelos moradores, subindo e descendo o elevador.
Fazia esse movimento de vai e volta sem aparente motivo, como se o elevador fosse pra ele um brinquedo que não enjoava.
É compreensível o estranhamento, já que para a maioria das pessoas, esperar e pegar um elevador não passa de uma chatice necessária, ainda mais quando alguém puxa uma conversa indesejável.
Por isso era no mínimo intrigante descobrir as razões do "tesão" de Heleno por elevadores.
Na verdade, Heleno gostava de ouvir "vozes".
Aqueles lampejos de conversas que testemunhamos quando passamos rapidamente de elevador pelos andares.
São pequenas amostras de diálogo, pequenas interjeições no dia-a-dia, com que Heleno construía mundos inteiros em sua imaginação de voyeur.
Porque era isso que Heleno era: um voyeur da vida.
Alguém que sentia prazer em idealizar vidas alheias, só que em seu caso não sendo nem ao menos uma testemunha ocular.
Para ele, as pequenas interferências sonoras entre um andar em outro já eram suficientes para compor uma narrativa, mais do que fantasiosa, sobre aquelas pessoas comuns.
Era como se o prédio fosse uma coleção de literatura, onde a cada andar correspondia um romance, narrando a vida daquelas pessoas.
E cada romance era de um gênero diferente, determinado pelas primeiras impressões que Heleno tivesse da trama.
Imaginou pessoas mantidas em cativeiro, grandes reuniões de maçonaria, escritórios de conspiração, casas de masoquismo.
Alguém já disse que o problema da imaginação era que ela não tinha limites, mas no caso Heleno usava sua imaginação a favor de uma vida mais rica, ainda que apenas dentro de sua caixa craniana.
O difícil era, à medida que as histórias já se desenrolavam, encarar seus vizinhos como as pessoas pacatas que eram.
Para Heleno, entrar no elevador era como entrar em 25 tramas diferentes e sucessivas, onde ele pulava de uma para outra sem necessariamente seguir a ordem dos andares.
Mas claro que tamanha exploração de sua imaginacão era perigosa, e um dia Heleno se viu vítima de conspiracões que ele mesmo construiu.
Aqueles susurros que ele caçava em seu puçá imaginativo começaram a soar como ameaças diretas a Heleno, que passou a se apavorar cada vez que o elevador parava em um andar.
Quando isso acontecia, preparava-se para o pior, esperando receber a estocada fatal que poria fim às suas tramas.
Mesmo quando os moradores entravam no elevador e nada se sucedia, Heleno via assassinos por trás de expressões de uma impassibilidade absoluta.
Até de inocentes crianças Heleno se afastava, temendo um ataque surpresa fatal.
Sua paranóia só aumentava quando um dia um acontecimento precipitou o fim.
O elevador parou subitamente, completamente lotado.
A ameaça que já era enorme, condimentada com a sensação claustrofóbica, causou uma síncope que deitou Heleno ao chão irremediavelmente.
Quando os bombeiros enfim resgataram os moradores, o corpo de Heleno jazia há horas no canto do elevador, em posição de súplica em direção aos seus "assassinos".
Naquele átimo entre o desmaio e seu total desfalecimento, Heleno entendeu que aquelas 25 histórias dos 25 andares eram apenas tramas secundárias da verdadeira história que ele queria contar.
A história do fim premeditado de sua vida.

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