quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Segura o rojão

Dizem que 2016 será terrivel, economia em frangalhos e com pouca capacidade de reação por causa da inflação, crise política e mercado de commodities desfavorável.
Entendo pouco de política, mas os anos me fizeram entender um pouco essa ânsia premonitória que nos possui nos últimas dias do ano.
Nada como o penúltimo dia para passar a limpo os pecados cometidos e os que deixamos de cometer no ano que está nos finalmentes.
Acho até que essa necessidade de fazer o flash back é maior do que tentar prever qualquer coisa pro ano que vem.
Inclusive porque brasileiro está escaldado de falar em crise, mesmo com a estabilização da moeda, que parecia mais sólida do que infelizmente constantamos agora.
O fantasma da inflacão voltou, o que aterroriza os economistas, mas pra mim parece filme de terror velho assistido em sessão da tarde, regado a pipoca e refrigerante.
Pouco me interessa a mensagem dos cavaleiros do apocalipse da economia, porque sempre contei mais com meu esforço do que com qualquer conjuntura favorável.
Não é desânimo nem falta de esperança.
O planejamento para um ano que se inicia é válido, disciplina é algo que funciona.
Mas prefiro pensar no tempo, embora um ano corresponda a uma volta do planeta, como uma convenção, um jeito de pensar e organizar nossos atos, prazos, metas.
Então se o tempo é uma reta contínua, prefiro pensar que ando sobre essa linha contínua indefinidamente até o último dos meus dias, sem um tic-tac irritante fazendo eco nos meus dias de vazio.
Que venham a crise, a inflação, as expectativas, as incertezas, os medos.
Tudo isso não é exclusividade de ano novo, é coisa do dia a dia.
No fim tudo não passa da aventura de consciências querendo achar seu lugar de conforto no mundo.
Mas no fundo sabendo que esse lugar é impossível de ser encontrado.




quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

A maioria apenas existe

Li pouco de Oscar Wilde.
Dorian Gray, presente em 10 de 10 anais da literatura clássica, foi obrigatório.
Fora este, li apenas aforismos e no momento leio "Contos de Fadas".
Não li nenhuma de suas peças.
Há quem pense que ele não é um primor de técnica de escrita, mas Wilde está longe de passar despercebido na história da literatura.
À qualidade de "Retrato de Dorian Gray" e outros escritos, some-se sua figura controversa de intelectual excêntrico e ácido, que foi preso por ser homosexual, à época considerado um crime, e você terá uma personalidade que marcou época.
Para mim, Oscar tem lugar de destaque na estante por seus aforismos de uma acidez incomum, que pode não refletir minha opinião e talvez nem a do autor, mas destila um veneno classudo de dar inveja.
Como o que intitula esse post, "Viver é a coisa mais rara do mundo. A maioria das pessoas apenas existe".
Acertou na mosca o Oscar.
Naquela época, de muita dificuldade para sobreviver, a frase fazia ainda mais sentido.
Mas não podemos afirmar que faça menos sentido hoje.
Pois passadas décadas, a maioria da humanidade continua lutando bravamente por condições básicas de sobrevivência.
E a tendência é a coisa piorar com o esgotamento dos recursos naturais.
Claro que o apenas existir não está restrito apenas a quem tem poucas condições financeiras.
Hoje vemos uma sociedade intrincada em outras modalidades de sobrevivência, que vão além de comer e respirar.
Sobreviver na sociedade moderna, mesmo à época de Oscar Wilde, também significa se adaptar às exigências de status e convivência com seu meio, que implica uma série de sacrifícios.
Entre eles, a abnegação de si mesmo, de seus ideais e sonhos, em função da manutenção do status, da adaptação a rótulos de um mundo frio e preconceituoso.
Estar preso às obrigações de sucesso e modismos nos restringe como seres humanos, ao impedir que experimentemos alternativas aos ditames do capitalismo, que se retroalimenta do nosso medo de exclusão.
Daí que Oscar, que embora fosse um prestigiado e reconhecido artista não escapou do preconceito dos seus pares, concluísse que viver era para poucos.
Os poucos que teimam em se afirmar como indivíduos num mundo que abate sonhos pelos calcanhares.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Até o fechar dos olhos

