Certo dia a formiga, voltando exausta de um dia frenético na Bolsa de Valores local, passa por uma praça onde escuta os acordes de violão de uma melodia familiar.
As notas penetrando em seu ouvindo eram o cartão de embarque ao seu passado, moldado em vigor físico e esperança num futuro que se descortinaria em uma vida de enfado.
Por isso foi com enlevo nostálgico que a formiga abriu passagem entre a aglomeração que formava a concha acústica em torno da cantiga, sentimento logo desfeito pela visão de uma cigarra desdentada e decadente.
Um misto de decepção e alívio se apoderou da formiga até o final da apresentação, quando enfim a cigarra foi ter com ela.
Seus olharem já haviam se cruzado durante a última música, o que também motivou a cigarra a encerrá-la abruptamente, quando mais gente se juntava para apreciar.
Com expressões tímidas nos rostos, as duas se aproximaram e trocaram um aperto de mão burocrático, típico de quem espera a reação do outro para medir seus próximos passos.
A formiga toma a iniciativa.
- Eu tava passando por aqui quando ouvi esse jeito de tocar inconfundível. E aí, como vai?
- Bem... como você pode ver, tirando as rugas e os cabelos brancos, do mesmo jeito.
- Os anos 60 não saíram de você, mesmo. Mas e aí, não casou, não teve filhos?
- Tenho ex-mulher e filhos nos Estados Unidos. E você?
- Casei, tenho dois filhos. Moro numa casa no Jardim Europa.
- Jardim Europa? Pelo jeito o trabalho enobreceu o homem mesmo.
- Sim, não tenho do que me queixar. Tenho empresa própria, invisto na bolsa.
- Ah, sabia que você tinha futuro. Você não descansava nunca, lembra?
- Pois é, se não estava trabalhando, eu estudava.
- Perdi as contas de quantos convites te fiz. Festas, praia, jogar pelada, pescar. Só uma vez você foi com a gente e encheu a cara até cair. Uma vezinha só, meu Deus.
- É, né? Podia ter pegado mais leve. Mas e você, o que fez da vida, amigo?
- Fiquei um bom tempo vivendo da mesada do meu pai. Daí uma hora ele cortou pra me endireitar. E por um tempinho funcionou, arrumei um emprego, casei e tal. Mas essa de vida certinha nunca foi a minha.
- Dá pra ver, você continua tocando as mesmas músicas.
- Eu tive banda, sabia? Cheguei a fazer uma turnê pelo interior do Brasil, toquei em bares, conheci muita gente.
- E nem me convidou?
- Hehe.. Ah, foi uma farra. Uma mulherada, rapaz...
- Eu imagino.
- Mas a coisa uma hora cansou. E foi justo quando conheci minha mulher. Então achei que poderia ser igual a todo mundo. Mas vai, me conta mais de você.
- Não tenho muito o que contar, não. De tanto estudar acabei passando no ITA, com louvor. Todo mundo achava aquela escola um inferno. Mas eu amava.
- É a sua cara.
- O que?
- Se matar de estudar.
- Bom, você me conhece.
- Mas ITA tem a ver com avião, não Bolsa de Valores.
- É que recebi uma proposta no último semestre que me fez arregalar os olhos. Muitos números. Uma empresa do mercado financeiro.
- Capitalismo selvagem.
- E bota selvagem nisso. Da noite pro dia eu podia ter tudo: carrões, relógios, hotéis de luxo, sócio dos clubes mais restritos da cidade. E lógico, mulheres lindas.
- Ah, formigão seu safado.
- E eu, cabaço, com aquele monte de maria-debênture me dando mole, claro, caí na esbórnia. Mas como diz aquele ditado, a gente se lambuza, acabei engravidando uma menina.
- Mulheres, sempre elas.
- Mulheres caras, o que é pior. Voltei ao meu velho estilo, casa-trabalho, trabalho-casa.
- Poxa, mas você tá super-bem, é uma vencedor do sistema.
- Sou?
- Eu é que não sou.
- É tudo uma questão de ponto de vista. Por um lado eu tenho tudo, mas ao mesmo tempo o que me faz ter tudo me acorrenta.
- Ah, pára, trabalho nunca foi problema pra você.
- Mas a falta de tempo é um problema. Sou dono de tudo, menos do meu tempo.
- Isso é um problema pra todos nós, amigo. Olha eu, pareço uma cópia mal feita do Erasmo Carlos.
- Hahaha, bom humor nunca lhe faltou.
- Mas grana... cansei dos boletos entrando por baixo da porta, hoje nem abro mais, vão se acumulando até eu perder o crédito.
- Vai ser marido de mulher rica pra ver o que é boleto.
- Minha vida é um caos, minha casa, um lixo. Eu nunca consegui me organizar, arquitetar o menor projeto que fosse. Por isso estou aqui, como há 30 anos atrás.
- Mas aposto que curtiu cada segundo desses 30 anos.
- Você se engana, meu amigo. Acha que também não tive minhas frustrações, meus arrependimentos? Não me formei, tive empregos porcos e mal pagos. Bebia e fumava meu salário. Não botava um puto em casa.
- Sua mulher trabalhava, então.
- Era a sua versão feminina. Tinha essa coisa maternal de me ajudar, proteger, mas uma hora cansou né? Foi quando ela conheceu um americano que veio trampar aqui por um tempo. Não demorou pra ela se dar conta de que podia ser feliz de verdsade com ele.
- Sinto muito.
- Ah, não precisa. Ela foi ser feliz e fiquei feliz por ela também. Não merecia me levar nas costas, nem ela nem as crianças.
- Deve ser duro pra você ficar longe deles.
- Muito. Mas eu sou do tipo que não se dá bem com instituições, família, etc. Hoje meus amigos são os das praças, os que levam a vida como eu.
- Bom, então nenhum de nós está feliz, é isso?
- Não sei se feliz é a palavara correta. Acho que cada um foi talhado pra um estilo de vida, para o bem ou para o mal. A maneira como cada um aceita e se adapta a isso deixa o sujeito mais ou menos feliz. É o que eu penso.
- Pode ser.
- Bom, mas e aí, quer tomar uma? Tem um bar ótimo ali na esquina.
- É que...
- Ah, tá certo, tem compromisso.
- Jantar na sogra, aniversário da velha.
- Como é que eu podia me esquecer...
- Do aniversário? Mas você não poderia...
- Do seu jeito.
- Ah tá, verdade.
- Então tchau, cara. Prazer em revê-lo.
- O prazer foi meu. Lembranças à família.
- Pra sua também.
Eles já tinham se dado as costas quando a cigarra se volta pra formiga e diz:
- Só uma coisa.
- Hã? Diz.
- Você não mudou nada.
- Você também não, amigo.
E cada um foi para o seu canto, o canto de sempre.
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