Durante anos ouvi frases do tipo,
"O sonho é a parte mais importante da realidade", de um publicitário;
"As pessoas querem ilusão", de um amigo;
"A imaginação é mais importante que o conhecimento", de um famoso físico que colocava a língua pra fora.
Mas como sou de formação matemática, demorei a enxergar que muitas respostas, inclusive para a vida, estão no 2+2=5 da ficção.
Você pode não perceber, mas vive de ficção.
Somos personagens de uma grande matrix que se chama vida, e cada um faz seu filme como quer, com cenários, personagens e trilha sonora próprios.
O chato é que minha mente compartimentada demorou a entender que na prática ficção e realidade não fazem diferença.
E eu demorei a colocar em prática o plano de viver de ficção.
Ou melhor, viver minha própria ficção inventada.
Porque se você deixar, pode viver a ficção dos outros.
Os outros querem que você seja ator coadjuvante das histórias deles.
Querem que você seja a escada para eles alcançarem seu Oscar pessoal.
Então ou você decide que vai viver o papel escrito pelo seu destino, ou acaba sendo figurante, mero cenário dos outros.
É fácil perceber isso, é só se observar.
Aquele que se acomodou nas ondas do destino, leva no rosto a expressão da pasmaceira ou do entusiamo coletivo induzido, típico da coerção da sociedade.
Já quem decidiu comprar a briga da independência traz a lucidez em sua aura.
A determinação de quem conquistou sua auto-consciência.
O discernimento entre o que soma e subtrai.
E principalmente, olhos por onde se entrevê uma chama interna incessante.
Desde que eu decidi viver minha verdadeira história, tudo melhorou.
sábado, 13 de dezembro de 2014
sexta-feira, 12 de dezembro de 2014
Confesso que não vivi
Fui uma dessas pessoas que acreditavam que o sucesso iria justificar todo e qualquer esforço.
Por isso me deixei "institucionalizar".
Acreditei nas palavras dos mestres sem questionar sua humanidade.
Abracei causas que se disfarçavam de vitais.
Me deixei levar pela crença de um grupo que se auto-congratulava com mimos no ego.
Me encerrei na matrix, como diria um amigo.
Uma matrix da qual meu coração tentou vários telefonemas para escapar.
Mas do outro lado só havia uma criança surda e tola.
Essa criança se lambuzou com promessas que inventou pra si mesma.
Que um dia ia ser famoso, querido, admirado, nem que fosse pelos motivos errados.
E que importavam os motivos, na época?
Tudo que um coelhinho acuado quer é sair de sua toca.
E pra isso, ele inventa várias cenourinhas.
Mas um dia você percebe que os troféus são de latão.
Que o sucesso é uma invenção do homem.
E você quer voltar e puxar a orelha daquele que comprou a idéia.
São poucos os que sobrevivem jovens.
A maioria está muito confusa para se não deixar levar pelos conselhos sensatos.
Seja isso, seja aquilo.
Busque o conforto e a segurança.
É o instinto prevalecendo sobre a vontade da alma.
Só que a alma encarcerada nunca definha.
A subjugação só a fortalece.
E um dia seus tentáculos irão alcançar e abrir a fechadura.
Para libertar aquele que você se esqueceu de ser.
De novo, as tentações farão vigília para recrutá-lo.
Mas será inócuo.
Ser livre era sua única ambição.
Por isso me deixei "institucionalizar".
Acreditei nas palavras dos mestres sem questionar sua humanidade.
Abracei causas que se disfarçavam de vitais.
Me deixei levar pela crença de um grupo que se auto-congratulava com mimos no ego.
Me encerrei na matrix, como diria um amigo.
Uma matrix da qual meu coração tentou vários telefonemas para escapar.
Mas do outro lado só havia uma criança surda e tola.
Essa criança se lambuzou com promessas que inventou pra si mesma.
Que um dia ia ser famoso, querido, admirado, nem que fosse pelos motivos errados.
E que importavam os motivos, na época?
Tudo que um coelhinho acuado quer é sair de sua toca.
E pra isso, ele inventa várias cenourinhas.
Mas um dia você percebe que os troféus são de latão.
Que o sucesso é uma invenção do homem.
E você quer voltar e puxar a orelha daquele que comprou a idéia.
São poucos os que sobrevivem jovens.
A maioria está muito confusa para se não deixar levar pelos conselhos sensatos.
Seja isso, seja aquilo.
Busque o conforto e a segurança.
É o instinto prevalecendo sobre a vontade da alma.
Só que a alma encarcerada nunca definha.
A subjugação só a fortalece.
E um dia seus tentáculos irão alcançar e abrir a fechadura.
Para libertar aquele que você se esqueceu de ser.
De novo, as tentações farão vigília para recrutá-lo.
Mas será inócuo.
Ser livre era sua única ambição.
quinta-feira, 11 de dezembro de 2014
A formiga e a cigarra. E vice-versa.
Certo dia a formiga, voltando exausta de um dia frenético na Bolsa de Valores local, passa por uma praça onde escuta os acordes de violão de uma melodia familiar.
As notas penetrando em seu ouvindo eram o cartão de embarque ao seu passado, moldado em vigor físico e esperança num futuro que se descortinaria em uma vida de enfado.
Por isso foi com enlevo nostálgico que a formiga abriu passagem entre a aglomeração que formava a concha acústica em torno da cantiga, sentimento logo desfeito pela visão de uma cigarra desdentada e decadente.
Um misto de decepção e alívio se apoderou da formiga até o final da apresentação, quando enfim a cigarra foi ter com ela.
Seus olharem já haviam se cruzado durante a última música, o que também motivou a cigarra a encerrá-la abruptamente, quando mais gente se juntava para apreciar.
Com expressões tímidas nos rostos, as duas se aproximaram e trocaram um aperto de mão burocrático, típico de quem espera a reação do outro para medir seus próximos passos.
A formiga toma a iniciativa.
- Eu tava passando por aqui quando ouvi esse jeito de tocar inconfundível. E aí, como vai?
- Bem... como você pode ver, tirando as rugas e os cabelos brancos, do mesmo jeito.
- Os anos 60 não saíram de você, mesmo. Mas e aí, não casou, não teve filhos?
- Tenho ex-mulher e filhos nos Estados Unidos. E você?
- Casei, tenho dois filhos. Moro numa casa no Jardim Europa.
- Jardim Europa? Pelo jeito o trabalho enobreceu o homem mesmo.
- Sim, não tenho do que me queixar. Tenho empresa própria, invisto na bolsa.
- Ah, sabia que você tinha futuro. Você não descansava nunca, lembra?
- Pois é, se não estava trabalhando, eu estudava.
- Perdi as contas de quantos convites te fiz. Festas, praia, jogar pelada, pescar. Só uma vez você foi com a gente e encheu a cara até cair. Uma vezinha só, meu Deus.
- É, né? Podia ter pegado mais leve. Mas e você, o que fez da vida, amigo?
- Fiquei um bom tempo vivendo da mesada do meu pai. Daí uma hora ele cortou pra me endireitar. E por um tempinho funcionou, arrumei um emprego, casei e tal. Mas essa de vida certinha nunca foi a minha.
- Dá pra ver, você continua tocando as mesmas músicas.
- Eu tive banda, sabia? Cheguei a fazer uma turnê pelo interior do Brasil, toquei em bares, conheci muita gente.
- E nem me convidou?
- Hehe.. Ah, foi uma farra. Uma mulherada, rapaz...
- Eu imagino.
- Mas a coisa uma hora cansou. E foi justo quando conheci minha mulher. Então achei que poderia ser igual a todo mundo. Mas vai, me conta mais de você.
- Não tenho muito o que contar, não. De tanto estudar acabei passando no ITA, com louvor. Todo mundo achava aquela escola um inferno. Mas eu amava.
- É a sua cara.
- O que?
- Se matar de estudar.
- Bom, você me conhece.
- Mas ITA tem a ver com avião, não Bolsa de Valores.
- É que recebi uma proposta no último semestre que me fez arregalar os olhos. Muitos números. Uma empresa do mercado financeiro.
- Capitalismo selvagem.
- E bota selvagem nisso. Da noite pro dia eu podia ter tudo: carrões, relógios, hotéis de luxo, sócio dos clubes mais restritos da cidade. E lógico, mulheres lindas.
- Ah, formigão seu safado.
- E eu, cabaço, com aquele monte de maria-debênture me dando mole, claro, caí na esbórnia. Mas como diz aquele ditado, a gente se lambuza, acabei engravidando uma menina.
- Mulheres, sempre elas.
- Mulheres caras, o que é pior. Voltei ao meu velho estilo, casa-trabalho, trabalho-casa.
- Poxa, mas você tá super-bem, é uma vencedor do sistema.
- Sou?
- Eu é que não sou.
- É tudo uma questão de ponto de vista. Por um lado eu tenho tudo, mas ao mesmo tempo o que me faz ter tudo me acorrenta.
- Ah, pára, trabalho nunca foi problema pra você.
- Mas a falta de tempo é um problema. Sou dono de tudo, menos do meu tempo.
- Isso é um problema pra todos nós, amigo. Olha eu, pareço uma cópia mal feita do Erasmo Carlos.
- Hahaha, bom humor nunca lhe faltou.
- Mas grana... cansei dos boletos entrando por baixo da porta, hoje nem abro mais, vão se acumulando até eu perder o crédito.
- Vai ser marido de mulher rica pra ver o que é boleto.
- Minha vida é um caos, minha casa, um lixo. Eu nunca consegui me organizar, arquitetar o menor projeto que fosse. Por isso estou aqui, como há 30 anos atrás.
- Mas aposto que curtiu cada segundo desses 30 anos.
- Você se engana, meu amigo. Acha que também não tive minhas frustrações, meus arrependimentos? Não me formei, tive empregos porcos e mal pagos. Bebia e fumava meu salário. Não botava um puto em casa.
- Sua mulher trabalhava, então.
- Era a sua versão feminina. Tinha essa coisa maternal de me ajudar, proteger, mas uma hora cansou né? Foi quando ela conheceu um americano que veio trampar aqui por um tempo. Não demorou pra ela se dar conta de que podia ser feliz de verdsade com ele.
- Sinto muito.
- Ah, não precisa. Ela foi ser feliz e fiquei feliz por ela também. Não merecia me levar nas costas, nem ela nem as crianças.
- Deve ser duro pra você ficar longe deles.
- Muito. Mas eu sou do tipo que não se dá bem com instituições, família, etc. Hoje meus amigos são os das praças, os que levam a vida como eu.
- Bom, então nenhum de nós está feliz, é isso?
- Não sei se feliz é a palavara correta. Acho que cada um foi talhado pra um estilo de vida, para o bem ou para o mal. A maneira como cada um aceita e se adapta a isso deixa o sujeito mais ou menos feliz. É o que eu penso.
- Pode ser.
- Bom, mas e aí, quer tomar uma? Tem um bar ótimo ali na esquina.
- É que...
- Ah, tá certo, tem compromisso.
- Jantar na sogra, aniversário da velha.
- Como é que eu podia me esquecer...
- Do aniversário? Mas você não poderia...
- Do seu jeito.
- Ah tá, verdade.
- Então tchau, cara. Prazer em revê-lo.
- O prazer foi meu. Lembranças à família.
- Pra sua também.
Eles já tinham se dado as costas quando a cigarra se volta pra formiga e diz:
- Só uma coisa.
- Hã? Diz.
- Você não mudou nada.
- Você também não, amigo.
E cada um foi para o seu canto, o canto de sempre.
As notas penetrando em seu ouvindo eram o cartão de embarque ao seu passado, moldado em vigor físico e esperança num futuro que se descortinaria em uma vida de enfado.
Por isso foi com enlevo nostálgico que a formiga abriu passagem entre a aglomeração que formava a concha acústica em torno da cantiga, sentimento logo desfeito pela visão de uma cigarra desdentada e decadente.
Um misto de decepção e alívio se apoderou da formiga até o final da apresentação, quando enfim a cigarra foi ter com ela.
Seus olharem já haviam se cruzado durante a última música, o que também motivou a cigarra a encerrá-la abruptamente, quando mais gente se juntava para apreciar.
Com expressões tímidas nos rostos, as duas se aproximaram e trocaram um aperto de mão burocrático, típico de quem espera a reação do outro para medir seus próximos passos.
A formiga toma a iniciativa.
- Eu tava passando por aqui quando ouvi esse jeito de tocar inconfundível. E aí, como vai?
- Bem... como você pode ver, tirando as rugas e os cabelos brancos, do mesmo jeito.
- Os anos 60 não saíram de você, mesmo. Mas e aí, não casou, não teve filhos?
- Tenho ex-mulher e filhos nos Estados Unidos. E você?
- Casei, tenho dois filhos. Moro numa casa no Jardim Europa.
- Jardim Europa? Pelo jeito o trabalho enobreceu o homem mesmo.
- Sim, não tenho do que me queixar. Tenho empresa própria, invisto na bolsa.
- Ah, sabia que você tinha futuro. Você não descansava nunca, lembra?
- Pois é, se não estava trabalhando, eu estudava.
- Perdi as contas de quantos convites te fiz. Festas, praia, jogar pelada, pescar. Só uma vez você foi com a gente e encheu a cara até cair. Uma vezinha só, meu Deus.
- É, né? Podia ter pegado mais leve. Mas e você, o que fez da vida, amigo?
- Fiquei um bom tempo vivendo da mesada do meu pai. Daí uma hora ele cortou pra me endireitar. E por um tempinho funcionou, arrumei um emprego, casei e tal. Mas essa de vida certinha nunca foi a minha.
- Dá pra ver, você continua tocando as mesmas músicas.
- Eu tive banda, sabia? Cheguei a fazer uma turnê pelo interior do Brasil, toquei em bares, conheci muita gente.
- E nem me convidou?
- Hehe.. Ah, foi uma farra. Uma mulherada, rapaz...
- Eu imagino.
- Mas a coisa uma hora cansou. E foi justo quando conheci minha mulher. Então achei que poderia ser igual a todo mundo. Mas vai, me conta mais de você.
- Não tenho muito o que contar, não. De tanto estudar acabei passando no ITA, com louvor. Todo mundo achava aquela escola um inferno. Mas eu amava.
- É a sua cara.
- O que?
- Se matar de estudar.
- Bom, você me conhece.
- Mas ITA tem a ver com avião, não Bolsa de Valores.
- É que recebi uma proposta no último semestre que me fez arregalar os olhos. Muitos números. Uma empresa do mercado financeiro.
- Capitalismo selvagem.
- E bota selvagem nisso. Da noite pro dia eu podia ter tudo: carrões, relógios, hotéis de luxo, sócio dos clubes mais restritos da cidade. E lógico, mulheres lindas.
- Ah, formigão seu safado.
- E eu, cabaço, com aquele monte de maria-debênture me dando mole, claro, caí na esbórnia. Mas como diz aquele ditado, a gente se lambuza, acabei engravidando uma menina.
- Mulheres, sempre elas.
- Mulheres caras, o que é pior. Voltei ao meu velho estilo, casa-trabalho, trabalho-casa.
- Poxa, mas você tá super-bem, é uma vencedor do sistema.
- Sou?
- Eu é que não sou.
- É tudo uma questão de ponto de vista. Por um lado eu tenho tudo, mas ao mesmo tempo o que me faz ter tudo me acorrenta.
- Ah, pára, trabalho nunca foi problema pra você.
- Mas a falta de tempo é um problema. Sou dono de tudo, menos do meu tempo.
- Isso é um problema pra todos nós, amigo. Olha eu, pareço uma cópia mal feita do Erasmo Carlos.
- Hahaha, bom humor nunca lhe faltou.
- Mas grana... cansei dos boletos entrando por baixo da porta, hoje nem abro mais, vão se acumulando até eu perder o crédito.
- Vai ser marido de mulher rica pra ver o que é boleto.
- Minha vida é um caos, minha casa, um lixo. Eu nunca consegui me organizar, arquitetar o menor projeto que fosse. Por isso estou aqui, como há 30 anos atrás.
- Mas aposto que curtiu cada segundo desses 30 anos.
- Você se engana, meu amigo. Acha que também não tive minhas frustrações, meus arrependimentos? Não me formei, tive empregos porcos e mal pagos. Bebia e fumava meu salário. Não botava um puto em casa.
- Sua mulher trabalhava, então.
- Era a sua versão feminina. Tinha essa coisa maternal de me ajudar, proteger, mas uma hora cansou né? Foi quando ela conheceu um americano que veio trampar aqui por um tempo. Não demorou pra ela se dar conta de que podia ser feliz de verdsade com ele.
- Sinto muito.
- Ah, não precisa. Ela foi ser feliz e fiquei feliz por ela também. Não merecia me levar nas costas, nem ela nem as crianças.
- Deve ser duro pra você ficar longe deles.