Sem a luz eu não seria nada.
Eu dependo do clarão que invade as frestas da janela pra acordar da minha ilusão.
Todo dia sou puxado da minha cama a uma velocidade de 300.000 km/s.
Não para colocar os pés no chão, mas para saltar no vácuo dos meus desejos.
A luz me liberta dos meus fantasmas, essas âncoras imaginárias que me prendem na minha impotência.
Se existe uma caminhada pra alguma missão misteriosa, é a luz que desenha as sombras dos meus passos e me faz acreditar que existe um caminho.
Dizem que são as crianças que têm medo do escuro.
Mas elas temem o escuro concreto.
O escuro imaginário vai nos amendontrar até o fim dos nossos dias.
E que seja assim, pois é nessa alternância de luz-escuridão que a vida se move e o ser humano encontra motivação para fazer da vida uma tentativa de superação sem fim.
E até o fechar dos olhos, eu espero que uma nesga de luz sempre venha ao meu socorro, para clarear minha mente e acender meu coração como meu remédio diário.
Como Dylan Thomas esbraveja, lute, lute, lute contra a morte da luz.

domingo, 13 de dezembro de 2015

A pena de quem escreve

Esses dias estava discutindo a diferença entre a vaidade de médicos, publicitários, advogados e artistas.
Estávamos conjecturando sobre se os artistas seriam os mais vaidosos.
Chegamos à conclusão de que, de uma certa forma, sim.
Porque profissionais liberais têm sua fama reconhecida dentro de seus grupos.
Fora de seus grupos, apenas quando financeiramente bem sucedidos, daí não estamos mais falando de pura competência profissional.
Mas no caso dos artistas, raramente eles são financeiramente recompensados.
No entanto, sua competência artística não reconhece fronteiras, eles desfilam seu talento e são reverenciados onde estiverem.
Afinal, a música, a escrita, a pintura, etc são universais, não?
Então uma certa empáfia dos artistas, de se considerarem especiais de alguma forma, é até perdoável.
Em muitos casos eles abraçaram uma paixão em tenra idade e desafiaram o modus operandi da sociedade ao optar por viver em sua maioria de bicos para se dedicar à sua arte.
Há que se louvar esse gesto, mas será mesmo que foi uma decisão dura e difícil?
Ao que parece e Rilke não me há de negar, os artistas o são porque simplesmente receberam um chamado especial e resolveram dar ouvidos.
Alguma chama interior latente só estava à espera de uma fagulha do destino, e traçar sua vida a partir desse encontro, apesar de muito doloroso, foi uma trajetória natural.
Não há escritor ou músico que não reclame pela sociedade ser tão insensível aos seus encantos, em detrimento de lixo cultural que "bomba" nas rádios e nas muitas telas da era da hiperconectividade.
Mas também não se vê lamentos de "deveria ter ouvido meu pai" ou coisa parecida.
A opção pela vida de artista is not an option.
É só o fluxo natural da vida.
Nenhum artista chegou aos seus 17 imberbes anos numa prova de vestibular sem uma opcão de carreira bem definida.
A dúvida é apenas pelo meio de subsistência, porque a carreira o talento já definiu para ele.
Por isso não tenho nenhuma pena dos artistas.
E tenho uma certa antipatia pela sua empáfia.
Será inveja?

Via Láctea, câmbio

Alguns podem se orgulhar de serem pessoas encaixadas, as que atendem às expectativas da sociedade, dos modelos de beleza, de sucesso, de modismos, indivíduos icônicos do ajuste social.
A não ser dormir tranquilamente na sua ilusão de bem-aventurança, não vejo nenhum mérito nisso.
Encontrar eco para sua voz é importante, faz bem para o ego, mas não é necessário.
O homem é um sobrevivente, e sua subsistência passa ao largo das armadilhas do ego, ainda que seja o tempo todo seduzido por elas.
A gente não vive da embalagem, mas do conteúdo.
Mesma nossa carcaça psicológica depende apenas da alimentação básica, prescinde da gordura trans social que nos empanturra.
Mas é mais fácil se deixar levar pela onda do que remar contra.
Por isso não contestamos os modelos impostos.
Os produtos de consumo impostos.
As novas regras sociais impostas.
Deveríamos olhar para nós mesmos e, com olhar sábio, perceber se estamos conduzindo nossas vidas para a bem-aventurança.
Aventura, disso é feita a vida.
As raízes são importantes, assim como os projetos que se desenvolvem tijolo a tijolo.
Mas faço aqui uma ode ao inexato, ao inesperado, ao inconclusivo.
Valorizo a importância de incerteza para que os caminhos sejam errados e os dias terminem mágicos.
Não ter certeza é um direito daqueles que preferem olhar o horizonte sem a convicção do planeta redondo, mas com a probabilidade de se atirar no precipício.
Conclamo mais friozinhos na barriga, mais nervosos de ante-sala de espera, mais pavor de primeira ou de última vez.
Pior não é o cordão umbilical que nos une aos nossos pais.
São as correntes das certezas que arrastamos ao longo da vida e que vão ficando pesadas com o acúmulo de limo dos caminhos.

