O forte cheiro de enxofre e o bafo quente das brasas foram suficientes para que Freitas, ainda que no escuro, sentisse o hálito de boas vindas de Lúcifer.
Como previsto, após uma vida vivida na contravenção, fora mandado para o umbral das camadas inferiores.
Apesar de não ter matado ninguém diretamente - indiretamente, todo crime pode matar - não se sentia injustiçado ao se ver misturado a assassinos, estupradores, assaltantes, bandidos de "patente" bem mais alta que ele.
Se é verdade que se misturar a esse tipo de gente pode corromper, isso era o de menos agora que ele estava condenado a passar uma infinidade de tempo sem ver o sol.
Não acreditava em reencarnação, não se via voltando à terra sob a forma orgânica mais desprezível.
Queria fazer daquele primeiro dia nas profundezas o início de um repouso mais do que merecido, ainda que não fosse na colônia de férias de seus sonhos.
Aos poucos foi reconhecendo alguns companheiros de ostracismo compulsório.
Algumas celebridades como políticos e apresentadores de enlatados televisivos, pessoas de seu convívio como o pároco da missa dominical, seu vizinho, o chefe de 30 anos de repartição pública, a diretora da instituição de caridade para a qual contribuiu a vida inteira, seu sogro.
Não se surpreendia e nem se indagava sobre os pecados que levaram essas pessoas a disputar com ele o escasso oxigênio naquele ambiente empestiado do cheiro de enxofre.
Para Freitas isso pouco importava, em vida ele já contestava a visão maniqueísta, preferindo adotar o equilíbrio do julgamento sobre pessoas e coisas.
Mas sentiu um pequeno arrepio quando divisou entre os pecadores o perfil de alguém que lhe pareceu bastante familiar e que, depois de esfregar os olhos,ele confirmou ser ninguém menos do que ela, a santidade em pessoa Madre Teresa de Calcutá.
Sua identificação não foi automática, já que a idosa, embora mantivesse o mesmo estilo de indumentária com que era reconhecida na mídia, não tinha exatamente o comportamento comedido da semi-santa com que estamos acostumados.
Ao contrário, ela gesticulava muito com os braços, conversando e rindo em voz alta, centro das atenções de um grupo heterodoxo que reunía figuras carimbadas do inferno como Hitler, Stalin, Charles Manson, Saddan Hussein e Orestes Quércia.
Madre Teresa contava causos que levava seus interlocutores às gargalhadas e Freitas não se conteve em se aproximar para ouvir mais de perto.
Aos poucos Freitas foi se infiltrando até entrar na roda de conversa, não encontrando resistência por parte das celebridades, que julgavam conhecer de vista aquele homem de meia idade.
Foi assim que Freitas se inteirou das atrocidades cometidas pela velhinha em vida, através de relatos onde se declarou culpada dos mais diversos crimes ocultados por sua imagem de santidade.
Até o próprio Lúcifer, já íntimo daqueles maldosos célebres, confessou que a Madre já estava em sua lista muito antes de se envolver com tantos delitos, já que em sua avaliação a vaidade era o maior dos crimes.
Sob esse ponto de vista, a soberba de ser a pessoa mais bondosa do mundo foi mais do que suficiente para jogar Teresa no calabouço eterno.
Freitas entendeu os motivos da condenação da idosa, embora não concordasse.
Quando a roda se desfez e Freitas cruzou com a ex-bondosa, ao encarar aquele preservado olhar de santa, ele não resistiu e indagou:
"Até tu, Teresa?"
Ao que a velhinha retrucou, sem titubear:
"Estamos todos perdoados, meu filho".
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