- Muito. Mas eu sou do tipo que não se dá bem com instituições, família, etc. Hoje meus amigos são os das praças, os que levam a vida como eu.
- Bom, então nenhum de nós está feliz, é isso?
- Não sei se feliz é a palavara correta. Acho que cada um foi talhado pra um estilo de vida, para o bem ou para o mal. A maneira como cada um aceita e se adapta a isso deixa o sujeito mais ou menos feliz. É o que eu penso.
- Pode ser.
- Bom, mas e aí, quer tomar uma? Tem um bar ótimo ali na esquina.
- É que...
- Ah, tá certo, tem compromisso.
- Jantar na sogra, aniversário da velha.
- Como é que eu podia me esquecer...
- Do aniversário? Mas você não poderia...
- Do seu jeito.
- Ah tá, verdade.
- Então tchau, cara. Prazer em revê-lo.
- O prazer foi meu. Lembranças à família.
- Pra sua também.
Eles já tinham se dado as costas quando a cigarra se volta pra formiga e diz:
- Só uma coisa.
- Hã? Diz.
- Você não mudou nada.
- Você também não, amigo.
E cada um foi para o seu canto, o canto de sempre.
quarta-feira, 10 de dezembro de 2014
O defeito do perfeccionismo
Dizem que quando você quer algo bem feito, tem que fazer você mesmo.
Mas isso não se aplica a habilidades que não são as suas.
E muitas vezes não se aplica aos perfeccionistas.
Isto é, aí depende do que você chama de algo "bem feito".
O "bem feito" pode ser o razoavelmente executado, só que dentro do prazo.
Pode ser o meticulosamente realizado, mas sem respeito a deadlines.
Dificilmente se tem as duas coisas, a perfeição do trabalho dentro de um prazo exíguo.
Fazer bem feito exige habilidade, experiência, concentração, sorte, recursos financeiros, condições que dificilmente estarão todas reunidas num único projeto.
Além disso muitas vezes é preciso ter ousadia para arriscar, o que aumenta a probabilidade da empreitada não dar certo, jogando o perfeccionismo por água abaixo.
O perfeito não existe, já diziam nossas avós, mas vá tentar convencer um perfeccionista disso.
Provavelmente ele dirá que isso é apenas uma desculpa para ser desleixado, fazer meia-boquice.
Porque esse é um dos defeitos do perfeccionista: acreditar que só há 8 ou 80, o perfeito ou o serviço porco.
Mas como diriam os budistas, há sempre o caminho do meio.
E esse caminho do meio é amplo, tem várias pistas como uma highway européia.
O satisfatório pode ir de nota 5 a 9, o que, convenhamos, para muitas coisas na vida está mais do que bom.
Mas o perfeccionista não pensa assim.
Para ele, hotel deveria ter até 10 estrelas, aluno deveria buscar a nota 11, a miss, só para se candidatar, teria que medir 60x90x60.
Por isso o perfeccionista sofre.
Patina no terreno da hesitação.
Como tudo necessita de preparação, o tempo é seu maior inimigo.
Em sua lógica, se nada for planejado, ensaiado, exaurido, o resultado só poderá ser pífio.
Mas de longe não depende só disso.
A vida escolhe caminhos aleatórios, toma direções imprevistas, muitas vezes contra a nossa vontade.
Por isso é preciso aceitar as derrotas.
Muitas vezes todos os fatores comungam com o sucesso, mas na última hora ele dá no-show.
O perfeccionista precisa aprender a se perdoar.
Desenvolver capacidade de resignação diante dos revezes.
Até achar uma certa graça e "prazer" em falhar.
Porque os que mais falham, provavelmente estão vivendo melhor, com mais autenticidade e ousadia.
E beliscando um sucesso ou outro, de vez em quando.
É uma relação estatística entre tentativa e acerto, que a vida demonstra melhor que os números.
Mas isso não se aplica a habilidades que não são as suas.
E muitas vezes não se aplica aos perfeccionistas.
Isto é, aí depende do que você chama de algo "bem feito".
O "bem feito" pode ser o razoavelmente executado, só que dentro do prazo.
Pode ser o meticulosamente realizado, mas sem respeito a deadlines.
Dificilmente se tem as duas coisas, a perfeição do trabalho dentro de um prazo exíguo.
Fazer bem feito exige habilidade, experiência, concentração, sorte, recursos financeiros, condições que dificilmente estarão todas reunidas num único projeto.
Além disso muitas vezes é preciso ter ousadia para arriscar, o que aumenta a probabilidade da empreitada não dar certo, jogando o perfeccionismo por água abaixo.
O perfeito não existe, já diziam nossas avós, mas vá tentar convencer um perfeccionista disso.
Provavelmente ele dirá que isso é apenas uma desculpa para ser desleixado, fazer meia-boquice.
Porque esse é um dos defeitos do perfeccionista: acreditar que só há 8 ou 80, o perfeito ou o serviço porco.
Mas como diriam os budistas, há sempre o caminho do meio.
E esse caminho do meio é amplo, tem várias pistas como uma highway européia.
O satisfatório pode ir de nota 5 a 9, o que, convenhamos, para muitas coisas na vida está mais do que bom.
Mas o perfeccionista não pensa assim.
Para ele, hotel deveria ter até 10 estrelas, aluno deveria buscar a nota 11, a miss, só para se candidatar, teria que medir 60x90x60.
Por isso o perfeccionista sofre.
Patina no terreno da hesitação.
Como tudo necessita de preparação, o tempo é seu maior inimigo.
Em sua lógica, se nada for planejado, ensaiado, exaurido, o resultado só poderá ser pífio.
Mas de longe não depende só disso.
A vida escolhe caminhos aleatórios, toma direções imprevistas, muitas vezes contra a nossa vontade.
Por isso é preciso aceitar as derrotas.
Muitas vezes todos os fatores comungam com o sucesso, mas na última hora ele dá no-show.
O perfeccionista precisa aprender a se perdoar.
Desenvolver capacidade de resignação diante dos revezes.
Até achar uma certa graça e "prazer" em falhar.
Porque os que mais falham, provavelmente estão vivendo melhor, com mais autenticidade e ousadia.
E beliscando um sucesso ou outro, de vez em quando.
É uma relação estatística entre tentativa e acerto, que a vida demonstra melhor que os números.
domingo, 7 de dezembro de 2014
Augusta rua
Alguns lutam a vida inteira para tornar um sobrenome importante.
Ela atravessa décadas consagrando um singelo primeiro nome como símbolo do apogeu e queda de uma região: a Rua Augusta.
A Augusta já representou a opulência aristocrática, o endereço de luxo das mais importantes grifes à disposição dos abonados paulistanos - hoje foi superada pelo tal de Oscar, que precisa de um Freire na frente para merecer o mesmo respeito de sua antecessora.
Pelas ruas da Augusta, muito antes dos motoboys ameaçarem decapitar qualquer desavisado que ousasse colocar a cabeça para fora, eram comuns os emparelhamentos de carros, onde paquerantes e paquerados trocavam olhares, galanteios e números de telefone.
Hoje em dia fica difícil imaginar por ali um desfile de beldades em capotas abertas, a não ser numa ação de marketing fake.
Em seguida, dominada em sua região mais baixa pelas saunas e meretrícios, a Augusta virou antro do submundo, por onde os mais envergonhados passavam olhando as vitrines e putas de esguelha, ao contrário dos libertinos, que não se rogavam em parar o carro em busca de companhia de fim de festa.
Mais recentemente, em tempos de cultura hype, a Augusta tomou a dianteira como QG do underground paulistano, passando a abrigar, entre bares, baladas, lojas e puteiros, os points mais cool da cidade, concentrando o maior índice de biodiversidade por metro quadrado da cidade.
Algo semelhante à Reeperbahn de Hamburgo, que reúne baladas cool com uma miniatura do red light district de Amsterdam, juntando quem vive à noite com quem vive da noite sem nenhum preconceito.
Basta sentar-se à uma mesinha da Augusta no fim da tarde do sábado para observar a troca de guarda de seus frequentadores.
Aos poucos os estudantes de sociais amantes do papo e da breja gelada darão lugar a punks, freaks e espécies afins, refletindo nas calçadas os brilhos das fechadas de neon.
Há também os mais comportados, que acabaram ali apenas para uma sessão de cinema, show de stand-up ou um lanche do Frevinho.
Esses só estão ali para comprovar a vocação plural da Augusta.
Pena que essa pluraridade esteja com os dias contados, com a especulação imobiliária engolindo mais uma vez os 15 minutos de fama de suas fachadas coloridas.
Mas ainda que o tsunami urbano atravesse o leito da rua e ponha abaixo sua caracterização, a Augusta conservará em seus genes sua capacidade de ser vanguarda sob qualquer condição.
Coisa que sua prima esnobe e coxinha, a Avenida Paulista, não conseguiu manter.
Ela atravessa décadas consagrando um singelo primeiro nome como símbolo do apogeu e queda de uma região: a Rua Augusta.
A Augusta já representou a opulência aristocrática, o endereço de luxo das mais importantes grifes à disposição dos abonados paulistanos - hoje foi superada pelo tal de Oscar, que precisa de um Freire na frente para merecer o mesmo respeito de sua antecessora.
Pelas ruas da Augusta, muito antes dos motoboys ameaçarem decapitar qualquer desavisado que ousasse colocar a cabeça para fora, eram comuns os emparelhamentos de carros, onde paquerantes e paquerados trocavam olhares, galanteios e números de telefone.
Hoje em dia fica difícil imaginar por ali um desfile de beldades em capotas abertas, a não ser numa ação de marketing fake.
Em seguida, dominada em sua região mais baixa pelas saunas e meretrícios, a Augusta virou antro do submundo, por onde os mais envergonhados passavam olhando as vitrines e putas de esguelha, ao contrário dos libertinos, que não se rogavam em parar o carro em busca de companhia de fim de festa.
Mais recentemente, em tempos de cultura hype, a Augusta tomou a dianteira como QG do underground paulistano, passando a abrigar, entre bares, baladas, lojas e puteiros, os points mais cool da cidade, concentrando o maior índice de biodiversidade por metro quadrado da cidade.
Algo semelhante à Reeperbahn de Hamburgo, que reúne baladas cool com uma miniatura do red light district de Amsterdam, juntando quem vive à noite com quem vive da noite sem nenhum preconceito.
Basta sentar-se à uma mesinha da Augusta no fim da tarde do sábado para observar a troca de guarda de seus frequentadores.
Aos poucos os estudantes de sociais amantes do papo e da breja gelada darão lugar a punks, freaks e espécies afins, refletindo nas calçadas os brilhos das fechadas de neon.
Há também os mais comportados, que acabaram ali apenas para uma sessão de cinema, show de stand-up ou um lanche do Frevinho.
Esses só estão ali para comprovar a vocação plural da Augusta.
Pena que essa pluraridade esteja com os dias contados, com a especulação imobiliária engolindo mais uma vez os 15 minutos de fama de suas fachadas coloridas.
Mas ainda que o tsunami urbano atravesse o leito da rua e ponha abaixo sua caracterização, a Augusta conservará em seus genes sua capacidade de ser vanguarda sob qualquer condição.
Coisa que sua prima esnobe e coxinha, a Avenida Paulista, não conseguiu manter.
sábado, 6 de dezembro de 2014
Personagens
Personagens.
Histórias só existem por eles.
Complexos, esquizofrênicos, doces, passionais, melodramáticos, pacatos, alérgicos, ninfomaníacos, ultradimensionais.
Saio à rua e os encontro aos montes.
Todos interessantes.
De perto são ricos, intrigantes, misteriosos.
Ninguém é normal, já dizia alguém que esqueci.
Um segurança de prédio macambúzio, de noite vai entrelaçar as pernas como um extrovertido professor de cúmbia.
A velhinha caquética e assassina.
O moleque de rua que é um talentoso escultor.
O traficante que lidera romarias em feriados santos.
Todos eles empenhados no astuto trabalho de dissimulação de suas identidades ocultas.
Deixando entrever apenas uma fresta mínima para a imaginação sorrateira.
Que de lá irá extrair o que têm de mais interessante.
Verdade ou ficção, não importa.
A verdade sempre é relativa.
Não existe o "de carne e osso" na dimensão molecular.
Não existe o molecular em outra dimensão.
Não existe o hoje na coexistência atemporal do mundo.
Existe somente o que quisermos ver, sentir, pintar na tela imaginária, cósmica, atômica.
Nosso ponto de vista não é só da vista.
É dos outros sentidos, da memória emocional, da experiência.
A identificação com um personagem vem de um simples gesto, olhar, a sutileza que reverbera em camadas atrofiadas do inconsciente.
Que pedem carona à história para vir à tona.
Ou apenas fazer um bate-e-volta.
Personagem bom é o que nos pega pela mão para um passeio pelas trevas.
Que constrói a ponte para retomar a jornada do ponto onde se abriu um abismo.
Combinar um cinema ou teatro com alguém é mero pretexto.
O encontro verdadeiro é o seu com o personagem.
Desse encontro pode sair mais um caso de amor à vida.
Histórias só existem por eles.
Complexos, esquizofrênicos, doces, passionais, melodramáticos, pacatos, alérgicos, ninfomaníacos, ultradimensionais.
Saio à rua e os encontro aos montes.
Todos interessantes.
De perto são ricos, intrigantes, misteriosos.
Ninguém é normal, já dizia alguém que esqueci.
Um segurança de prédio macambúzio, de noite vai entrelaçar as pernas como um extrovertido professor de cúmbia.
A velhinha caquética e assassina.
O moleque de rua que é um talentoso escultor.
O traficante que lidera romarias em feriados santos.
Todos eles empenhados no astuto trabalho de dissimulação de suas identidades ocultas.
Deixando entrever apenas uma fresta mínima para a imaginação sorrateira.
Que de lá irá extrair o que têm de mais interessante.
Verdade ou ficção, não importa.
A verdade sempre é relativa.
Não existe o "de carne e osso" na dimensão molecular.
Não existe o molecular em outra dimensão.
Não existe o hoje na coexistência atemporal do mundo.
Existe somente o que quisermos ver, sentir, pintar na tela imaginária, cósmica, atômica.
Nosso ponto de vista não é só da vista.
É dos outros sentidos, da memória emocional, da experiência.
A identificação com um personagem vem de um simples gesto, olhar, a sutileza que reverbera em camadas atrofiadas do inconsciente.
Que pedem carona à história para vir à tona.
Ou apenas fazer um bate-e-volta.
Personagem bom é o que nos pega pela mão para um passeio pelas trevas.
Que constrói a ponte para retomar a jornada do ponto onde se abriu um abismo.
Combinar um cinema ou teatro com alguém é mero pretexto.
O encontro verdadeiro é o seu com o personagem.
Desse encontro pode sair mais um caso de amor à vida.
sexta-feira, 5 de dezembro de 2014
A borboleta
Um garoto de 6 anos conversa com sua mãe no jardim de casa.
- Mãe, verdade que essa borboleta já foi uma larva?
- Verdade, filho, uma larva bem feia.
- Mas como ela conseguiu ficar assim tão bonita? Fez plástica?
- Não, amor, borboletas não fazem plásticas. É a natureza mesmo, um processo chamado metamorfose.
- Meta o quê?
- Metamorfose. A larva entra numa espécie de casinha chamada casulo - que ela mesma faz - e de lá sai transformada, com asas, toda lindinha como essa aí.
- Ah, tipo a cabine do super-homem?
- Mais ou menos, filho. O super-homem só troca de roupa, a borboleta se transforma completamente.
- Então o homem não consegue ganhar asas?
- Nem com Red Bull.
- Hã?
- Nada, esquece. Infelizmente não, Gutinho. Por isso inventamos o avião, a asa delta.
- Então o homem não passa por essa tal metamorfose?
- Passa sim. Mas a metamorfose no homem só muda ele por dentro.
- Hã? As asas do homem nascem por dentro?
- De alguma forma sim, um dia você vai entender.
- Mas eu quero entender agora, mãe. Por favor, me explica.
- A metamorfose no homem acontece de várias formas. Por exemplo, o seu irmão Pedro está ficando com a voz grossa. Ele está passando por uma metamorfose chamada adolescência.
- Mas eu quero saber das asas, mamãe, não da voz.
- Quando o homem ganha asas, meu amor, é só um modo de dizer. Sua irmã Paula foi morar em outra casa, se formou e depois casou. Então ela ganhou asas, ganhou vida própria.
- Sei, então isso é metamorfose?
- Sim, uma mudança grande na vida da gente.
- Então o que aconteceu com o papai também foi metamorfose.
- Pois é. Seu pai encontrou outra mulher e preferiu sair de casa. Foi uma metamorfose pra ele, pra todos nós.
- Ah, então eu não quero passar por metamorfose não. Quero ficar aqui com você para sempre.
- Mas um dia você também vai querer sair de casa.
- Não vou não, mãe. Não vou conseguir largar tudo isso aqui. Você, o Pedro, meu quarto, meus brinquedos.