sábado, 12 de dezembro de 2015

O assombro

Quando tudo está quieto e normal, é sinal de que ele está fazendo falta.
Quando você está fazendo sucesso e sua vida parece não ter onde tirar nem pôr, ele é que resolveu se omitir aguardando o momento em que os mais corajosos o invocarão para chacoalhar o status quo modorrento.
Quando caímos na letargia de sabermos de cor os próximos passos, de fazer da nossa vida uma cartilha decorada de trás pra frente, então é chegada a hora de invocá-lo.
Ele, o assombro.
O assombro que nos faz ver além da matéria, do concreto, do premeditado.
Que nos faz nos guiar por algo que não se define, que não é instinto nem energia, mas que é o único fluxo possível do ser que se deixa levar.
O assombro das palavras sem sequência lógica, que jorram dos dedos e que só tem a direção determinada pela lógica da organização da pauta.
O assombro dos sentimentos que enchem o coração de uma esperança besta por nada, porque não se tem objetivo ou meta, apenas o de deixar sentí-lo.
O assombro da flores que resolvem desabrochar sem preâmbulo, apenas para saudar os raios solares de manhã.
O assombro do encontro sorrateiro com quem não se esperava, nem que seja apenas pela troca furtiva de olhares não premeditados, e que deixam a promessa do que aquele encontro poderia ser.
O assombro do futuro, esse misterioso que não deixa nenhuma pista, exceto por aquelas que criamos dentro de nós mesmos, como uma premeditação do nosso destino.
O assombro que enlouquece por não se explicar e por determinar as coisas sem sentido, conduzindo vidas a um desatino cruel.
O assombro da vida, de estarmos juntos e ao mesmo tempo sós, vagando numa vida láctea imensamente assustadora e silenciosa, clamando por explicações que nossas mentes racionais se viciaram em pedir.
O assombro de perceber que o assombro não é explicável por nenhum sentimento, quanto mais por essas parcas palavras de resignação.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

O mundo é das bonitinhas

As bonitinhas não chamam atenção.
As lindas, estão sempre sob os holofotes.
As bonitinhas saem da balada acompanhadas.
As lindas, depois de esnobar meio mundo vão embora sozinhas.
As bonitinhas vão casar e formar família.
As lindas também, mas alguns maridos vão descobrir que desposaram um troféu.
As bonitinhas vão conseguir emprego e se provar competentes.
As lindas, mesmo competentes, serão reféns de sua beleza.
As bonitinhas, quando têm filhos lindos, é uma dádiva.
As lindas, quando os filhos não saem à sua imagem, "o que deu errado"?
As bonitinhas, se engordarem, viram roliças simpáticas.
As lindas, "nossa, que tribufu".
As bonitinhas fazem personagens de filme.
As lindas, figuração de comercial.
As bonitinhas estão autorizadas a aparecer desleixadinhas.
As lindas, não se aguarda menos que deslumbrantes.
As bonitinhas até convencem como intelectuais e ativistas.
As lindas são loirinhas burras posando de engajadas.
Enfim, isso não é uma ode às bonitinhas.
Nem um tentativa gratuita de desancar as lindas.
É apenas a constatação de que tudo que é mediano tem um espaço mais confortável no mundo.



