Ele estava no topo, no auge, em seu esplendor.
Aclamado no Oscar, em Cannes, Berlim.
Prestigiado pelos colegas, amado pelos amigos e familiares.
Por isso ninguém entendeu nada.
Acordar morto numa suíte presidencial, acompanhado da família que acabava de chegar para prestigiar a entrega de mais um prêmio, não estava mesmo no script.
Era no mínimo estranho, porque a morte como opção não era uma opção, pelo menos não nesse momento.
Por isso, quando a falta de indícios de crime atribuiu sua morte à insanidade do artista, a maioria, inclusive seus familiares e staff, se deu por satisfeita.
Alguma coisa naquele laudo, porém, cheirava a fraude.
Pois a polícia dera com o apartamento revirado como se tivesse sido invadido, e isso foi estranhamente ocultado das provas, como um silêncio comprado.
Por isso o investigação se deu por encerrada num prazo inaceitavelmente curto, o que só contou com a anuência da família porque a perícia foi taxativa quanto ao suicídio e, ademais, nenhum membro da família ou equipe de filmagem queria permanecer numa cidade estrangeira acompanhando um caso que não mostrava sinais de reviravolta.
O fato de que ninguém tivesse ficado minimamente intrigado também levantou suspeitas entre os que consentiram com o arquivamento do processo.
Porque se apenas um deles se detivesse na análise racional dos fatos, teria por certo dado prosseguimento às investigações.
O que provavelmente redundaria em mais queima de arquivo vivo.
Arfonso perdeu a vida porque descobriu o que não deveria: a grande roda da humanidade.
Todo um sistema de manipulação de corações e mentes, que faz a sociedade funcionar como um relógio.
É simples: quantos de nós acordaríamos todos os dias para ajudar a roda a girar, se não nos fosse dado a esperança de uma compensação, ainda que mínima?
Não digo no caso da classe trabalhadora mais desesperançada, dos quais se diz que "vende o almoço pra comprar o jantar".
Me refiro a nó, pessoas instruídas que, contra todas as pregorrativas da razão, não resistem a se agarrar a qualquer fiapo de promessa de bem-aventurança.
Porque o sistema sempre encontra um meio de fazer você acreditar que está no trilho, mesmo que não saibamos o que nos espera na última estação.
Mas o que seria esse prêmio, afinal?
Pode ser de todos os tipos de formas, tem sempre um que "cola" com o seu jeito de enxergar a vida.
Para mulheres, a maternidade.
Para ambiciosos, o dinheiro e poder.
Para artistas, o afago do ego.
Para fanáticos religiosos, a promessa de vida eterna.
No caso do cineasta, era mais um prêmio, só que Arfonso acabou testemunhando mais do que deveria.
Devido a alguma falha do sistema ele acabou flagrando conversas, o que o levou a empreender uma investigação pessoal.
Foi um erro se meter sozinho no que é provavelmente o esquema dos esquemas, o maior de todos.
Acordou inapelavelmente morto, assim como acontecera com milhares de outras vítimas que estavam no lugar errado no momento idem, vendo coisas que não deveriam.
Para Arfonso, mais doloroso que deixar uma vida glamurosa foi descobrir que ele mesmo era o protagonista de uma fábula inventada, o eleito para receber as glórias nem sempre merecidas por seu trabalho.
Enfim ele entendera porque tinha sido incompreensivelmente tão sortudo.
Era obra de um destino, mas de um destino fabricado.
Jamais imaginaria que seu último suspiro seria de estupefacão diante da revelação do segredo que rege a própria vida.
No breve momento entre a descoberta e sua morte, Arfonso teve uma iluminação.
Descobriu que havia sim um juízo final.
Onde ele acabou pagando por atos de que nunca foi protagonista.
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