- Pois é, seu quarto é o seu casulo. Um dia você também vai sair de dentro dele, vai bater suas asas e ir embora daqui.
- Não vou não.
- Vai sim, é a natureza.
- Mas eu vou ficar triste.
- Eu também, mas é a natureza chamando, meu filho. Não tem como dizer não para um chamado da natureza.
- Tirando o Paquito, já não gosto mais da natureza.
- Mas o Paquito também saiu um dia da casa dele e nunca mais voltou.
- Cachorro desnaturado. Pode deixar, mãe, isso não vai acontecer comigo.
E naquele dia Guto dormiu fora de seu casulo, com medo de ser expulso pela natureza.
- Mãe, verdade que essa borboleta já foi uma larva?
- Verdade, filho, uma larva bem feia.
- Mas como ela conseguiu ficar assim tão bonita? Fez plástica?
- Não, amor, borboletas não fazem plásticas. É a natureza mesmo, um processo chamado metamorfose.
- Meta o quê?
- Metamorfose. A larva entra numa espécie de casinha chamada casulo - que ela mesma faz - e de lá sai transformada, com asas, toda lindinha como essa aí.
- Ah, tipo a cabine do super-homem?
- Mais ou menos, filho. O super-homem só troca de roupa, a borboleta se transforma completamente.
- Então o homem não consegue ganhar asas?
- Nem com Red Bull.
- Hã?
- Nada, esquece. Infelizmente não, Gutinho. Por isso inventamos o avião, a asa delta.
- Então o homem não passa por essa tal metamorfose?
- Passa sim. Mas a metamorfose no homem só muda ele por dentro.
- Hã? As asas do homem nascem por dentro?
- De alguma forma sim, um dia você vai entender.
- Mas eu quero entender agora, mãe. Por favor, me explica.
- A metamorfose no homem acontece de várias formas. Por exemplo, o seu irmão Pedro está ficando com a voz grossa. Ele está passando por uma metamorfose chamada adolescência.
- Mas eu quero saber das asas, mamãe, não da voz.
- Quando o homem ganha asas, meu amor, é só um modo de dizer. Sua irmã Paula foi morar em outra casa, se formou e depois casou. Então ela ganhou asas, ganhou vida própria.
- Sei, então isso é metamorfose?
- Sim, uma mudança grande na vida da gente.
- Então o que aconteceu com o papai também foi metamorfose.
- Pois é. Seu pai encontrou outra mulher e preferiu sair de casa. Foi uma metamorfose pra ele, pra todos nós.
- Ah, então eu não quero passar por metamorfose não. Quero ficar aqui com você para sempre.
- Mas um dia você também vai querer sair de casa.
- Não vou não, mãe. Não vou conseguir largar tudo isso aqui. Você, o Pedro, meu quarto, meus brinquedos.
- Pois é, seu quarto é o seu casulo. Um dia você também vai sair de dentro dele, vai bater suas asas e ir embora daqui.
- Não vou não.
- Vai sim, é a natureza.
- Mas eu vou ficar triste.
- Eu também, mas é a natureza chamando, meu filho. Não tem como dizer não para um chamado da natureza.
- Tirando o Paquito, já não gosto mais da natureza.
- Mas o Paquito também saiu um dia da casa dele e nunca mais voltou.
- Cachorro desnaturado. Pode deixar, mãe, isso não vai acontecer comigo.
E naquele dia Guto dormiu fora de seu casulo, com medo de ser expulso pela natureza.
quinta-feira, 4 de dezembro de 2014
Carpe diem
Diálogo entre duas drosófilas recém-nascidas:
- E aí, quais são os seus planos de vida?
- Planos? Mas eu acabei de nascer, ainda não tive tempo...
- Quanto mais cedo você se planejar, melhor.
- Melhor para quê?
- Para você se realizar, cumprir sua missão.
- Missão? Mas que missão?
- Ué? Ter uma profissão, casar, ser feliz, o que você sonhar.
- Mas pôxa, ainda nem me desgarrei dessa casca de banana...
- Só que a vida é curta. Com 24 horas de idade você vai virar um adolescente. Depois, lá pelas 48 horas vai encontrar uma profissão. Com 72, se enroscar em alguém e se acasalar. Com 96, virar avó. E assim por diante até bater as asas, digo, as botas.
- Isso se antes não virar jantar de lagartixa.
- Claro, mas estou falando da expectativa de vida média de nós drosófilas, que gira em torno de 7 a 8 dias, segundo o último IBGE.
- Nossa, como a vida é curta. Acho que vou me lambuzar nesse lixo enquanto posso.
- Como assim? Não há tempo a perder. Há muito o que fazer antes do adeus.
- Mas por mais que a gente faça, somos apenas drosófilas. A mosca do cocô do cavalo do bandido.
- E aí, vai ficar com papo existencial agora?
- Você é que está me cobrando um "sentido" para a vida. Eu só quero chafurdar aqui, nada mais.
- Mas amiga, isso é muito pouco. Há um mundo todo lá fora a explorar.
- Um mundo todo lá fora? Mesmo que você saia voando com turbinas no máximo, qual a distância que vai alcançar com 7, 8 dias? No máximo sair do bairro.
- O que proporcionalmente falando é um universo, não?
- Não estamos falando de Paris, né amiga? Esqueceu que nascemos no subúrbio de São Paulo?
- Olha, eu não vou gastar mais nenhum minuto discutindo com você. Faça o que bem entender com os seus 7...quer dizer, 6 dias 23 horas e 45 minutos de vida. Passar bem.
Nisso a mosquinha sai voando à toda rumo ao grandioso mundo de possibilidades que a espera janela afora.
Tão eufórica que não percebe a presença de uma vidraça que acabou de ser lustrada pela faxineira e se espatifa contra ela, dando fim à sua vida nas flor dos seus 14 minutos e 37 segundos de idade.
A outra drosófila assiste estupefata ao desfecho irônico daquele debate entre opiniões antagônicas sobre a vida.
E ao ver o saco de lixo se fechar acima pelas mãos da faxineira, presencia a sua própria condenação ao cárcere perpétuo, relegada ao escuro, ao calor e à asfixia, dentro do saco preto tão temido pelos homens.
Mas, conformada, apenas dá de ombros e volta a se esbaldar no néctar de um cacho de uvas apodrecidas.
Se o mundo não se importa com mosquinhas, pensou ela, não sou eu quem vai fazer isso.
- E aí, quais são os seus planos de vida?
- Planos? Mas eu acabei de nascer, ainda não tive tempo...
- Quanto mais cedo você se planejar, melhor.
- Melhor para quê?
- Para você se realizar, cumprir sua missão.
- Missão? Mas que missão?
- Ué? Ter uma profissão, casar, ser feliz, o que você sonhar.
- Mas pôxa, ainda nem me desgarrei dessa casca de banana...
- Só que a vida é curta. Com 24 horas de idade você vai virar um adolescente. Depois, lá pelas 48 horas vai encontrar uma profissão. Com 72, se enroscar em alguém e se acasalar. Com 96, virar avó. E assim por diante até bater as asas, digo, as botas.
- Isso se antes não virar jantar de lagartixa.
- Claro, mas estou falando da expectativa de vida média de nós drosófilas, que gira em torno de 7 a 8 dias, segundo o último IBGE.
- Nossa, como a vida é curta. Acho que vou me lambuzar nesse lixo enquanto posso.
- Como assim? Não há tempo a perder. Há muito o que fazer antes do adeus.
- Mas por mais que a gente faça, somos apenas drosófilas. A mosca do cocô do cavalo do bandido.
- E aí, vai ficar com papo existencial agora?
- Você é que está me cobrando um "sentido" para a vida. Eu só quero chafurdar aqui, nada mais.
- Mas amiga, isso é muito pouco. Há um mundo todo lá fora a explorar.
- Um mundo todo lá fora? Mesmo que você saia voando com turbinas no máximo, qual a distância que vai alcançar com 7, 8 dias? No máximo sair do bairro.
- O que proporcionalmente falando é um universo, não?
- Não estamos falando de Paris, né amiga? Esqueceu que nascemos no subúrbio de São Paulo?
- Olha, eu não vou gastar mais nenhum minuto discutindo com você. Faça o que bem entender com os seus 7...quer dizer, 6 dias 23 horas e 45 minutos de vida. Passar bem.
Nisso a mosquinha sai voando à toda rumo ao grandioso mundo de possibilidades que a espera janela afora.
Tão eufórica que não percebe a presença de uma vidraça que acabou de ser lustrada pela faxineira e se espatifa contra ela, dando fim à sua vida nas flor dos seus 14 minutos e 37 segundos de idade.
A outra drosófila assiste estupefata ao desfecho irônico daquele debate entre opiniões antagônicas sobre a vida.
E ao ver o saco de lixo se fechar acima pelas mãos da faxineira, presencia a sua própria condenação ao cárcere perpétuo, relegada ao escuro, ao calor e à asfixia, dentro do saco preto tão temido pelos homens.
Mas, conformada, apenas dá de ombros e volta a se esbaldar no néctar de um cacho de uvas apodrecidas.
Se o mundo não se importa com mosquinhas, pensou ela, não sou eu quem vai fazer isso.
quarta-feira, 3 de dezembro de 2014
Perdeu-se a magia, tratar com você mesmo.
Quando o homem vivia em clãs a magia era tão necessária e presente em sua vida quanto o Bolsa Família.
Nada causava estranheza aos olhos de um ser humano mais conectado com a natureza e nada tecnocrata.
Mas daí veio a ciência para condenar tudo que não fosse empírico, a cercear nosso instinto.
Paramos de pensar com todos os nossos sentidos.
Passamos a reverenciar o cérebro e colocamos cientistas e empresários como Einstein e Steve Jobs não apenas no rol dos gênios, mas também no panteão dos ídolos.
Ok, explicar a matéria e fazer telas comandadas pelo toque humano também são mágicos, mas o fato de vir com manual do usuário já tira toda a graça.
A magia que anda escassa é a da crença.
A crença ingênua, a do artista, dos apaixonados, do homem que vive numa eterna transmutação entre adulto e criança.
Entre o jovem que acreditava num mundo de possibilidades infinitas e o adulto que só enxerga o preto no branco, ficou um abismo de possibilidades perdidas.
Podemos fazer a descida de volta para resgatá-las? Claro que sim.
Como também preparar o terreno para que coisas novas brotem.
O problema é a falta de tempo e espaço.
A necessidade de sobrevivência mingua nossas oportunidades de explorar o auto-conhecimento.
Os que ganham mais do que para comer, se auto-congratulam com o consumo de luxo, justificando as horas extras, as noites mal dormidas, o stress que debilita a saúde.
Nada contra uma bela moradia, bons carros e viagens exóticas.
Só que as horas do seu traseiro colado na cadeira do escritório são as mesmas do convívio com a natureza, a arte, pessoas diferentes, enfim, do livre vagar por aí sendo apenas você.
Por isso há que se pensar se a compensação do capitalismo não anda por demais descompensada.
Estamos nos contentando com pouco.
Ha algo errado quando o post da praia paradisíaca é mais importante que sentir a areia nos pés.
Nada causava estranheza aos olhos de um ser humano mais conectado com a natureza e nada tecnocrata.
Mas daí veio a ciência para condenar tudo que não fosse empírico, a cercear nosso instinto.
Paramos de pensar com todos os nossos sentidos.
Passamos a reverenciar o cérebro e colocamos cientistas e empresários como Einstein e Steve Jobs não apenas no rol dos gênios, mas também no panteão dos ídolos.
Ok, explicar a matéria e fazer telas comandadas pelo toque humano também são mágicos, mas o fato de vir com manual do usuário já tira toda a graça.
A magia que anda escassa é a da crença.
A crença ingênua, a do artista, dos apaixonados, do homem que vive numa eterna transmutação entre adulto e criança.
Entre o jovem que acreditava num mundo de possibilidades infinitas e o adulto que só enxerga o preto no branco, ficou um abismo de possibilidades perdidas.
Podemos fazer a descida de volta para resgatá-las? Claro que sim.
Como também preparar o terreno para que coisas novas brotem.
O problema é a falta de tempo e espaço.
A necessidade de sobrevivência mingua nossas oportunidades de explorar o auto-conhecimento.
Os que ganham mais do que para comer, se auto-congratulam com o consumo de luxo, justificando as horas extras, as noites mal dormidas, o stress que debilita a saúde.
Nada contra uma bela moradia, bons carros e viagens exóticas.
Só que as horas do seu traseiro colado na cadeira do escritório são as mesmas do convívio com a natureza, a arte, pessoas diferentes, enfim, do livre vagar por aí sendo apenas você.
Por isso há que se pensar se a compensação do capitalismo não anda por demais descompensada.
Estamos nos contentando com pouco.
Ha algo errado quando o post da praia paradisíaca é mais importante que sentir a areia nos pés.
terça-feira, 2 de dezembro de 2014
Você anda vendo muito filme americano
Você já deve ter ouvido essa frase de alguém, quando por exemplo, levantou uma hipótese com mais cheiro de fantasia do que da nossa pacata rotina.
É que os americanos, pela própria insistência em alimentar o tal sonho yankee, são mestres em florear, dramatizar, enlevar, espetacularizar o seu próprio dia-a-dia, transformando tudo que é vivido por lá num grande espetáculo.
Os filmes, embora de uma maneira exagerada, acabam refletindo esse sentimento de que nada na vida é tão banal que não possa virar um musical da broadway.
Lógico que vender o mito americano é parte fundamental da tarefa de manter sua hegemonia econômica e cultural sobre o mundo.
Um mundo que é ávido por consumir tudo que o show bizz deles é capaz de vender, afinal somos uma platéia assídua do espetáculo incessante chamado Estados Unidos.
Isso não é uma crítica direta ao regime econômico ou sistema de governo.
Antes disso, critico a idolatria cega que o resto do mundo devota ao Tio Sam.
O que o americano médio apresenta como ideal de life style está longe de ser um mode de vida equilibrado e feliz.
Fosse assim não veríamos os desajustes sociais que povoam os telejornais e suas obras de ficção.
Some-se a isso um constante sentimento de insegurança, alimentado pela indústria armamentista, e você terá uma sociedade doente, obcecada pela próxima catástrofe por vir.
Mas a impressão que dá é que o povo vive conformado com o status quo.
Parece que há uma aceitação velada de que esse é o preço a ser pago pela mais invejada e temida nação do mundo.
Uma nação formada por self-made men truculentos, partidários da eficiência, de gente que não titubeia para sacar uma arma na legítima defesa de si mesma.
Seu espírito vencedor nato é a mola mestra de uma sociedade materialmente bem-sucedida.
Mas não dá para deixar de apontar a empáfia americana de olhar somente para o próprio umbigo, não dando bola nem para sua mãe Inglaterra.
Os maiores defensores dos Estados Unidos rasgam elogios a um país "onde tudo funciona", mesmo que essa eficiência inclua as atrocidades que eles fazem em seus quintais espalhados pelo globo.
Mas "funcionar" é qualidade de engrenagem, de máquina.
Não da alma e do coração de um povo.
É que os americanos, pela própria insistência em alimentar o tal sonho yankee, são mestres em florear, dramatizar, enlevar, espetacularizar o seu próprio dia-a-dia, transformando tudo que é vivido por lá num grande espetáculo.
Os filmes, embora de uma maneira exagerada, acabam refletindo esse sentimento de que nada na vida é tão banal que não possa virar um musical da broadway.
Lógico que vender o mito americano é parte fundamental da tarefa de manter sua hegemonia econômica e cultural sobre o mundo.
Um mundo que é ávido por consumir tudo que o show bizz deles é capaz de vender, afinal somos uma platéia assídua do espetáculo incessante chamado Estados Unidos.
Isso não é uma crítica direta ao regime econômico ou sistema de governo.
Antes disso, critico a idolatria cega que o resto do mundo devota ao Tio Sam.
O que o americano médio apresenta como ideal de life style está longe de ser um mode de vida equilibrado e feliz.
Fosse assim não veríamos os desajustes sociais que povoam os telejornais e suas obras de ficção.
Some-se a isso um constante sentimento de insegurança, alimentado pela indústria armamentista, e você terá uma sociedade doente, obcecada pela próxima catástrofe por vir.
Mas a impressão que dá é que o povo vive conformado com o status quo.
Parece que há uma aceitação velada de que esse é o preço a ser pago pela mais invejada e temida nação do mundo.
Uma nação formada por self-made men truculentos, partidários da eficiência, de gente que não titubeia para sacar uma arma na legítima defesa de si mesma.
Seu espírito vencedor nato é a mola mestra de uma sociedade materialmente bem-sucedida.
Mas não dá para deixar de apontar a empáfia americana de olhar somente para o próprio umbigo, não dando bola nem para sua mãe Inglaterra.