segunda-feira, 30 de novembro de 2015

O instinto de sobrevivência

A sobrevivência orgãnica, relacionada à saúde, é a primordial, diz respeito às funções básicas do corpo como comer, beber, respirar, dormir.
Enfim, é a sobrevivência por essência, a luta do corpo pela continuidade de suas funções que permitem manter o indivíduo vivo.
Mas, satisfeitas as funções vitais, podemos enumerar outros tipos de sobrevivência, principalmente as do ponto de vista psicológico.
A proteção da auto-estima, por exemplo, que protege o ego humano da destruição por experiências como o fim de um relacionamento, de uma carreira, de um sonho a que o ser em questão se encontra muito apegado.
Mas o ponto a que eu quero chegar vai além dessas modalidades de sobrevivência.
É uma indagação não sobre a sobrevivência imediata, mas a uma sobreviva relacionada à qualidade de vida do indivíduo.
A questão é: quanto mais a pessoa vive em conformidade com sua essência, não estaria ela mais propensa a uma vida longa?
Não estou considerando escolhas como se alimentar bem ou respirar um ar mais puro.
Me refiro a escolhas como viver de acordo com os princípios e aspirações estritamente individuais.
Como por exemplo, a "teimosia" de um artista em viver em função de sua arte, ainda que ela não renda a recompensa financeira nem pessoal.
Poderia também incluir aí as pessoas que abriram mão de um estilo de vida materialista por um jeito mais "light" de ser, às vezes de uma forma radical, como virando monges ou se dedicando integralmente à espiritualidade.
A questão que coloco é: não será o instinto de sobrevivência, em qualquer nível, ligado à sobrevivência em si?
Em outras palavras, executivos que lutam contra sua natureza não estariam se matando aos poucos?
Assim como artistas que não dão vazão ao seu instinto de criar não começariam a definhar?
Conheço um escritor que apresentou melhoras em seu estado de saúde assim que largou uma profissão que o consumia pelo exercício de sua arte em tempo integral.
Defendo que sim, que estar em sintonia consigo ajuda e muito na saúde.
Entendo que os consultórios de psicanálise não são altares para o pranto de mimados, pelo contrário, são importantes agentes para a cura de mentes e consequentemente, corpos doentes.
Daí a importância de compreender os recados que o corpo dá o tempo todo, quando não seguimos as diretrizes de vida que ele aponta.
São mensagens cifradas, manifestadas sob a forma de conflitos, geralmente em momentos de silêncio interior, quando não são abafados pela nossa ânsia de ocupar a mente com qualquer porcaria que se apresente.
Esses remédios para nossas angústias só podem ser manipulados pelo farmacêutico interno de cada um, e requerem vontade para serem elaborados.
Às vezes conseguimos acessá-los, às vezes não.
Muita vezes, precisamos de remédios novos porque os antigos já não fazem efeito, pois em cada etapa da vida as necessidades são diferentes.
Resumindo, nem só de pão e vinho vive o nosso organismo.
O alimento ideológico que escolhemos ou que a vida escolheu para nós, é tão essencial quanto.