Os maiores defensores dos Estados Unidos rasgam elogios a um país "onde tudo funciona", mesmo que essa eficiência inclua as atrocidades que eles fazem em seus quintais espalhados pelo globo.
Mas "funcionar" é qualidade de engrenagem, de máquina.
Não da alma e do coração de um povo.
sexta-feira, 28 de novembro de 2014
You should try
Crença, tudo é uma questão de ter ou não ter.
A vida individual, racionalmente falando, é insignificante.
Se outro cometa colidir com o planeta e a humanidade for exterminada, o planeta seguirá o seu curso com ratos, baratas ou amebas.
E de nada terá valido tanta fortuna, pose e soberba do ser humano.
Mas isso é impossibilidade remota para nós que aprendemos a olhar para a vida como ao próprio umbigo ou no máximo ao umbigo dos que nos cercam.
Queremos e precisamos acreditar que a vida tem um sentido e, mais que isso, que temos um papel de protagonista nesse script.
Partindo dessa perspectiva, aprendemos a planejar os anos futuros dentro das nossas metas pessoais e profissionais, e medindo nossa capacidade de viver conforme nosso sucesso nessas empreitadas.
Assim, em linhas gerais as pessoas felizes seriam as que atingiram esse sucesso.
Deus e os psicanalistas sabem que não é bem assim.
Felicidade é algo que não se pode medir pelas aparências, pelos sinais de sucesso material e conformidade com o modelo enaltecido pela sociedade de consumo.
A não ser que você se refira a pequenos sinais emitidos por quem está de bem com a vida.
Aí sim estaremos captando os sintomas de saúde e do contentamento, os verdadeiros sintomas do que podemos chamar de felicidade.
O maior problema é atrelar felicidade ao sucesso, ou seja, como o prêmio pelo resultado alcançado, algo projetado num futuro que nunca chega.
Porque fazemos isso, existe sempre a expectativa por uma performance ainda melhor, que no final vai nos servir de bandeja essa tal felicidade.
É a maneira como o consumismo nos ensinou a pensar, pois essa promessa é que move a roda da relação trabalho x ganho x consumo que sustenta nosso modo de viver.
Mas como diriam as frases feitas, viver a jornada contribui mais para o nosso contentamento do que o destino final.
Basta indagar quem seria o piloto de F1 mais feliz: o campeão ou o que corre por prazer e não necessariamente vence?
Nesse caso os dois traços podem estar reunidos na mesma pessoa, mas como o mundo é 99,9% constituídos por não campeões, não detentores de recorde, então a perspectiva de achar sempre o sentido de vitória no simples fazer é mais alentador.
Aqueles que tentam mais e, na maioria das vezes apenas falham, deveriam ser mais valorizados.
Talvez uma boa receita para ser feliz seja tentar mais e diferentes coisas.
Just try.
A vida individual, racionalmente falando, é insignificante.
Se outro cometa colidir com o planeta e a humanidade for exterminada, o planeta seguirá o seu curso com ratos, baratas ou amebas.
E de nada terá valido tanta fortuna, pose e soberba do ser humano.
Mas isso é impossibilidade remota para nós que aprendemos a olhar para a vida como ao próprio umbigo ou no máximo ao umbigo dos que nos cercam.
Queremos e precisamos acreditar que a vida tem um sentido e, mais que isso, que temos um papel de protagonista nesse script.
Partindo dessa perspectiva, aprendemos a planejar os anos futuros dentro das nossas metas pessoais e profissionais, e medindo nossa capacidade de viver conforme nosso sucesso nessas empreitadas.
Assim, em linhas gerais as pessoas felizes seriam as que atingiram esse sucesso.
Deus e os psicanalistas sabem que não é bem assim.
Felicidade é algo que não se pode medir pelas aparências, pelos sinais de sucesso material e conformidade com o modelo enaltecido pela sociedade de consumo.
A não ser que você se refira a pequenos sinais emitidos por quem está de bem com a vida.
Aí sim estaremos captando os sintomas de saúde e do contentamento, os verdadeiros sintomas do que podemos chamar de felicidade.
O maior problema é atrelar felicidade ao sucesso, ou seja, como o prêmio pelo resultado alcançado, algo projetado num futuro que nunca chega.
Porque fazemos isso, existe sempre a expectativa por uma performance ainda melhor, que no final vai nos servir de bandeja essa tal felicidade.
É a maneira como o consumismo nos ensinou a pensar, pois essa promessa é que move a roda da relação trabalho x ganho x consumo que sustenta nosso modo de viver.
Mas como diriam as frases feitas, viver a jornada contribui mais para o nosso contentamento do que o destino final.
Basta indagar quem seria o piloto de F1 mais feliz: o campeão ou o que corre por prazer e não necessariamente vence?
Nesse caso os dois traços podem estar reunidos na mesma pessoa, mas como o mundo é 99,9% constituídos por não campeões, não detentores de recorde, então a perspectiva de achar sempre o sentido de vitória no simples fazer é mais alentador.
Aqueles que tentam mais e, na maioria das vezes apenas falham, deveriam ser mais valorizados.
Talvez uma boa receita para ser feliz seja tentar mais e diferentes coisas.
Just try.
segunda-feira, 10 de novembro de 2014
Todo livro é de auto-ajuda
É uma frase da escritora Martha Medeiros, e que corroboro aqui.
Talvez para rebater um enquadramento equivocado dos seus livros a essa categoria, Martha quis dizer que a leitura de qualquer livro sempre ajuda. E é verdade.
Primeiro porque qualquer leitura já é benéfica ao aprendizado da auto-expressão, oral e escrita, tão importante em tempos onde o marketing pessoal ultrapassa o conhecimento técnico.
Afinal, hoje o mundo é dos que gritam mais alto.
Também porque os livros, principalmente os clássicos, falam de relações humanas que atravessam as gerações e encontram eco nas cabecinhas perdidas de hoje, de qualquer idade. É bom saber que os nobres da idade média, com uma vida envolta em luxo e prazeres, também tinham problemas como os nossos.
Por isso os livros funcionam como conselheiros para aqueles momentos de reflexão onde o interlocutor mais útil é você mesmo.
Onde o amigo do peito que você procura pra bater um papo é mesmo o seu coração.
Às vezes eles são chatos e devem ser abandonados - não importa quanto você tenha investido em reais, o investimento de tempo em um livro chato sai bem mais caro para a sua vida.
Às vezes eles demoram a engrenar, mas lá pela página 100 dá pra saber.
Às vezes eles são longos, mas extremamente compensadores.
E em raras vezes, você vai se deparar com um livro que te toca, talvez por abordar um tema que é caro a você ou te pegar em um momento frágil da vida, e ele irá ficar para sempre no cânone eterno da sua mesinha de cabeceira.
Não à toa o livro fica ali exposto na prateleira, como um objeto de decoração.
São como troféus para quem encarou uma epopéia de 300, 500, 1000 páginas.
Para quem ama a leitura, é sempre bom passar a mão na lombada e recordar que você já folheou aquelas páginas e contribuiu para o processo de amarelecimento a que todo livro está condenado.
Já disseram que um país é feito de homens e livros e eu assino embaixo.
Um país pode até feito de estradas, ferrovias, hidrelétricos.
Mas a sociedade com certeza é construída com pilhas de livros, que são o alicerce de seus homens.
Talvez para rebater um enquadramento equivocado dos seus livros a essa categoria, Martha quis dizer que a leitura de qualquer livro sempre ajuda. E é verdade.
Primeiro porque qualquer leitura já é benéfica ao aprendizado da auto-expressão, oral e escrita, tão importante em tempos onde o marketing pessoal ultrapassa o conhecimento técnico.
Afinal, hoje o mundo é dos que gritam mais alto.
Também porque os livros, principalmente os clássicos, falam de relações humanas que atravessam as gerações e encontram eco nas cabecinhas perdidas de hoje, de qualquer idade. É bom saber que os nobres da idade média, com uma vida envolta em luxo e prazeres, também tinham problemas como os nossos.
Por isso os livros funcionam como conselheiros para aqueles momentos de reflexão onde o interlocutor mais útil é você mesmo.
Onde o amigo do peito que você procura pra bater um papo é mesmo o seu coração.
Às vezes eles são chatos e devem ser abandonados - não importa quanto você tenha investido em reais, o investimento de tempo em um livro chato sai bem mais caro para a sua vida.
Às vezes eles demoram a engrenar, mas lá pela página 100 dá pra saber.
Às vezes eles são longos, mas extremamente compensadores.
E em raras vezes, você vai se deparar com um livro que te toca, talvez por abordar um tema que é caro a você ou te pegar em um momento frágil da vida, e ele irá ficar para sempre no cânone eterno da sua mesinha de cabeceira.
Não à toa o livro fica ali exposto na prateleira, como um objeto de decoração.
São como troféus para quem encarou uma epopéia de 300, 500, 1000 páginas.
Para quem ama a leitura, é sempre bom passar a mão na lombada e recordar que você já folheou aquelas páginas e contribuiu para o processo de amarelecimento a que todo livro está condenado.
Já disseram que um país é feito de homens e livros e eu assino embaixo.
Um país pode até feito de estradas, ferrovias, hidrelétricos.
Mas a sociedade com certeza é construída com pilhas de livros, que são o alicerce de seus homens.
domingo, 9 de novembro de 2014
Poetas são maus agricultores
Eu tive um avô que era poeta e também agricultor.
O primeiro por ofício, porque ele se alimentava dos sonhos, e o segundo por necessidade, porque palavras enchem a boca, mas não a barriga.
E quando se divide a vida assim, entre sonho e realidade, as duas partes saem um pouco prejudicadas.
Todos nascemos com talento para algo, às vezes mais de um, que desenvolvemos durante a vida ou permanecem ocultos sem verem a luz do dia.
Nem sempre são aptidões que ocupam esferas diametralmente opostas como, por exemplo, talento para jogar basquete e escrever poesias.
Pois seria assim, como diria Deus, dar asas à cobra.
Mas exceções, como uma miss graduada em Harvard, existem por aí.
Eu nunca soube do meu avô ter talento para a agricultura.
Talvez tenham colocado ele no mesmo balaio de todo imigrante que, sem poder cultivar seu verdadeiro talento, acabou cultivando a terra mesmo.
Mas soube que meu avô costumava parar a enxada para irrigar sua mente e fazer brotar versos em caderninhos que ele carregava no bolso, à espera dessas semeaduras de palavras.
Os campos de cultivo por aqui eram terreno fértil para ele que era um expert em haicais japoneses, que tradicionalmente se inspira e têm como tema a natureza.
Às vezes fico imaginando como eram esses momentos de inspiração in loco, quando o vento batendo nos cafezais ou sol se pondo no horizonte eram transpostos para o papel em canetadas de caracteres japoneses mágicos.
Provavelmente eram dias em que a produtividade do dia não importava tanto quanto a colheita de um lapso de vida que iria se eternizar em seu manuscrito e decerto, em sua memória.
O primeiro por ofício, porque ele se alimentava dos sonhos, e o segundo por necessidade, porque palavras enchem a boca, mas não a barriga.
E quando se divide a vida assim, entre sonho e realidade, as duas partes saem um pouco prejudicadas.
Todos nascemos com talento para algo, às vezes mais de um, que desenvolvemos durante a vida ou permanecem ocultos sem verem a luz do dia.
Nem sempre são aptidões que ocupam esferas diametralmente opostas como, por exemplo, talento para jogar basquete e escrever poesias.
Pois seria assim, como diria Deus, dar asas à cobra.
Mas exceções, como uma miss graduada em Harvard, existem por aí.
Eu nunca soube do meu avô ter talento para a agricultura.
Talvez tenham colocado ele no mesmo balaio de todo imigrante que, sem poder cultivar seu verdadeiro talento, acabou cultivando a terra mesmo.
Mas soube que meu avô costumava parar a enxada para irrigar sua mente e fazer brotar versos em caderninhos que ele carregava no bolso, à espera dessas semeaduras de palavras.
Os campos de cultivo por aqui eram terreno fértil para ele que era um expert em haicais japoneses, que tradicionalmente se inspira e têm como tema a natureza.
Às vezes fico imaginando como eram esses momentos de inspiração in loco, quando o vento batendo nos cafezais ou sol se pondo no horizonte eram transpostos para o papel em canetadas de caracteres japoneses mágicos.
Provavelmente eram dias em que a produtividade do dia não importava tanto quanto a colheita de um lapso de vida que iria se eternizar em seu manuscrito e decerto, em sua memória.
sexta-feira, 7 de novembro de 2014
A UTI sentimental
Minha irmã me perguntou se já era hora de meu único sobrinho, João Pedro, começar a aprender o inglês.
Dizem que até os 6 a criança aprende sem sotaque, e meu sobrinho já conta com 8 anos completos, portanto está até "atrasado" pra começar a encostar a lingua no céu da boca para treinar o "th".
Eu disse que sim, que já podia dar sua largada na formação do pequeno cidadão global, mas que não esquecesse de reservar bastante tempo para a parte mais importante da infância: o brincar.
Nem é preciso dizer o quanto brincar foi importante para mim.
Brincar me aproximou de meus vizinhos, de colegas de escola, dos meus primos, e o mais importante, me aproximou de mim.
Mantenho vivo na memória que meu dia era dividido entre escola pela manhã e o brincar à tarde, entremeado por uma parada providencial para abastecer o tanque, que ia me garantir horas lúdicas ininterruptas até o toque de recolher de mamãe.
As brincadeiras não contavam com tantos recursos tecnológicos como hoje, dependiam muito mais da imaginação.
Por isso o resultado era mais mágico do que qualquer programador de PlayStation poderia alcançar.
Era brincar de feira com mato arrancado do quintal e preso em maços com tirinhas de erva.
Construir pistas na terra para rolar bolas de lama rampa abaixo, testando sua resistência.
Jogar queimada, mãe da rua, passa anel, morto-vivo, esconde-esconde.
Colecionar chaveiros, figurinhas, flâmulas.
Estourar bombinhas de São João, às vezes com mais medo do que a própria pessoa que tomava o susto.
Explorar terrenos e depósitos nas redondezas como se fossem territórios proibidos, assim como pescar guarus num corrego de esgoto próximo, com que mães de hoje ficariam horrorizadas.
Xeretar os arredores do circo que se instalava às vezes no campo de futebol de terra batida ao lado de casa.
E infinitas outras brincadeiras, incluindo umas 4 ou 5 horas diárias de uma boa pelada dividida com os craques mirins de toda a redondeza.
Tenho certeza de que se sou um curioso até hoje, é graças à oportunidade de navegar pela minha infância como o capitão Nemo das minhas próprias pernas.
E sou muito grato por isso.
A infância é um tesouro que esquecemos em algum escaninho perdido, mas a que sempre podemos recorrer para enriquecer um dia ruim.
A vida pode ser dura, difícil, por vezes cruel, mas quem teve infância consegue entender que ela não passe de uma ilusão.
E com algum esforço, transmutar essa ilusão em algo bom, lúdico, prazentoso.
Quando tudo parecer sem sentido, não se esqueça que o antídoto, a infância, está logo ali numa prateleira esquecida do coração.
Dizem que até os 6 a criança aprende sem sotaque, e meu sobrinho já conta com 8 anos completos, portanto está até "atrasado" pra começar a encostar a lingua no céu da boca para treinar o "th".
Eu disse que sim, que já podia dar sua largada na formação do pequeno cidadão global, mas que não esquecesse de reservar bastante tempo para a parte mais importante da infância: o brincar.
Nem é preciso dizer o quanto brincar foi importante para mim.
Brincar me aproximou de meus vizinhos, de colegas de escola, dos meus primos, e o mais importante, me aproximou de mim.
Mantenho vivo na memória que meu dia era dividido entre escola pela manhã e o brincar à tarde, entremeado por uma parada providencial para abastecer o tanque, que ia me garantir horas lúdicas ininterruptas até o toque de recolher de mamãe.
As brincadeiras não contavam com tantos recursos tecnológicos como hoje, dependiam muito mais da imaginação.
Por isso o resultado era mais mágico do que qualquer programador de PlayStation poderia alcançar.
Era brincar de feira com mato arrancado do quintal e preso em maços com tirinhas de erva.
Construir pistas na terra para rolar bolas de lama rampa abaixo, testando sua resistência.
Jogar queimada, mãe da rua, passa anel, morto-vivo, esconde-esconde.
Colecionar chaveiros, figurinhas, flâmulas.
Estourar bombinhas de São João, às vezes com mais medo do que a própria pessoa que tomava o susto.
Explorar terrenos e depósitos nas redondezas como se fossem territórios proibidos, assim como pescar guarus num corrego de esgoto próximo, com que mães de hoje ficariam horrorizadas.
Xeretar os arredores do circo que se instalava às vezes no campo de futebol de terra batida ao lado de casa.
E infinitas outras brincadeiras, incluindo umas 4 ou 5 horas diárias de uma boa pelada dividida com os craques mirins de toda a redondeza.