domingo, 29 de novembro de 2015

40 dpi

Numa maternidade virtual, em um dia qualquer da era de aquarius, nasceu a menina em baixa resolução.
Ela não era a cara da mãe nem do pai, nem tinha as sombrancelhas da avó, ela era totalmente pixealizada.
Claro que isso não impediu o choro automático da mãe ao ver o rebento na mesa de parto, assim como o registro em câmera do pai babão.
Mas que era estranho ver a filha com a mesma cara indefinida do ultrassom, ah, isso era mesmo.
No começo foi difícil até dar papinha para o bebê, porque mal se podia localizar o contorno de sua boca - o que rendia dezenas de babadores sujos por dia.
Também foi problemático tirar qualquer documento da garotinha, pois uma foto 3x4 e nada dava no mesmo, já que não identificava ninguém.
Mas mesmo com tantos percalços, e despertando a curiosidade mais pela estranheza do que pela fofura, a garota pixealizada teve uma infância relativamente normal, passando ao largo do preconceito pelo menos na tenra infância.
Os problemas só começaram a aparecer naquela idade em que a rivalidade entre crianças aflora, onde a garotinha passou a ser alvo de zombaria na escola, na vizinhança, onde quer que ela buscasse seu lugar de existência.
Foi nesse fase que se iniciaram as crises de identidade e a garotinha naturalmente se isolou, trancafiada em seu quarto e passando horas a fio de frente para o espelho.
Obviamente os pais se preocuparam e ela acabou num consultório, onde a própria terapeuta se viu desorientada por aquele caso inédito.
O tempo passou, a garotinha se adaptou e a vida seguiu, pois a natureza é mesmo a mãe de todas as coisas.
Claro que a garotinha, apesar de sugerir uma belo rosto e um corpo bem torneado, teve que conformar com sua condição de excentricidade e se juntar aos "esquisitos" em todos os grupos de que fazia parte.
Foi assim na escola, no clube, na escola de teatro.
Isso não impediu que fizesse boas amizades, o que confortou seu coraçãozinho oprimido nas horas de baixo astral, por que todas as pessoas, inclusive as ditas normais, passam.
O que ela não esperava era que um certo rapazinho forasteiro, que havia passado quase toda a infância no exterior, se aproximasse dela como quem não queria nada e se tornasse, digamos, o primeiro affair de sua vida.
Era um tipo loirinho e misterioso, cabelo desgrenhada e visual punk, que havia chamado a atenção das garotas alternativas da escola, algumas muito mais bonitas que a menina pixealizada, se é que poderia haver um termo de comparação.
Talvez não houvesse mesmo, pois o rapazinho só tinha olhos para aquela fisionomia que não queria dizer nada.
Puxou papo, perguntou o nome, eram vistos juntos com frequencia, com a aura do amor a envolvê-los e encantá-los como uma redoma, despertando a atenção inclusive das patricinhas e outras garotas que nem se sentiam atraídas por ele, mas que invejavam aquele entrosamento perfeito.
Mas o enlevo da paixão e a certeza de ser amada não resolveu os complexos da garota, e quando ela se viu diante da possibilidade de ter um rosto como a das outras, não hesitou em procurar a solução.
Do outro lado do país, ouviu-se a notícia de um novo método parecido como uma cirurgia plástica, que multiplicava os pontos de um rosto e criava uma nova fisionomia.
No caso da garota, um novo rosto, baseado numa mistura dos traços dos pais.
Ela não queria que ninguém soubesse da sua intenção de mudar, nem mesmo seus progenitores.
Por isso falsificou assinaturas e conseguiu um empréstimo no banco, assim como a assinatura para fazer a cirurgia.
Para os pais, inventou uma excursão de escola, e para o rapaz, disse que uma tia havia falecido, e viajava às pressas para a cidade dela.
A cirurgia foi feita em pouco mais de 2 horas, nada complicado.
Exigia uma completo remapeamento de seu rosto e a produção de uma nova epiderme a partir de seu patrimônio genético, mas essas técnicas já eram dominadas há tempos pela moderna cirurgia plástica.
Já em recuperação em seu quarto d clínica, a garota permaneceu 1 dia com ataduras, com os olhos recobertos, que a impediu de ver sua nova feição.
Mas antes do nascer do dia seguinte ela já estava desperta, ansiosa pelo momento em que deixaria para trás sua vida de até então.
Por isso, quando ouviu o abrir da maçaneta e uma luz mais intensa atravessar a trama da gaze, sua caixa toráxica quase rompeu com as batidas do coração ansioso.
O médico a alertou que a princípio ela veria um rosto em estágio pós-cirúrgico, precisando aguardar a cicatrização e a pele se desprender para dar lugar ao resultado final.
Quando o doutor retirou a gaze, sua vista de turvou num átimo, e ela não sabia se a causa era a luz, as lágrimas que escorriam ou mesma a expectativa.
A enfermeira colocou um espelho de cabo em sua mão e quando a garota se mirou, não demorou nada para transbordar em lágrimas e felicidade.
Ela não segurou a emoção quando seus pais e os garoto ligaram mais tarde, mas não contou nada, deixando os pais preocupados e seu namorado, compreensivo, imaginando que era o efeito da perda da tia.
Guardou o segredo para uma grande surpresa, e o primeiro contemplado com a novidade era o garoto, aquele que a amou como ela era, pois aos pais sempre resta amar incondicionalmente.
Quando entrou triunfalmente pela porta da frente da escola, todos se voltaram para aquela menina linda, imaginando se tratar de uma aluna nova.
Sua chegada coincidiu com o intervalo das aulas e a garota não precisou de muitos passos para avistar seu amado cercado pelas megeras que, aproveitando-se de sua ausência, testavam a fidelidade do garoto.
Ela o observou à distância e, aliviada, viu ele abandonar o grupo e se isolar num canto, sacando seu celular com um ar de saudade.
Claro que a ligação era para ela.
Mas dessas coisas precisamos de confirmação.
E ela veio com o vibrar do aparelho em sua bolsa, que retirou com o cuidado de quem faz um carinho no rosto.
Ela atendeu com o "alô" mais confiante já emitido por um apaixonado.
Ele disse que estava com saudades.
Ela disse que deveria ser a proximidade e ele não entendeu a piada.
Só quando sentiu as mãos dela cobrindo seus olhos e o sopro morno de sua voz rouca acariciando suas orelhas.
Mas quando se virou, ele não entendeu.
Porque ela não o preparou para nada.
E mesmo de ouvir toda a explicação, ele não conseguiu explicar para si mesmo o sentimento de tê-la nos braços, mas ao mesmo tempo não tê-la mais.
Porque foi com esse sentimento de perda que ele a largou, e mesmo com súplicas engasgadas da menina, o garoto foi saindo, decepcionado, aturdido, desencontrado.
Os dias seguintes foram marcados por sentimentos contrastantes, porque os pais receberam muito bem a notícia, e não cansavam de admirar seu novo rosto, contemplar o que tinham de semelhança e imaginar como aquele semblante completaria os álbuns e as memórias de infância.
Mas do seu lado a menina era uma vale de angústia, pois não conseguia falar com o rapaz, e ele cruelmente não a recebeu quando foi procurá-lo em casa.
Depois de quase um mês, ele aceitou conversar e no novo encontro os sentimentos aflorados foram expostos à luz, para que decidissem os rumos da relação.
Aquele intervalo fez com o que o garoto investigasse a si mesmo, procurando nos escaninhos do seu mistério as respostas para sua confusão sentimental.
E ele emergiu dessa incursão com a certeza de que era ele a ponta fraca, já que percebeu que não tinha amado alguém, e sim a sua própria indefinição.
A garota ficou desconsolada, mas não quis argumentar.
Estava por demais magoada com sua desculpa incoerente, e interpretou isso como uma fraqueza incontornável de caráter.
Deu-lhe as costas e saiu para sua nova vida, deixando o rapaz encolhido, afundado em sua covardia.
A garota voltou para casa andando, com passos seguros que ela jamais imaginou que pudesse comandar, uma aura de força que foi percebida por todos que a cruzaram e viram passar, e principalmente, por ela mesma.

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Merda

Suponha que você tenha entre 35 e 45 anos, seja casado(a) e forme uma família de comercial de margarina.
Que seja bem sucedido e admirado em sua profissão, tenha boa aparência, amigos zelosos, bens e uma vida financeira confortável, e que o caminho que dará prosseguimento ao seu sucesso esteja asfaltado com aquela perfeição de rodovia privatizada.
Isso é o ideal da grande maioria das pessoas que nascem sob a regência do capitalismo, onde o american way of life é a promessa da terra prometida.
Ideal alcançado por pouquíssimas pessoas na teoria e por nenhuma na prática.
Porque esse modelo de vida não passa de mais um produto exposto em prateleira, e que não entrega as benesses prometidas em sua embalagem.
Mas isso só se constata depois de abrir o pacote, experimentar o produto e verificar que seus defeitos não são corrigidos pela assistência técnica, já que são erros de projeto.
Ah, quem mandou acreditar em propaganda enganosa.
Mas não é porque seu modelo de vida adquirido não funciona como o combinado, que você vai dar bandeira de que fez a compra errada.
Afinal você é um ícone de sucesso, e mesmo que muitos já tenham dito que o êxito é resultado da teimosia, ninguém é louco de admitir que falhou tantas vezes.
Porque nunca foi tão imperioso manter as aparências como em tempos de redes sociais.
Um post que entregue seu ser frágil pode suscitar manisfestações de solidariedade, mas pode ser uma estocada doída numa auto-imagem até então irretocável.
Então melhor continuar a desfilar com seu brinquedinho de controle remoto que não obedece direito a seus comandos.
Esse é um brinquedo de que se enjoa rapidamente, mas que se pode substituir por uma versão mais nova na próxima data festiva.
Alguns apregoam que o certo é doar seu brinquedo, não ele inteiro, mas aquelas poucas peças que não te farão diferença, mas que dará um gostinho de quero mais aos felizardos.
Outros radicalmente se desfazem do brinquedo e fazem do sentimento de desapego o brinquedo novo, também exibido para os outros em vitrine.
Não importa.
A maneira como você vai encaixar ou desencaixar as peças da sua vida não o redimem da realidade de que você só aprendeu a montar Lego.
De que agora pode ser tarde para montar outras coisas, coisas que não fazem sentido para seus coleguinhas de diversão e que tampouco você tem certeza de fazerem nexo na sua cabeça.
Esse é o teatro automático da sua vida, de que você talvez não seja capaz de sair de cena.
Merda.