Tenho certeza de que se sou um curioso até hoje, é graças à oportunidade de navegar pela minha infância como o capitão Nemo das minhas próprias pernas.
E sou muito grato por isso.
A infância é um tesouro que esquecemos em algum escaninho perdido, mas a que sempre podemos recorrer para enriquecer um dia ruim.
A vida pode ser dura, difícil, por vezes cruel, mas quem teve infância consegue entender que ela não passe de uma ilusão.
E com algum esforço, transmutar essa ilusão em algo bom, lúdico, prazentoso.
Quando tudo parecer sem sentido, não se esqueça que o antídoto, a infância, está logo ali numa prateleira esquecida do coração.
quarta-feira, 5 de novembro de 2014
O interior
Sou do interior, nos dois sentidos.
No sentido geográfico, sou de Bauru, interior de São Paulo.
Já nos cinco sentidos do ser humano, sou interiorizado pela introspecção.
Viajar para minha cidade natal me é caro tanto quanto percorrer os meandros da minha mente e do meu coração.
Sei que quando decido fazer a viagem ao interior, ainda que curta e não planejada, é sempre uma oportunidade de trazer de volta uma bagagem nova.
Em Bauru reencontro minhas raízes, o calorão abafado de sempre, que deixa os livros e as memórias emboloradas.
A parte nova da cidade brota da antiga, como se a velha fosse o esterco de uma modernidade daninha que se alastra sem pedir licença.
A gente quer preservar a infância das peladas nas ruas, mas há tempos ela foi driblada e humilhada pelas jogadas de playstation.
Ou a beleza das praças de coreto, que resistem às novas camadas de tinta que não fazem distinção entre roupagem nova e preservação.
É que o novo dita o ritmo da evolução - ou será involução - da espécie, aqui em Bauru ou em Nova Iorque.
Por outro lado, uma viagem ao interior de si mesmo pode ser a mais perigosa das epopéias.
É uma viagem sem destino, solitária, onde não se sabe o que vai encontrar: se os campos verdejantes da esperança ou o abismo dos arrependimentos e frustrações - provavelmente, os dois.
Mas ela se faz necessária, principalmente quando percebemos que pegar um avião por uns 20 dias para o mais paradisíaco dos destinos não irá trazer a renovação que você precisa.
A viagem ao interior pode ser longa, demorar estadias sem fim dentro de si mesmo.
E só sabemos que ela chegou ao fim quando, às vezes sem se dar conta, percebemos que desembarcamos em alguma plataforma nova pela primeira vez, embora você esteja voltando à sua velha e própria vida.
A viagem ao interior exige paciência, curiosidade, capacidade de frustração e, acima de tudo, a grande ambição de viver a sua verdade.
No sentido geográfico, sou de Bauru, interior de São Paulo.
Já nos cinco sentidos do ser humano, sou interiorizado pela introspecção.
Viajar para minha cidade natal me é caro tanto quanto percorrer os meandros da minha mente e do meu coração.
Sei que quando decido fazer a viagem ao interior, ainda que curta e não planejada, é sempre uma oportunidade de trazer de volta uma bagagem nova.
Em Bauru reencontro minhas raízes, o calorão abafado de sempre, que deixa os livros e as memórias emboloradas.
A parte nova da cidade brota da antiga, como se a velha fosse o esterco de uma modernidade daninha que se alastra sem pedir licença.
A gente quer preservar a infância das peladas nas ruas, mas há tempos ela foi driblada e humilhada pelas jogadas de playstation.
Ou a beleza das praças de coreto, que resistem às novas camadas de tinta que não fazem distinção entre roupagem nova e preservação.
É que o novo dita o ritmo da evolução - ou será involução - da espécie, aqui em Bauru ou em Nova Iorque.
Por outro lado, uma viagem ao interior de si mesmo pode ser a mais perigosa das epopéias.
É uma viagem sem destino, solitária, onde não se sabe o que vai encontrar: se os campos verdejantes da esperança ou o abismo dos arrependimentos e frustrações - provavelmente, os dois.
Mas ela se faz necessária, principalmente quando percebemos que pegar um avião por uns 20 dias para o mais paradisíaco dos destinos não irá trazer a renovação que você precisa.
A viagem ao interior pode ser longa, demorar estadias sem fim dentro de si mesmo.
E só sabemos que ela chegou ao fim quando, às vezes sem se dar conta, percebemos que desembarcamos em alguma plataforma nova pela primeira vez, embora você esteja voltando à sua velha e própria vida.
A viagem ao interior exige paciência, curiosidade, capacidade de frustração e, acima de tudo, a grande ambição de viver a sua verdade.
terça-feira, 28 de outubro de 2014
O calango expiatório
Eleição a gente já viveu muitas e, apesar de ficarem apregoando a importância da democracia, esta é praticada em termos, porque nos é dada apenas a escolha de uns 2 ou 3 candidatos, se isso.
Essas últimas eleições então, mais pareceram o exercício do preconceito, do clubismo, da intolerância, e bem menos da prática democrática.
Foi um festival de acusação, um tiroteio verbal, que seria fácil imaginar as pessoas chegando às vias de fato não fosse a arena da luta um post de rede social.
De um lado os simpatizantes tucanos, que aos poucos se tornaram verdadeiros militantes da causa maior desse prélio eleitoral, para eles: tirar o PT do poder.
Referendados por uma avalanche de corrupção testemunhada nesses 12 anos de dominio vermelho, somada à pane econômica dos últimos tempos.
Tudo isso criou um clima de avidez por mudanças que datam das fatídicas manifestações do ano passado e que se reavivaram com a ida de Aécio Neves para o segundo turno.
Do outro lado da balança estão os eternos militantes petistas, paladinos da principal plataforma governista, a chamada reforma social.
O choque dessas forças acendeu um acalorado debate de idéias e pontos de vistas, muito superior aos debates dos candidatos na tv, mais preocupados em não meter os pés pelas mãos em público debaixo dos olhos de seus marketeiros.
Ficou nítida a insatisfação da classe média com uma política econômica que privilegia manter o assistencialismo em detrimento do combate à inflação e à eliminação de gargalos como a infra-estrutura deficiente.
Classe média que formava o côro tanto nas ruas como nas arquibancadas, mas que foi em parte anestesiada pelo pão e jogo da Copa.
Pode-se dizer que nessas eleições se evidenciou sim uma luta de classes enrustida, que redundou em preconceito contra pobres, negros, nordestinos.
Isso não só por "culpa" apenas da maioria dos nordestinos e pobres terem votado na mãe eternamente provedora, a Dona Dilma.
Mas também pela simplificação de que, diante de nossas dificuldades em mudar nossas perspectivas de vida, e isso incluindo a própria situação do país, preferimos achar os culpados.
É o famoso bode expiatório, que no caso se traveste de calango, bicho que até pouco tempo atrás fazia parte da cesta básica do sertanejo nordestino.
Essas últimas eleições então, mais pareceram o exercício do preconceito, do clubismo, da intolerância, e bem menos da prática democrática.
Foi um festival de acusação, um tiroteio verbal, que seria fácil imaginar as pessoas chegando às vias de fato não fosse a arena da luta um post de rede social.
De um lado os simpatizantes tucanos, que aos poucos se tornaram verdadeiros militantes da causa maior desse prélio eleitoral, para eles: tirar o PT do poder.
Referendados por uma avalanche de corrupção testemunhada nesses 12 anos de dominio vermelho, somada à pane econômica dos últimos tempos.
Tudo isso criou um clima de avidez por mudanças que datam das fatídicas manifestações do ano passado e que se reavivaram com a ida de Aécio Neves para o segundo turno.
Do outro lado da balança estão os eternos militantes petistas, paladinos da principal plataforma governista, a chamada reforma social.
O choque dessas forças acendeu um acalorado debate de idéias e pontos de vistas, muito superior aos debates dos candidatos na tv, mais preocupados em não meter os pés pelas mãos em público debaixo dos olhos de seus marketeiros.
Ficou nítida a insatisfação da classe média com uma política econômica que privilegia manter o assistencialismo em detrimento do combate à inflação e à eliminação de gargalos como a infra-estrutura deficiente.
Classe média que formava o côro tanto nas ruas como nas arquibancadas, mas que foi em parte anestesiada pelo pão e jogo da Copa.
Pode-se dizer que nessas eleições se evidenciou sim uma luta de classes enrustida, que redundou em preconceito contra pobres, negros, nordestinos.
Isso não só por "culpa" apenas da maioria dos nordestinos e pobres terem votado na mãe eternamente provedora, a Dona Dilma.
Mas também pela simplificação de que, diante de nossas dificuldades em mudar nossas perspectivas de vida, e isso incluindo a própria situação do país, preferimos achar os culpados.
É o famoso bode expiatório, que no caso se traveste de calango, bicho que até pouco tempo atrás fazia parte da cesta básica do sertanejo nordestino.
terça-feira, 21 de outubro de 2014
Diário de bordo de uma viagem sem destino
Uma mínima correção de rota, de fração de grau, pode fazer um navio com destino à Europa chegar na África.
Uma frase surrada diz que quando não se sabe aonde quer chegar, todos os caminhos estão errados.
Mas e quando não importa se vamos chegar à África ou à Europa?
Quando estamos desorientados, e em vários momentos ficamos mesmo, nosso destino acaba sendo um detalhe irrelevante.
Ficar voluntariamente à deriva nos define melhor.
Estarmos cansados em alto mar torna inútil qualquer remada, por isso deixamos os remos submergirem sem receio.
Já não importa que o bote salva-vidas fique dando voltas em torno de si como um prato de microondas a rodar sob o sol escaldante.
Ainda que o sabor dos ventos seja insípido, é o que temos para o momento.
Uma frase surrada diz que quando não se sabe aonde quer chegar, todos os caminhos estão errados.
Mas e quando não importa se vamos chegar à África ou à Europa?
Quando estamos desorientados, e em vários momentos ficamos mesmo, nosso destino acaba sendo um detalhe irrelevante.
Ficar voluntariamente à deriva nos define melhor.
Estarmos cansados em alto mar torna inútil qualquer remada, por isso deixamos os remos submergirem sem receio.
Já não importa que o bote salva-vidas fique dando voltas em torno de si como um prato de microondas a rodar sob o sol escaldante.
Ainda que o sabor dos ventos seja insípido, é o que temos para o momento.
segunda-feira, 20 de outubro de 2014
As coisas como são
Por aqui as pessoas estão no calor de um segundo turno de eleições, imaginando que têm um destino na ponta do dedo.
A Rede Globo cumpre seu papel de chefe de torcida, pendendo para Aécio porque dá respaldo ao candidato que seus anunciantes querem.
O povo, até o mais intelectualizado, se ilude achando que uma escolha ou outra muda alguma coisa profundamente.
Mas sabemos que qualquer um que assuma em janeiro têm mais condições de fazer benfeitorias a si próprio e seu grupo do que contribuir por uma reforma relevante da sociedade.
Porque isso ainda estará nas mãos dos interesses de associações de classe, representadas por lobistas e bancadas preocupadas em manter as regras como estão.
Mais uma eleição em que o choque social será apenas encenado e nada irá mudar.
A Rede Globo cumpre seu papel de chefe de torcida, pendendo para Aécio porque dá respaldo ao candidato que seus anunciantes querem.
O povo, até o mais intelectualizado, se ilude achando que uma escolha ou outra muda alguma coisa profundamente.
Mas sabemos que qualquer um que assuma em janeiro têm mais condições de fazer benfeitorias a si próprio e seu grupo do que contribuir por uma reforma relevante da sociedade.
Porque isso ainda estará nas mãos dos interesses de associações de classe, representadas por lobistas e bancadas preocupadas em manter as regras como estão.
Mais uma eleição em que o choque social será apenas encenado e nada irá mudar.
quinta-feira, 16 de outubro de 2014
A caça às bruxas internas
Você passa 4 anos (sim, porque eleição municipal não conta) onde política é um dos assuntos mais corta-papo de almoço ou qualquer encontro social.
Daí, quando a eleição presidencial chega e afunila, vira uma discussão sem fim, um maniqueísmo sem tamanho, onde muitos mal sabem do que estão falando e o debate se nivela às rodas de futebol, tipo se aquele caso de corrupção foi mão na bola ou bola na mão, etc.
Enquanto os marketeiros se esmeram em esconder as falhas e defeitos de caráter de seus candidatos, por aqui todo mundo se revela em texto e subtexto, o que de fato são e pensam.
Fariam melhor se usassem suas próprias opiniões como espelho para se conhecer melhor e definir um plano de auto-governo para os próximos anos.
Daí, quando a eleição presidencial chega e afunila, vira uma discussão sem fim, um maniqueísmo sem tamanho, onde muitos mal sabem do que estão falando e o debate se nivela às rodas de futebol, tipo se aquele caso de corrupção foi mão na bola ou bola na mão, etc.
Enquanto os marketeiros se esmeram em esconder as falhas e defeitos de caráter de seus candidatos, por aqui todo mundo se revela em texto e subtexto, o que de fato são e pensam.
Fariam melhor se usassem suas próprias opiniões como espelho para se conhecer melhor e definir um plano de auto-governo para os próximos anos.
domingo, 5 de outubro de 2014
A etimologia da zona de conforto
Se você ler "zona" não como região e sim como a gíria que se refere a bagunça, verá que zona de conforto a princípio pode ser lida como uma contradição.
Zona versus conforto, desordem versus ordem, e assim por diante.
Mas também pode ter a interpretação inspirada de "bagunça feita de acomodação".
E se você pensar bem, a acomodação gera, sim, uma bagunça mental.
À medida que não damos a atenção devida à nossa, desculpe a expressão gasta, voz interior, a tendência é adiarmos nossas questões fundamentais.
Profissionais, amorosas, familiares e principalmente, os ideais.
Os ideais, aquilo que todo jovem tem na ponta de língua e dentro do coração, mas que os "adultos" deixam cair e se perder no vão do sofá da acomodação.
Lembra quando você jurou seguir seu coração e só abraçar as causas que falavam direto a ele?
Cadê as viagens sonhadas, a morada na praia, a ONG para ajudar crianças e bichos?
Ao que parece, não passaram de projetos juvenis que foram espremidos como espinhas dos rostos corados e que deixaram marcas que nenhuma plástica consegue esconder.
Na tenra idade os ideais se instalam no seu corpo como sementes com promessa de frutos suculentos.
Mas a rotina aos poucos inibe seu florescimento.
E o ideal acaba como um inseto no âmbar, contendo o DNA precioso que se demorar para voltar à vida, pode voltar como um dinossauro inadaptável à nova atmosfera do futuro.
Mas o corpo não se cansa de avisar.
Com todos os tipos de mensagens possíveis.
Eles ecoam nos meandros que inteligam coração e mente.
E você se entorpece de todas as formas para não ouví-los.
Com álcool, drogas, sexo, videogame, comida.
Mas uma vida sem propósito é uma promissória com juros em progressão geométrica.
E a dívida consigo mesmo é sempre a mais pesada, não importa quantos zeros tenha.
Esquecemos que ela tem uma data de vencimento que é o da própria vida.
Portanto, desligue o celular.
Procure o canto mais quieto da casa, um onde o sinal da conexão consigo mesmo pode ser mais forte que o wifi.
Sente-se e se escute.
Esse exercício, se praticado com a devida disciplina e com um pouco de sorte, pode promover uma faxina interna reveladora.
Remove o carpete solto debaixo do qual você varreu décadas - se você tiver mais de 40 - de lixo mental.
Impossibilidades, impotência, frustrações, mágoas, decepções.
Tudo arrastado para fora para no final trazer à tona o seu verdadeiro chão.
E esse chão não precisará de polimento, pois não possui qualquer revestimento.
É um piso de cimento duro e frio, e ao mesmo tempo reconfortante, porque verdadeiro.
É dali que você vai se reerguer.
Mas não pense em zona de conforto.
Pense que a vida é uma zona mesmo.
E que o conforto vem de se habituar às suas oscilações.
Zona versus conforto, desordem versus ordem, e assim por diante.
Mas também pode ter a interpretação inspirada de "bagunça feita de acomodação".
E se você pensar bem, a acomodação gera, sim, uma bagunça mental.
À medida que não damos a atenção devida à nossa, desculpe a expressão gasta, voz interior, a tendência é adiarmos nossas questões fundamentais.
Profissionais, amorosas, familiares e principalmente, os ideais.
Os ideais, aquilo que todo jovem tem na ponta de língua e dentro do coração, mas que os "adultos" deixam cair e se perder no vão do sofá da acomodação.
Lembra quando você jurou seguir seu coração e só abraçar as causas que falavam direto a ele?
Cadê as viagens sonhadas, a morada na praia, a ONG para ajudar crianças e bichos?
Ao que parece, não passaram de projetos juvenis que foram espremidos como espinhas dos rostos corados e que deixaram marcas que nenhuma plástica consegue esconder.
Na tenra idade os ideais se instalam no seu corpo como sementes com promessa de frutos suculentos.
Mas a rotina aos poucos inibe seu florescimento.
E o ideal acaba como um inseto no âmbar, contendo o DNA precioso que se demorar para voltar à vida, pode voltar como um dinossauro inadaptável à nova atmosfera do futuro.
Mas o corpo não se cansa de avisar.
Com todos os tipos de mensagens possíveis.
Eles ecoam nos meandros que inteligam coração e mente.
E você se entorpece de todas as formas para não ouví-los.
Com álcool, drogas, sexo, videogame, comida.
Mas uma vida sem propósito é uma promissória com juros em progressão geométrica.
E a dívida consigo mesmo é sempre a mais pesada, não importa quantos zeros tenha.
Esquecemos que ela tem uma data de vencimento que é o da própria vida.
Portanto, desligue o celular.
Procure o canto mais quieto da casa, um onde o sinal da conexão consigo mesmo pode ser mais forte que o wifi.
Sente-se e se escute.
Esse exercício, se praticado com a devida disciplina e com um pouco de sorte, pode promover uma faxina interna reveladora.
Remove o carpete solto debaixo do qual você varreu décadas - se você tiver mais de 40 - de lixo mental.
Impossibilidades, impotência, frustrações, mágoas, decepções.
Tudo arrastado para fora para no final trazer à tona o seu verdadeiro chão.
E esse chão não precisará de polimento, pois não possui qualquer revestimento.
É um piso de cimento duro e frio, e ao mesmo tempo reconfortante, porque verdadeiro.
É dali que você vai se reerguer.
Mas não pense em zona de conforto.
Pense que a vida é uma zona mesmo.
E que o conforto vem de se habituar às suas oscilações.
quarta-feira, 1 de outubro de 2014
O eterno amante
Não é que os novos ricos não sejam afeitos à discrição.
Talvez a maioria dos que escalam a montanha social já ao pé dela não eram adeptos do comedimento.
Mas há exceções e Camilo é a prova disso.
Sempre de temperamento discreto, não titubeou em gozar as delícias que o acaso jogou em seu colo.
Literalmente, porque a fortuna lhe proporcionou aquilo que sempre amou durante a vida inteira: mulheres.
Elas vieram de repente aos borbotões, como num ataque de abelhas atraídas pelos doces confortos de que a rotina de Camilo se cercou.
Não, ele não largou sua senhora, aquela que sempre foi seu esteio nos infortúnios e fracassos, a respeitosa Dona Clotilde.
Essa teria um lugar eterno e único em seu coração.
Mas tirando seu apreço por Clotilde, de resto o coração de Camilo tinha apenas sua função de sobrevivência.
Quem mandava mesmo eram as partes baixas, essas as reais governantes de seus instintos.
Por isso Camilo não teve escrúpulos em amealhar o máximo de amantes possível.
E não tinha nenhum constrangimento em aplicar a famosa "carteirada" em ovelhinhas interesseiras.
Mas é claro, tudo feito longe da curiosidade de plantão.
Um de seus truques era evitar a mínima exposição pública.
Nada de motéis nem qualquer lugar do gênero onde pudesse cruzar com algum intrometido.
Para cada amante comprou uma garçoniére particular, não para a moradia da mulher, mas apenas para seus encontros esporádicos.
E o que é mais curioso: em nome da filha, para quem dizia que destinaria as rendas dos aluguéis quando o pai partisse para outro plano espiritual.
Mas como todo truque tem sua falha, um dia esse artifício também conheceu seu primeiro malogro.
Foi na ocasião em que Camilo, já nos seus avançados 90 anos, esqueceu de estender o tapetinho de borracha sob o chuveiro duplo onde se banhava com sua coelhinha da ocasião, a gostosa Bel.
No auge da paixão subaquática, Camilo deu uma fatídica pisada em um sabonete-armadilha e, se agarrando à desprevenida garota, acabou o casal indo à lona antes do segundo hound sob os lençóis.
Camilo permaneceu desacordado até a chegada da ambulância, sob a vigília da amante em estado de choque.
No final, se constatou uma quebra da bacia somada a algumas escoriações, que não tirariam Camilo de cena não fosse a descoberta pela filha de todo o circo amoroso montado por ele.
Afinal, eram nada menos que 25 amantes visitadas com uma frequencia por aquele ancião de dar inveja a muito garanhão no auge da carreira.
Camilo teve o sigilo de seu delito garantido por sua filha, desde que ele providenciasse o despejo imediato daquele harém custoso e indecente.
E hoje ele se contenta apenas com os mimos da enfermeira full time, contratada para dar salvaguarda à saúde precária de um ancião de 95 anos.
Diagnóstico que nunca foi subscrito por doutor nenhum.
Talvez a maioria dos que escalam a montanha social já ao pé dela não eram adeptos do comedimento.
Mas há exceções e Camilo é a prova disso.
Sempre de temperamento discreto, não titubeou em gozar as delícias que o acaso jogou em seu colo.
Literalmente, porque a fortuna lhe proporcionou aquilo que sempre amou durante a vida inteira: mulheres.
Elas vieram de repente aos borbotões, como num ataque de abelhas atraídas pelos doces confortos de que a rotina de Camilo se cercou.
Não, ele não largou sua senhora, aquela que sempre foi seu esteio nos infortúnios e fracassos, a respeitosa Dona Clotilde.
Essa teria um lugar eterno e único em seu coração.
Mas tirando seu apreço por Clotilde, de resto o coração de Camilo tinha apenas sua função de sobrevivência.
Quem mandava mesmo eram as partes baixas, essas as reais governantes de seus instintos.
Por isso Camilo não teve escrúpulos em amealhar o máximo de amantes possível.
E não tinha nenhum constrangimento em aplicar a famosa "carteirada" em ovelhinhas interesseiras.
Mas é claro, tudo feito longe da curiosidade de plantão.
Um de seus truques era evitar a mínima exposição pública.
Nada de motéis nem qualquer lugar do gênero onde pudesse cruzar com algum intrometido.
Para cada amante comprou uma garçoniére particular, não para a moradia da mulher, mas apenas para seus encontros esporádicos.
E o que é mais curioso: em nome da filha, para quem dizia que destinaria as rendas dos aluguéis quando o pai partisse para outro plano espiritual.
Mas como todo truque tem sua falha, um dia esse artifício também conheceu seu primeiro malogro.
Foi na ocasião em que Camilo, já nos seus avançados 90 anos, esqueceu de estender o tapetinho de borracha sob o chuveiro duplo onde se banhava com sua coelhinha da ocasião, a gostosa Bel.
No auge da paixão subaquática, Camilo deu uma fatídica pisada em um sabonete-armadilha e, se agarrando à desprevenida garota, acabou o casal indo à lona antes do segundo hound sob os lençóis.
Camilo permaneceu desacordado até a chegada da ambulância, sob a vigília da amante em estado de choque.
No final, se constatou uma quebra da bacia somada a algumas escoriações, que não tirariam Camilo de cena não fosse a descoberta pela filha de todo o circo amoroso montado por ele.
Afinal, eram nada menos que 25 amantes visitadas com uma frequencia por aquele ancião de dar inveja a muito garanhão no auge da carreira.
Camilo teve o sigilo de seu delito garantido por sua filha, desde que ele providenciasse o despejo imediato daquele harém custoso e indecente.
E hoje ele se contenta apenas com os mimos da enfermeira full time, contratada para dar salvaguarda à saúde precária de um ancião de 95 anos.
Diagnóstico que nunca foi subscrito por doutor nenhum.
segunda-feira, 29 de setembro de 2014
Causa mortis
Eram aproximadamente uma dúzia de senhores em torno de uma mesa redonda, debatendo há dias e não chegando a nenhuma conclusão.
O motivo da discórdia seria banal para quem acompanha a política nacional: a distribuição de cargos.
Só que não se tratava de cargos políticos, nem de qualquer instituição pública ou privada.
Os homens ali ferrenhamente disputavam a mórbida função de testemunhar mortes.
Explico: os presentes não eram propriamente homens de carne e osso, e sim uma espécie de cavaleiros do apocalipse, entidades encarregadas de recolher as almas que acabavam de se despedir da vida mundana.
O que estava em disputa era a atribuição de um tipo de morte para cada entidade, porque também nas exigências curriculares dos céus a especialização era pré-requisito.
Assim, havia entidades para mortes de causas naturais, doenças, acidentes, assassinatos, etc.
E para cada especialidade, haviam subdivisões que geravam toda uma hierarquia de cargos dentro de cada modalidade de morte.
Mas nesse caso a dsputa de atinha ao mais alto cargo, o de CEO.
Os postulantes apresentavam suas credenciais para cada cargo específico e o eterno porteiro e zelador dos céus, São Pedro, mediava as discussões e dava a palavra final.
O debate acontecia mais ou menos assim:
- Sou o mais corajoso e frio, por isso mereço ser a Entidade dos Assassinatos.
- Para presenciar um assassinato também é preciso um grau de morbidez, e isso eu tenho de sobra.
- Bom, eu não entrarei nessa disputa, já que tenho todos os predicados para ser a Entidade dos Acidentes.
- E quais seriam?
- Estar sempre de prontidão, já que acidentes não tem hora nem lugar pra acontecer. E não podem esperar, pois podem obstruir o trânsito, por exemplo.
- A mim, que tenho natureza sossegada e paciente, cabe melhor a vaga das mortes naturais.
- É, algumas podem demorar décadas para acontecer. Que tédio...
- Eu prefiro o das doenças.
- Eu também: se mimam as forças aos pouquinhos ou de forma fulminante, ao menos é carta marcada para morrer. Não farei plantão à toa.
São Pedro intervém na discussão:
- Gente, tem pelos 3 candidatos para cada cargo. E pelo jeito não haverá consenso, pois apesar de estarmos no céu, não vejo como a resignação pode vencer o ego nessa disputa. Sendo assim, vou me advogar o direito de nomear os cargos.
Sob uma enxurrada de protestos, São Pedro procedeu à nomeação das entidades.
Nem sempre o bom senso prevaleceu na escolha, criando conflito entre cargos e aptidões.
Os mais afeitos a mortes trágicos tiveram que se conformar com recolher vítimas das mortes naturais. E vice-versa.
O resultado é que os espíritos inquietos acabavam perdendo a paciência.
E os mais calmos, eram pegos de surpresa por maus súbitos ou acidentes inesperados.
No final as almas ficaram mais expostas a tentações de quem nunca se ausentava no juízo final: ele mesmo, o coisa ruim.
Os agentes do mal, com sua competência de sedução ímpar, convenciam cada vez mais almas a povoar as delícias do subsolo, gerando uma grande crise de gestão entre os admnistradores lá de cima.
Definitivamente aquela gente do bem não tinha se preparado para o livre comércio de almas, com ênfase no melhor atendimento ao cliente.
Em pouco tempo todas as entidades foram demitidas.
E São Pedro deu lugar a um marqueteiro formado na Harvard, cuja missão agora é remodelar e tornar novamente atrativo o combalido reino dos céus.
O motivo da discórdia seria banal para quem acompanha a política nacional: a distribuição de cargos.
Só que não se tratava de cargos políticos, nem de qualquer instituição pública ou privada.
Os homens ali ferrenhamente disputavam a mórbida função de testemunhar mortes.
Explico: os presentes não eram propriamente homens de carne e osso, e sim uma espécie de cavaleiros do apocalipse, entidades encarregadas de recolher as almas que acabavam de se despedir da vida mundana.
O que estava em disputa era a atribuição de um tipo de morte para cada entidade, porque também nas exigências curriculares dos céus a especialização era pré-requisito.
Assim, havia entidades para mortes de causas naturais, doenças, acidentes, assassinatos, etc.
E para cada especialidade, haviam subdivisões que geravam toda uma hierarquia de cargos dentro de cada modalidade de morte.
Mas nesse caso a dsputa de atinha ao mais alto cargo, o de CEO.
Os postulantes apresentavam suas credenciais para cada cargo específico e o eterno porteiro e zelador dos céus, São Pedro, mediava as discussões e dava a palavra final.
O debate acontecia mais ou menos assim:
- Sou o mais corajoso e frio, por isso mereço ser a Entidade dos Assassinatos.
- Para presenciar um assassinato também é preciso um grau de morbidez, e isso eu tenho de sobra.
- Bom, eu não entrarei nessa disputa, já que tenho todos os predicados para ser a Entidade dos Acidentes.
- E quais seriam?
- Estar sempre de prontidão, já que acidentes não tem hora nem lugar pra acontecer. E não podem esperar, pois podem obstruir o trânsito, por exemplo.
- A mim, que tenho natureza sossegada e paciente, cabe melhor a vaga das mortes naturais.
- É, algumas podem demorar décadas para acontecer. Que tédio...
- Eu prefiro o das doenças.
- Eu também: se mimam as forças aos pouquinhos ou de forma fulminante, ao menos é carta marcada para morrer. Não farei plantão à toa.
São Pedro intervém na discussão:
- Gente, tem pelos 3 candidatos para cada cargo. E pelo jeito não haverá consenso, pois apesar de estarmos no céu, não vejo como a resignação pode vencer o ego nessa disputa. Sendo assim, vou me advogar o direito de nomear os cargos.
Sob uma enxurrada de protestos, São Pedro procedeu à nomeação das entidades.
Nem sempre o bom senso prevaleceu na escolha, criando conflito entre cargos e aptidões.
Os mais afeitos a mortes trágicos tiveram que se conformar com recolher vítimas das mortes naturais. E vice-versa.
O resultado é que os espíritos inquietos acabavam perdendo a paciência.
E os mais calmos, eram pegos de surpresa por maus súbitos ou acidentes inesperados.
No final as almas ficaram mais expostas a tentações de quem nunca se ausentava no juízo final: ele mesmo, o coisa ruim.
Os agentes do mal, com sua competência de sedução ímpar, convenciam cada vez mais almas a povoar as delícias do subsolo, gerando uma grande crise de gestão entre os admnistradores lá de cima.
Definitivamente aquela gente do bem não tinha se preparado para o livre comércio de almas, com ênfase no melhor atendimento ao cliente.
Em pouco tempo todas as entidades foram demitidas.
E São Pedro deu lugar a um marqueteiro formado na Harvard, cuja missão agora é remodelar e tornar novamente atrativo o combalido reino dos céus.
quinta-feira, 18 de setembro de 2014
Medinho de planta
"Ah, mas esse menino é a sua cara escrita".
Ele preferia ouvir "sua cara desenhada", já que era Diretor de Arte.
De qualquer forma, perceber que a cada dia seu rebento confirmava em aparência e trejeitos a quem tinha "puxado", enchia Antonio de orgulho.
O pequeno Lionel seria criado na rígida cartilha da família, onde os varões cedo aprendiam a fazer tudo com as próprias mãos.
Não "tarefas de mulher" como cozinhar, cerzir ou decorar, mas coisas de macho como talhar madeira, puxar fiação, até rebocar parede se fosse preciso.
Foi assim desde seu tatara-tataravô e não seria Antonio que amoleceria.
Por isso, foi com um misto de decepção e temor que Antonio soube por sua esposa da primeira fraqueza demonstrada por Lionelzinho: o medo de plantas.
Peralá, eu ouvi direito?
Sim, medo de plantas.
Não de cachorro, rato ou qualquer outro animal doméstico que pudesse, com alguma mordida ou arranhão, constituir uma real ameaça a um bebê.
Era o medo inexplicável de plantas que assombrava aquela pequena alma.
Mais especificamente de um buchinho, espécie das mais "fofinhas" dentro do reino vegetal, inofensiva se comparada a um feroz comigo-ninguém-pode, aterrorizantes plantas carnívoras ou mesmo a uma rosa, com seu caule espinhoso.
Com Lionelzinho no colo, Antonio procedeu a uma série de testes "in loco" para saber se aquilo não era delírio da patroa.
E não teve que chegar muito perto do vaso do buchinho para se confirmar o que temia: o bebê virou seu rosto e se encolheu todo junto ao peito de Antonio, abrindo um comovente berreiro de pânico.
No que o pai quase o acompanhou, pois era grande sua tristeza ao ver solapado o orgulho de uma linhagem inteira de homens, acostumados a enfrentar incólumes toda sorte de revezes e ameaças.
Mas momentos de dor também podem ser de clarividência.
Num átimo, Antonio recolheu a lágrima que ameaçava cair, se aprumou e entendeu seu papel de pai.
Ele não colocaria uma pedra sobre aquele assunto.
Não deixaria o medo do seu filho virar fofoca de familia ou motivo de chacota.
Também não confiaria a um psicólogo a solução - psicologia, meu filho, é para os fracos.
Antonio resolveria a seu modo, que foi o modo do seu pai e do seu avô: com as próprias mãos.
Aproximou-se do vaso do buchinho e, segurando a mão do menino, a fez resvalar na planta seguidamente, demonstrando o quão suave era o contato com a natureza.