Medo do papel em branco

Existia um menino pequenininho que morria de medo do papel em branco.
Era um pavor mesmo, porque mesmo adorando o desenho, e admirando os colegas que desenhavam bem, ele jamais se atreveu a se aproximar de uma mísera folha de papel vazia, aí incluídas as branquinhas e todos os seus matizes.
E o guri era mesmo um amante das artes, porque seja no aniversário ou natal, o presente que sempre pedia era uma caixa de qualquer coisa para colorir: lápis, giz de cera, canetinha.
Sua coleção desses artefatos era enorme e ocupava grande parte do armário e prateleiras de seu quarto, mas continuavam intactos, com suas pontas apontadíssimas, pela dificuldade do garotinho de empunhar qualquer "rabiscante" diante de uma folha vazia.
A superfície vazia, no caso, não incluíam paredes, porque desde cedo o garotinho tinha uma consciência cidadã suficiente para impedir que sucumbisse ao seu desejo e acabasse por emporcalhar os muros do bairro.
Mas o tempo passava, o garoto crescia, e não passava sua obsessão pelo papel em branco.
Até desviou seu foco para outros interesses à medida que ia crescendo, mas a sina também o perseguia em seus novos passos.
Sua primeira namorada, por exemplo, era filha de um dono de papelaria.
Seu professor de música não lecionava com folhas pautadas, somente com folhas em branco.
E assim por diante, fazendo com que o menino, agora um rapazote, enfim decidisse enfrentar seu medo.
Afinal, a puberdade era o momento ideal para se por à prova e amadurecer, segundo o que havia lido em tantos tratados sobre o assunto.
Resolveu que escreveria cartas de amor à moda antiga, de próprio punho, e remeteria à namorada.
Iniciou os preparativos para o momento de encarar seu trauma, primeiro escolhendo o artefato com que deitaria suas primeiras linhas nas páginas em branco.
Aponto vários tipos de lápis, testou diversas canetas, e enfim se decidiu por uma caneta tinteiro, já que a ocasião, solene para si mesmo, exigia um certo esmero na escrita.
Mas só de pousar a primeira folha de sulfite sobre a escrivaninha, sentiu as gotas de suor brotar da testa e escorrerem pelas têmporas, até pingarem sobre a folha.
Teve que substituí-la uma, duas, quantas vezes foram necessárias até estancar o suor.
Na sequencia, o simples empunhar da caneta tinteiro provocou uma tremedeira da mão que o bloqueou completamente, já que não desejava a hesitação como sinal inequívoco do primeiro traço de sua vida.
Mas o que mais temia aconteceu.
O pavor diante do papel voltou multiplicado, na forma de uma alucinação como se o branco leitoso em forma gasosa o envolvesse e o envenenasse, deixando o rapaz em estado letárgico.
Ele foi literalmente engolido pelo papel, que se dobrou na forma de um origami representando um unicórnio, e saiu voando pela janela aberta, como a metamorfose de alguém que nunca foi desse mundo.

terça-feira, 24 de novembro de 2015

Sabe de uma coisa?

Ao pé da letra a frase "A vida começa aos 40" pode ser interpretada erroneamente, como um alento a quem já passou pelos melhores anos da juventude ou um consolo nostálgico a quem nem chegou a viver intensamente sua fase dourada.
Mas só quem atingiu essa idade sabe o que isso significa.
Aos quarenta estamos livres - ou deveríamos estar - do fantasma da expectativa do porvir, aquela projeção do que você idealmente seria aos 30 e poucos anos.
No passado todo mundo acalentou um sonho do que poderia alcançar no ápice do seu potencial, e boa parte das pessoas - exceto as foram privados da sua potencialidade por carência de suas necessidades básicas - projetou para si mesmo um lugar ao sol que nem as próprias pessoas puderam na época dimensionar.
Mas elas chegam aos 35, 40 anos e constatam que suas vidas passaram muito ao largo do sonho.
Ou tomaram rumo diferente, em bifurcações que a vida nos oferece.
Muitos castelos de cartas foram desmoronados no caminho. E outros, feitos dos mais diversos materiais, se ergueram no lugar.
Se aos 40 você atingiu ou não o pódio planejado, pouco importa.
Aos vitoriosos caberá descobrir se as batatas alcançadas tinham mesmo o sabor imaginado.
E a partir daí, passar a buscar outro tipo de tubérculo.
Aos que sucumbirem ou acharem que sua busca foi em vão, restará o alívio de acordar do sonho - ou pesadelo - livres como nunca.
Mas desses sentimento, só os sábios desfrutarão.
A clarividência de que às vezes nos impomos tarefas que só a nós faz sentido só chega para quem consegue fazer o balanço dos 40 com sabedoria.
Porque é grande a chance dos "fracassados" se enredarem em novas missões auto-impostas substitutas dos sonhos juvenis.
E continuarem suas vidas nesse moto-contínuo de auto-flagelo de libertação.
Porque ainda não entenderam que a maior vitória todo mundo já alcançou: a de perceber que não há vitória a ser perseguida.



sábado, 31 de outubro de 2015

Paixão é para adolescentes?