A cara de choro que já se afigurava imediatamente se desvaneceu, dando lugar a um sorriso epifânico de que só uma criança em sua inocência é capaz.
Lionel afastou os galhos do buchinho como se descortinasse um pequeno portal dentro do seu mundo de faz de conta.
Onde os demônios se revertem em anjos caídos para preparar o final feliz.
Mas o desfecho não encantou mais ao menino do que ao seu pai.
Antonio percebeu que no final não foi a tradição familiar de "educar à mão" quem triunfara.
Foi a própria natureza quem quebrou o galho do pai.
E de quebra, também esfacelou toda a sua rigidez.
Simples assim.
Ele preferia ouvir "sua cara desenhada", já que era Diretor de Arte.
De qualquer forma, perceber que a cada dia seu rebento confirmava em aparência e trejeitos a quem tinha "puxado", enchia Antonio de orgulho.
O pequeno Lionel seria criado na rígida cartilha da família, onde os varões cedo aprendiam a fazer tudo com as próprias mãos.
Não "tarefas de mulher" como cozinhar, cerzir ou decorar, mas coisas de macho como talhar madeira, puxar fiação, até rebocar parede se fosse preciso.
Foi assim desde seu tatara-tataravô e não seria Antonio que amoleceria.
Por isso, foi com um misto de decepção e temor que Antonio soube por sua esposa da primeira fraqueza demonstrada por Lionelzinho: o medo de plantas.
Peralá, eu ouvi direito?
Sim, medo de plantas.
Não de cachorro, rato ou qualquer outro animal doméstico que pudesse, com alguma mordida ou arranhão, constituir uma real ameaça a um bebê.
Era o medo inexplicável de plantas que assombrava aquela pequena alma.
Mais especificamente de um buchinho, espécie das mais "fofinhas" dentro do reino vegetal, inofensiva se comparada a um feroz comigo-ninguém-pode, aterrorizantes plantas carnívoras ou mesmo a uma rosa, com seu caule espinhoso.
Com Lionelzinho no colo, Antonio procedeu a uma série de testes "in loco" para saber se aquilo não era delírio da patroa.
E não teve que chegar muito perto do vaso do buchinho para se confirmar o que temia: o bebê virou seu rosto e se encolheu todo junto ao peito de Antonio, abrindo um comovente berreiro de pânico.
No que o pai quase o acompanhou, pois era grande sua tristeza ao ver solapado o orgulho de uma linhagem inteira de homens, acostumados a enfrentar incólumes toda sorte de revezes e ameaças.
Mas momentos de dor também podem ser de clarividência.
Num átimo, Antonio recolheu a lágrima que ameaçava cair, se aprumou e entendeu seu papel de pai.
Ele não colocaria uma pedra sobre aquele assunto.
Não deixaria o medo do seu filho virar fofoca de familia ou motivo de chacota.
Também não confiaria a um psicólogo a solução - psicologia, meu filho, é para os fracos.
Antonio resolveria a seu modo, que foi o modo do seu pai e do seu avô: com as próprias mãos.
Aproximou-se do vaso do buchinho e, segurando a mão do menino, a fez resvalar na planta seguidamente, demonstrando o quão suave era o contato com a natureza.
A cara de choro que já se afigurava imediatamente se desvaneceu, dando lugar a um sorriso epifânico de que só uma criança em sua inocência é capaz.
Lionel afastou os galhos do buchinho como se descortinasse um pequeno portal dentro do seu mundo de faz de conta.
Onde os demônios se revertem em anjos caídos para preparar o final feliz.
Mas o desfecho não encantou mais ao menino do que ao seu pai.
Antonio percebeu que no final não foi a tradição familiar de "educar à mão" quem triunfara.
Foi a própria natureza quem quebrou o galho do pai.
E de quebra, também esfacelou toda a sua rigidez.
Simples assim.
quarta-feira, 17 de setembro de 2014
Ex-burguer
"Gourmet é o a de haute cuisine ou alta cozinha, evocando assim um ideal cultural, associado com as artes culinárias. Assim um vinho ou um restaurante diz-se gourmet quando este é de alta qualidade e está reservado a paladares mais avançados e a experiências gastronômicas mais elaboradas. Por consequência os produtos e ou refeições gourmet são normalmente mais caras que os seus equivalentes não gourmet."
(fonte: Wikipedia)
Sou do tempo em que Gourmet era só uma marca de maionese.
Eram os primórdios do marketing e esse termo em francês ainda não tinha a conotação pseudo-sofisticada de hoje.
A vida também era mais simples e barata.
Se não me engano, "Gourmet" voltou às paradas no recente boom imobiliário, desta vez para adjetivar a enganosa varanda com churrasqueira.
E daí, pegando carona no marketês, passou a designar tudo que dentro da culinária se atribui como sofisticado, restrito e caro.
O cúmulo desse fenômeno se deu quando simples brigadeiro, picolé e hamburguer receberam a alcunha "gourmet".
Meros lanchinhos ganharam status de refeições e preços idem.
Mas a gourmetização não se restringiu à gastronomia - ou baixa gastronomia -, levando essa sofistição - ou frescura mesmo - para outros segmentos do comércio, usando esse artifício para elevar seus preços e aumentar margens de lucro.
Não vou citar exemplos, mas não ficaria surpreso se encontrasse por aí lavanderias premium, engraxates vip ou über salões de barbeiro.
Dizem que isso é um reflexo da mudança dos parâmetros do status, que evoluiu da aquisição do objeto de desejo para o conhecimento profundo sobre esse objeto.
A chamada valorização dos connoisseurs, especialistas em assuntos como vinho, charutos, carros de luxo e agora, até picolé.
Pena que num país como o Brasil isso não contamine setores carentes de connoiseurs, como a educação e a saúde.
Mas os tempos da simplicidade, de quando a gente corria para alcançar os carrinhos de lanche para comer "aquele hamburguer que não sei o que o tio coloca que fica bom pra c.", esses já se foram.
Hoje o bom é arrotar conhecimento sobre esse hamburguer enquanto degusta o lanche com uma qualidade aquém daquele antigo, mas que parece infinitamente melhor pela embalagem e discurso que o acompanham - como acompanhante, até a batata palha perdeu status.
O hamburguer gourmet de hoje é um ex-burguer.
domingo, 14 de setembro de 2014
O caminhão de mudanças
Ele vem correndo, descendo desgovernado pela ladeira, ou melhor, pelo sobe e desce da montanha russa que se transformou sua vida.
Estaciona sorrateiro bem em frente à sua casa e buzina ensurdecedoramente até que você não suporta e atende a porta.
Na verdade, você já estava ali esperando pela sua visita, meio que empacotando tudo aquilo que não servia mais, das roupas velhas aos instrumentos musicais encostados, dos extratos do banco aos velhos planos adiados para o futuro que não veio.
Era só uma questão de tempo para o caminhão chegar, mesmo assim você não se antecipou.
Não fez pequenos carretos para levar parte da tralha embora antes que a casa virasse um depósito abarrotado.
Dentro dela, foi se empihando as frustrações do dia a dia, os planos de estudo no exterior, os amores não realizados, os projetos de autonomia profissional, as viagens sonhadas.
Mas tudo bem.
Há que se dar o desconto de que o mais importante era viver um dia após o outro, como reza os manuais do budismo.
E na contabilidade geral, o saldo foi razoavelmente positivo.
Foram muitas alegrias, pequenos e grandes prazeres, projetos terminados e comemorados.
E se essas vitórias não foram apoteóticas, ao menos tornaram os dias mais suportáveis e alimentaram os sonhos de grandeza como contas de poupança que aos poucos se tornam polpudas.
Hoje é dia de olhar para dentro de casa como quem olha para o corpo por dentro, e repara com melancolia nas goteiras, nas manchas do piso, nos móveis lascados de uma existência comum.
Mas muita calma.
Não estamos aqui acusando nosso zelador interno de omissão diante das obras de reforma que tantas vezes foram socilitadas e ignoradas.
Como Lionel Shriver demonstrou, sempre que nos posicionamos abrimos mão de inúmeras possibilidades, mas nenhuma é superior à outra.
A decoração da nossa casa é só uma das infinitas combinações, mas para a maioria das passagens da vida, o cenário é irrelevante.
Nós só contamos com nosso termômetro interno para medir com quantas camadas de roupa vamos encarar a vida lá fora.
Mas insistimos em ignorá-los, nos deixando levar por ilusões de segurança e compreensão.
Para no final nos sentirmos como cachorros abandonados nas necessárias mudanças da vida.
Estaciona sorrateiro bem em frente à sua casa e buzina ensurdecedoramente até que você não suporta e atende a porta.
Na verdade, você já estava ali esperando pela sua visita, meio que empacotando tudo aquilo que não servia mais, das roupas velhas aos instrumentos musicais encostados, dos extratos do banco aos velhos planos adiados para o futuro que não veio.
Era só uma questão de tempo para o caminhão chegar, mesmo assim você não se antecipou.
Não fez pequenos carretos para levar parte da tralha embora antes que a casa virasse um depósito abarrotado.
Dentro dela, foi se empihando as frustrações do dia a dia, os planos de estudo no exterior, os amores não realizados, os projetos de autonomia profissional, as viagens sonhadas.
Mas tudo bem.
Há que se dar o desconto de que o mais importante era viver um dia após o outro, como reza os manuais do budismo.
E na contabilidade geral, o saldo foi razoavelmente positivo.
Foram muitas alegrias, pequenos e grandes prazeres, projetos terminados e comemorados.
E se essas vitórias não foram apoteóticas, ao menos tornaram os dias mais suportáveis e alimentaram os sonhos de grandeza como contas de poupança que aos poucos se tornam polpudas.
Hoje é dia de olhar para dentro de casa como quem olha para o corpo por dentro, e repara com melancolia nas goteiras, nas manchas do piso, nos móveis lascados de uma existência comum.
Mas muita calma.
Não estamos aqui acusando nosso zelador interno de omissão diante das obras de reforma que tantas vezes foram socilitadas e ignoradas.
Como Lionel Shriver demonstrou, sempre que nos posicionamos abrimos mão de inúmeras possibilidades, mas nenhuma é superior à outra.
A decoração da nossa casa é só uma das infinitas combinações, mas para a maioria das passagens da vida, o cenário é irrelevante.
Nós só contamos com nosso termômetro interno para medir com quantas camadas de roupa vamos encarar a vida lá fora.
Mas insistimos em ignorá-los, nos deixando levar por ilusões de segurança e compreensão.
Para no final nos sentirmos como cachorros abandonados nas necessárias mudanças da vida.
sexta-feira, 5 de setembro de 2014
A modelo de mão
Deus não a havia agraciado com um belo rosto nem uma grande inteligência.
Mas o acaso a brindou com uma graça inesperada para uma humilde empregada doméstica: mãos belíssimas.
Mãos que desafiavam o senso estético, capazes de afundar em impotência criativa um Michelangelo ou outro gênio da reprodução da anatomia humana.
Assim como os modelos de passarela, os de mão também precisam ser descobertos, e no caso de Lourdes isso se daria quando ela assumiu a vaga de faxineira na casa de um fotógrafo publicitário, Jorge.
Assim como um dentista primeiro nota a arcada dentária alheia, para o fotógrafo não foi difícil reparar no potencial daquelas mãos divinas em campanhas impressas, fato que logo comentou com sua esposa e não foi repreendido pela mesma, já que o assunto eram mãos e não uma bela bunda.
Definitivamente não eram mãos para mediarem os duros embates entre a palha de aço e a louça suja, concluiu Jorge.
E logo levou Lourdes para testes em seu estúdio.
Ao apresentar as primeiras fotos para um amigo agenciador, Jorge percebeu que ele mesmo poderia assumir a representatividade de Lourdes no mercado, podendo arrecador bem mais do que como fotógrafo.
Lourdes, em sua ingenuidade de quem não tinha feito nada mais na vida do que organizar a casa dos outros, aceitou de bom grado assinar um contrato para fazerem não sei o que com suas mãos.
E por não saber ler, só assinar seu nome, não pôde ler o detalhe do contrato que seria o calcanhar de aquiles de sua escalada para o sucesso: parar de roer suas unhas.
Óbvio que Jorge já tinha reparado na voracidade com que Lourdes róia seu futuro ganha pão e já alertava para encontrar alguma saída para o vício.
Inclusive marcou uma consulta a uma amiga psicóloga, para que esta detectasse o fundo emocional por trás do apetite de Lourdes por suas unhas.
Mas que nada, aquilo era instinto mais básico, reflexo da fome e carência que ainda subsistia no âmago da retirante nordestina.
Todas as estratégias possíveis foram tentadas, desde amarrar suas mãos, embeber as pontas de seus dedos em pimenta forte, até uma protese de mão foi projetada para mimetizar as mãos de Lourdes enquanto esta assistisse à novela, mas disso nada resultou.
Lourdes continuaria a destruir suas unhas com força descomunal, fazendo um estrago que nenhum programa de retoque daria jeito, de modo que a carreira de Lourdes como modelo de mão malogrou antes mesmo de começar.
Mas esse suposto fracasso seria sentido apenas pelo fotógrafo, que viu esvair pelas suas mãos a chance de fazer fortuna.
Para Lourdes, isso só se confirmava o exagero que se criou em torno de um privilégio que ela não sentia, pois na sua concepção, suas mãos continuavam sendo banais, como as de qualquer outra serviçal.
Então Lourdes ficou feliz de continuar a estragá-las como quisesse no tanque, na pia, à base de muito Veja Multiuso e Bombril, e principalmente, com dentadas famintas no embalo dos excitantes capítulos de sua novela favorita.
Mas o acaso a brindou com uma graça inesperada para uma humilde empregada doméstica: mãos belíssimas.
Mãos que desafiavam o senso estético, capazes de afundar em impotência criativa um Michelangelo ou outro gênio da reprodução da anatomia humana.
Assim como os modelos de passarela, os de mão também precisam ser descobertos, e no caso de Lourdes isso se daria quando ela assumiu a vaga de faxineira na casa de um fotógrafo publicitário, Jorge.
Assim como um dentista primeiro nota a arcada dentária alheia, para o fotógrafo não foi difícil reparar no potencial daquelas mãos divinas em campanhas impressas, fato que logo comentou com sua esposa e não foi repreendido pela mesma, já que o assunto eram mãos e não uma bela bunda.
Definitivamente não eram mãos para mediarem os duros embates entre a palha de aço e a louça suja, concluiu Jorge.
E logo levou Lourdes para testes em seu estúdio.
Ao apresentar as primeiras fotos para um amigo agenciador, Jorge percebeu que ele mesmo poderia assumir a representatividade de Lourdes no mercado, podendo arrecador bem mais do que como fotógrafo.
Lourdes, em sua ingenuidade de quem não tinha feito nada mais na vida do que organizar a casa dos outros, aceitou de bom grado assinar um contrato para fazerem não sei o que com suas mãos.
E por não saber ler, só assinar seu nome, não pôde ler o detalhe do contrato que seria o calcanhar de aquiles de sua escalada para o sucesso: parar de roer suas unhas.
Óbvio que Jorge já tinha reparado na voracidade com que Lourdes róia seu futuro ganha pão e já alertava para encontrar alguma saída para o vício.
Inclusive marcou uma consulta a uma amiga psicóloga, para que esta detectasse o fundo emocional por trás do apetite de Lourdes por suas unhas.
Mas que nada, aquilo era instinto mais básico, reflexo da fome e carência que ainda subsistia no âmago da retirante nordestina.
Todas as estratégias possíveis foram tentadas, desde amarrar suas mãos, embeber as pontas de seus dedos em pimenta forte, até uma protese de mão foi projetada para mimetizar as mãos de Lourdes enquanto esta assistisse à novela, mas disso nada resultou.
Lourdes continuaria a destruir suas unhas com força descomunal, fazendo um estrago que nenhum programa de retoque daria jeito, de modo que a carreira de Lourdes como modelo de mão malogrou antes mesmo de começar.
Mas esse suposto fracasso seria sentido apenas pelo fotógrafo, que viu esvair pelas suas mãos a chance de fazer fortuna.
Para Lourdes, isso só se confirmava o exagero que se criou em torno de um privilégio que ela não sentia, pois na sua concepção, suas mãos continuavam sendo banais, como as de qualquer outra serviçal.
Então Lourdes ficou feliz de continuar a estragá-las como quisesse no tanque, na pia, à base de muito Veja Multiuso e Bombril, e principalmente, com dentadas famintas no embalo dos excitantes capítulos de sua novela favorita.
quinta-feira, 4 de setembro de 2014
O trote silencioso
Madrugada no callcenter do CVV. O telefone toca duas vezes e a voluntária de plantão, que estava cochilando, atende:
- Centro de Valorizacão da Vida, boa noite?
- ...
- Boa noite?
- ...