Uma vez alguém disse que o rock era para jovens, porque o discurso libertário adolescente não condiz com marmanjos de 30 ou mais.
Faz sentido.
Aos 30 ou mais muita gente já formou família, teve filho, naturalmente fica mais difícil sair por aí levantando bandeiras revolucionárias.
Como na citação, "Aos 20 você é incendiário, aos 40, bombeiro".
Na verdade os impulsos juvenis já se extinguiram, então normal que as bandas de rock fiquem vivendo do passado.
E que fãs do rock continuem ouvindo por saudosismo, ou porque chegaram à meia idade e precisam reviver os anos dourados de suas vidas.
O ponto de discussão aqui é se arroubos de juventude fazem sentido em outras fases de vida.
Porque independente da idade, as pessoas continuam a se apaixonar por pessoas, projetos, idéias, causas.
Mas agora já sabem que a paixão não será eterna e nem levará ao êxtase esperado, coisa que aprenderam com as desilusões da vida.
Pode então a paixão ainda invocar o melhor de nós?
A vontade genuína de mudar e nos transformar?
Ou será que, já escolados pela experiência, começamos a desenhar a queda do castelo de cartas antes de começar a construí-lo?
Pode ser.
É de se supor que a ignorância saudável dos jovens os impulsione ao acerto.
São mais flexíveis aos erros, porque a vida ainda não lhes endureceu a articulações mentais.
E a transposição dos riscos é que fazem qualquer projetos passar a arrebentação, fazendo analogia o surf, um esporte que depende da capacidade de "levar caldo".
Então a capacidade de um quarentão de fazer uma mudança de rota substancial depende de uma couraça psicológica proveniente de uma forte personalidade, tenha ela uma origem atávica ou desenvolvida durante a vida.
Arriscar-se a um novo projeto depois dos 40 exige muita força de propósito, onde a paixão deve alimentar a disciplina redobrada a esss altura da vida.
A paixão deverá mover os apaixonados, neste caso o diletante e seu sonho, em direção a um final feliz.
Para talvez começar tudo de novo, num eterno ciclo de construção e destruição que não é nada senão a metáfora da existência.

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Novo modelo de modelo

A vida, e mais precisamente o mercado, se retroalimenta de modismos.
Ainda que um modismo por definição não passe de um passado revisitado e remodelado, sempre tendemos a acreditar que dessa vez a "tendência" traz algo de inovador.
Vintage, hipster, dê o nome que preferir, a "nova onda" é velha como qualquer termo que a tente definir.
O que mais me irrita nesses modismos são os termos criados para referenciar uma nova visão sobre um assunto, que logo caem em desuso para dar lugar ao próximo.
É o caso dos recentes "holístico" e "orgãnico".
Ou o menos recente "visceral".
Você pode formar uma frase inteira com esses termos e não querer dizer nada de especial com ela.
Por exemplo, o "a interpretação do ator foi visceral baseado numa temática com DNA orgânico".
Pronto, a pessoa fica inteligente só de abrir a boca.
Mas o problema não é gente vivendo de abobrinha pseudo-intelectual - reuniões em corporação duram mais por isso.
É perder a capacidade de separar o substancial do oco.
Pior que isso, é adquirir essa capacidade.
Pois somos cada vez mais expostos a conteúdo raso, barato, disfarçado por esse léxico pseudo sofisticado.
Mas não digo que o que vale a pena ser apreendido passe apenas pelo avaliação do crivo da lógico.
Nas artes, por exemplo, há o fator emocional que igualmente permeia a distinção do que enobrece a alma.
Em alguns casos as manifestações artísticas podem se distinguir pela carga emocional que despertam, ainda que não sejam totalmente compreendidas.
O critério do que é bom passa pela peneira bi-partida de razão e emoção.
Obviamente não dá para desconsidar o que os críticos já disseram sobre a obra.
Se ela é considerada uma obra-prima, se já entrou para os anais de qualquer escola artística, isso acaba influenciando nossa avaliacão leiga.
Enfim, não estou defendendo que só devemos considerar o que consagrado, em detrimento de novos conteúdos, sejam quais forem as roupagens de que eles estiverem revestidos.
Apenas que esse avalie sempre os modismos e seus arautos com a sombra da dúvida deixando ver seu conteúdo por baixo do brilhareco da novidade.