- Alô? Alô? Alô?
- ...
- Tem alguém na linha?
- ...
- Escuta, você tá de brincadeira? Isso aqui não é a casa da mãe Joana não, viu.
- ...
- O CVV é uma entidade séria, deve ter gente precisando urgente ligar aqui.
- ...
- Chega, vou acabar com essa palhaçada, vou desligar em 3,2,1...
Nisso a voluntária ouve o ruído de quem bate no bocal do telefone:
- TUM-TUM-TUM...
- Ah, tem alguém aí então. Pode falar, sou toda ouvidos.
- TUM-TUM-TUM...
- Por favor, não seja tímido.
- TUM-TUM-TUM.
- Tá bom, tá bom. Vamos combinar o seguinte. Eu faço as perguntas e você bate no bocal uma vez para "SIM" e duas vezes para "NÃO". Combinado?
- TUM.
- Você tá de sacanagem?
- TUM-TUM.
- Você é tímido?
- TUM-TUM.
- Você tem algo confidencial pra falar e tem medo de gravação?
- TUM-TUM.
- Mas você não pode falar.
- TUM.
- Ah...entendi. Você é mudo.
- TUM.
- Está desesperado?
- TUM.
- Ai meu Deus...por favor, amigo, não desligue.
- TUM-TUM-TUM-TUM-TUM...
- Centro de Valorizacão da Vida, boa noite?
- ...
- Boa noite?
- ...
- Alô? Alô? Alô?
- ...
- Tem alguém na linha?
- ...
- Escuta, você tá de brincadeira? Isso aqui não é a casa da mãe Joana não, viu.
- ...
- O CVV é uma entidade séria, deve ter gente precisando urgente ligar aqui.
- ...
- Chega, vou acabar com essa palhaçada, vou desligar em 3,2,1...
Nisso a voluntária ouve o ruído de quem bate no bocal do telefone:
- TUM-TUM-TUM...
- Ah, tem alguém aí então. Pode falar, sou toda ouvidos.
- TUM-TUM-TUM...
- Por favor, não seja tímido.
- TUM-TUM-TUM.
- Tá bom, tá bom. Vamos combinar o seguinte. Eu faço as perguntas e você bate no bocal uma vez para "SIM" e duas vezes para "NÃO". Combinado?
- TUM.
- Você tá de sacanagem?
- TUM-TUM.
- Você é tímido?
- TUM-TUM.
- Você tem algo confidencial pra falar e tem medo de gravação?
- TUM-TUM.
- Mas você não pode falar.
- TUM.
- Ah...entendi. Você é mudo.
- TUM.
- Está desesperado?
- TUM.
- Ai meu Deus...por favor, amigo, não desligue.
- TUM-TUM-TUM-TUM-TUM...
terça-feira, 26 de agosto de 2014
A zen-criminalidade
Não que fosse um psicopata.
Josimar apenas desconhecia situações críticas em sua vida, passava incólume por elas.
Era,por assim dizer, uma pessoa zen.
O que era contraditório com sua função principal, um ladrão.
Acontece que Josimar não se via como tal.
Se auto nomeava um cidadão comum que tinha o furto como seu meio de vida.
Os carros dos outros sendo o escritório móvel onde despachava todos os dias.
Deles roubava apenas o que lhe garantisse as duas refeições principais, mais o café.
O som, o estepe, rodas de liga leve, além dos valores deixados lá dentro por descuido, como um relógio, bolsas caras, material esportivo.
Disso tudo se desfazia rapidamente, pegando alguns trocados de volta.
Mas o sustento não era a única motivação dos seus delitos.
Josimar, como adepto da meditação e esoterismo, adorava quando encontrava objetos dessa, digamos, linha mística dentro dos carros.
Fazia do pára-brisa a vitrine de seu shopping zen, não resistindo à tentação de amuletos, incensos e objetos afins.
Numa dessas incursões, foi flagrado pela dona do carro quando saía portando o objeto do furto: um mat de yoga.
Rendido pela arma da mulher, que era escrevente da polícia, Josimar transpareceu calma ao ser revistado.
Portava apenas um pente e não era de revólver.
Isso acalmou a mulher, que nem sequer o algemou.
Ela sabia que haviam objetos de valor em lugares fáceis do carro, como o porta-luvas, e ao checar que continuavam ali, ficou intrigada pela pouca ambição do meliante.
Verdade que o mat de yoga era precioso para ela, o modelo mais confortável dos que tinha experimentado, pinçado como última peça de uma promoção.
Mas a escrivã nem imaginava que ladrões soubessem o que era um mat, nem tampouco vissem qualquer valor ou função em um.
Portanto, ela mesmo se encarregou de ordenar que Josimar entrasse no banco do passageiro, e a acompanhasse para "averiguações".
- Anda, entra no carro.
Sendo empurrado para dentro, Josimar reclama:
- Sem violência, por favor.
- Cala boca ou te arrebento.
- Por que você está alterada?
A escrivã desfere uma coronhada no topo da cabeça de Josimar, que reclama:
- Ai, ai, que é isso? Você me machucou.
- Falei pra ficar calado.
- Ok, mas sou contra essa violência gratuita.
- Peraí. Você acaba de furtar meu carro e vem me dizer que é contra a violência?
- Não ando armado. E meu teto de violência em delitos é o furto, sem atentar contra a integridade física de ninguém.
- Não pense que com a sua eloquência você vai me convencer de que não é um criminoso, você acabou de arrombar meu carro para levar um mat de yoga!!!
- Vejo que a yoga não está surtindo efeito para você.
- Não me lembro de algum princípio da yoga que defenda o furto.
- Ok, é uma fraqueza minha, que tenho trabalhado em meditação. Tenho compulsão por produtos da linha mística/esotérica.
- Vai ter um tempão na prisão para trabalhar isso.
- Prisão? Pelo mero furto de um mat?
- Furto do carro de uma PO-LI-CI-AL.
- Ah, bom, pensei que você era uma civil brincando de bang-bang. Pelo menos isso.
- Você atentou contra a polícia, agora vai pagar por isso.
- Tem certeza de que não quer negociar? Podemos achar um solução de meio-termo, um caminho do meio de comum acordo.
- Cala a boca, eu não tô aqui pra negociar nada. Você é um criminoso e eu tô te levando pra cadeia.
- Por causa do furto de um mat?
- Sim, senhor.
- Só por curiosidade, que linha você pratica? Hatha, Ashtanga, Swasthya, Ayengar ?
- Hatha.
- Eu também, não acredito em artifícios nem modismo. Sou yoga de raiz.
- Pois é, Hatha é a linha pura, evoca nossa essência em seu âmago, sem intermediários.
- Com certeza, já tive aulas de quase todas essas pseudo-correntes da yoga e nenhuma chegou nem perto dos resultados do Hatha.
- Que resultados? Você é um criminoso.
- Criminoso-zen, com muito orgulho.
- Mas de que adianta pregar o zen e espalhar a violência?
- O que você chama de violência é só minha subsistência. E ao furtar, eu ajudo pessoas a se desvincular da matéria. Por exemplo, quantas pessoas irão repor coisas como CDs, massageador de assento e aquele Garfield com ventosa nas patas, se forem furtadas?
- Bom, nisso você tem razão. Mas no meu caso eu iria ter que repor meu mat e talvez não achasse um tão confortável quanto esse.
- Mudando de assunto, eu vou ser preso mesmo?
- Sim, você foi pego em flagrante.
- Mas eu preciso continuar com a meditação. E tenho dificuldade para meditar no chão frio da cela.
- E eu com isso?
- Posso ficar com o seu mat?
Josimar apenas desconhecia situações críticas em sua vida, passava incólume por elas.
Era,por assim dizer, uma pessoa zen.
O que era contraditório com sua função principal, um ladrão.
Acontece que Josimar não se via como tal.
Se auto nomeava um cidadão comum que tinha o furto como seu meio de vida.
Os carros dos outros sendo o escritório móvel onde despachava todos os dias.
Deles roubava apenas o que lhe garantisse as duas refeições principais, mais o café.
O som, o estepe, rodas de liga leve, além dos valores deixados lá dentro por descuido, como um relógio, bolsas caras, material esportivo.
Disso tudo se desfazia rapidamente, pegando alguns trocados de volta.
Mas o sustento não era a única motivação dos seus delitos.
Josimar, como adepto da meditação e esoterismo, adorava quando encontrava objetos dessa, digamos, linha mística dentro dos carros.
Fazia do pára-brisa a vitrine de seu shopping zen, não resistindo à tentação de amuletos, incensos e objetos afins.
Numa dessas incursões, foi flagrado pela dona do carro quando saía portando o objeto do furto: um mat de yoga.
Rendido pela arma da mulher, que era escrevente da polícia, Josimar transpareceu calma ao ser revistado.
Portava apenas um pente e não era de revólver.
Isso acalmou a mulher, que nem sequer o algemou.
Ela sabia que haviam objetos de valor em lugares fáceis do carro, como o porta-luvas, e ao checar que continuavam ali, ficou intrigada pela pouca ambição do meliante.
Verdade que o mat de yoga era precioso para ela, o modelo mais confortável dos que tinha experimentado, pinçado como última peça de uma promoção.
Mas a escrivã nem imaginava que ladrões soubessem o que era um mat, nem tampouco vissem qualquer valor ou função em um.
Portanto, ela mesmo se encarregou de ordenar que Josimar entrasse no banco do passageiro, e a acompanhasse para "averiguações".
- Anda, entra no carro.
Sendo empurrado para dentro, Josimar reclama:
- Sem violência, por favor.
- Cala boca ou te arrebento.
- Por que você está alterada?
A escrivã desfere uma coronhada no topo da cabeça de Josimar, que reclama:
- Ai, ai, que é isso? Você me machucou.
- Falei pra ficar calado.
- Ok, mas sou contra essa violência gratuita.
- Peraí. Você acaba de furtar meu carro e vem me dizer que é contra a violência?
- Não ando armado. E meu teto de violência em delitos é o furto, sem atentar contra a integridade física de ninguém.
- Não pense que com a sua eloquência você vai me convencer de que não é um criminoso, você acabou de arrombar meu carro para levar um mat de yoga!!!
- Vejo que a yoga não está surtindo efeito para você.
- Não me lembro de algum princípio da yoga que defenda o furto.
- Ok, é uma fraqueza minha, que tenho trabalhado em meditação. Tenho compulsão por produtos da linha mística/esotérica.
- Vai ter um tempão na prisão para trabalhar isso.
- Prisão? Pelo mero furto de um mat?
- Furto do carro de uma PO-LI-CI-AL.
- Ah, bom, pensei que você era uma civil brincando de bang-bang. Pelo menos isso.
- Você atentou contra a polícia, agora vai pagar por isso.
- Tem certeza de que não quer negociar? Podemos achar um solução de meio-termo, um caminho do meio de comum acordo.
- Cala a boca, eu não tô aqui pra negociar nada. Você é um criminoso e eu tô te levando pra cadeia.
- Por causa do furto de um mat?
- Sim, senhor.
- Só por curiosidade, que linha você pratica? Hatha, Ashtanga, Swasthya, Ayengar ?
- Hatha.
- Eu também, não acredito em artifícios nem modismo. Sou yoga de raiz.
- Pois é, Hatha é a linha pura, evoca nossa essência em seu âmago, sem intermediários.
- Com certeza, já tive aulas de quase todas essas pseudo-correntes da yoga e nenhuma chegou nem perto dos resultados do Hatha.
- Que resultados? Você é um criminoso.
- Criminoso-zen, com muito orgulho.
- Mas de que adianta pregar o zen e espalhar a violência?
- O que você chama de violência é só minha subsistência. E ao furtar, eu ajudo pessoas a se desvincular da matéria. Por exemplo, quantas pessoas irão repor coisas como CDs, massageador de assento e aquele Garfield com ventosa nas patas, se forem furtadas?
- Bom, nisso você tem razão. Mas no meu caso eu iria ter que repor meu mat e talvez não achasse um tão confortável quanto esse.
- Mudando de assunto, eu vou ser preso mesmo?
- Sim, você foi pego em flagrante.
- Mas eu preciso continuar com a meditação. E tenho dificuldade para meditar no chão frio da cela.
- E eu com isso?
- Posso ficar com o seu mat?
domingo, 24 de agosto de 2014
O segredo revelado
Joaquim foi a fundo na desconfiança de sua própria sanidade.
Procurou médicos, psiquiatras e até monges para comprovar que não estava imaginando coisas.
De todos recebeu um diagnóstico negativo em qualquer suspeita de demência, esquizofrenia ou a mínima tendência à alucinação.
Portanto estava convencido de que os últimos acontecimentos não provinham de manifestações de um inconsciente liberto.
Inclusive porque não era afeito a nenhum tipo de substância alucinógena. Não fumava e não bebia também, restringindo seus vícios a sexo e uma coleção de baralhos de tarô.
Três situações de tentativa de assassinato acometeram Joaquim nos últimos seis meses, que ele interpretou como premeditadas.
Não entraremos em detalhes sobre como ocorreram.
Preferimos dar ênfase ao que Joaquim suspeita como sua motivação: a descoberta sobre sua ex-namorada, Vanessa, morta em condições muito misteriosas. Mas também não vem ao caso elucidá-las.
O fato é que durante seu relacionamento de 2 anos, Vanessa, que era 25 anos mais jovem que Joaquim, apresentou um comportamento muito semelhante a Ana Maria, ex-mulher do nosso protagonista.
Foram tantas as coincidências, tantas lembranças do antigo relacionamento de Joaquim, que ele começou a desconfiar que as duas eram a mesma pessoa.
A princípio, guardou essas constatações para si mesmo, mas a confluência de similaridades entre as duas mulheres o levou a um estado que beirou a insanidade. Daí a procura por vários especialistas que malograram explicar qualquer coisa.
No dia em que conheceu Vanessa, Joaquim foi involuntariamente atraído pelo mesmo charme de sua ex-esposa: o jeito de andar, de jogar o cabelo, de piscar o olho ao falar.
Foi uma constatação fria e calculista, pois embora sentisse falta de Ana Maria, não estava mais enamorado da ex-mulher a ponto de enxergar tudo isso em seu novo alvo de cobiça.
Em grupos diferentes naquele bar, eles trocaram olhares insinuantes e não foi difícil "marcar um encontro" junto ao balcão, onde se apresentaram e com uma breve amostra de seu poder sedutor, Joaquim logo arrancou risos e o telefone de Vanessa.
A paixão fulminante aflorou logo no primeiro encontro, e um mês depois ele já abria espaço em seu armário para as badulaques dela.
O estranhamento veio com o tempo, quando além de seu comportamento, Vanessa relatou fatos do passado que Joaquim lembrou que observara em sua ex-esposa ou mesmo tinha compartilhado com ela.
A mesma data de aniversário, a mesma cicatriz no ombro por causa de um acidente doméstico, uma temporada no exterior nos mesmos país e cidade, o nome do primeiro cão de estimação, tudo isso e mais uma série de peculiaridades em comum unia aquelas vidas separadas por gerações e que nunca coexistiram.
O que no início deixou Joaquim curioso, aos poucos foi evoluindo para um encantamento, até terminar em franca obsessão.
Não demorou para Joaquim estar convicto de que Ana Maria e Vanessa eram a mesma pessoa.
Reencarnação, coexistênca em dimensões paralelas, para Joaquim não importava como chamariam isso, apenas que ele era testemunha única de um fenômeno natural.
Esteve a ponto de compartilhar o segredo com Ivone, sua ex-sogra afastada de sua convivência.
Mas decidiu guardar para si, pois a senilidade da mulher potencializada por seu envolvimento emocional de nada ajudaria a elucidar o caso. Além do que, envolver testemunhas nesse caso "esotérico" poderia expor sua reputação de renomado pesquisador.
Para Joaquim, ter Vanessa como confidente de sua experiência já supria sua carência de um interlocutor para debater o que lhe acontecia.
Mesmo que a possibilidade de abrigar a alma de outra pessoa passasse ao largo de um temperamento descompromissadamente jovial.
Até que um fato tirou Joaquim e Vanessa de seu "laboratório" para aterrissar em terreno mais sério.
Foi no dia em que Joaquim, andando sozinho pela rua, foi arremessado no meio do asfalto com violência, fazendo um carro frear seco e por um triz não enviando ele para o plano espiritual, onde pelo menos elucidaria o mistério.
Nas suas contas, Joaquim sofreria mais dois "atentados", primeiro num vazamento de gás do aquecedor de sua casa e depois num quase sequestro, onde conseguiu escapar escalando o muro de uma casa.
Estava convencido de que era o castigo por ter descoberto o "segredo da reencarnação de Ana Maria em Vanessa".
E não via como escapar, porque decerto era alvo de gente muito grande, se é que isso se tratava de obra de seres humanos.
Passou a medir seus movimentos, só saindo de casa quando extremamente necessário, se valendo da mobilidade do emprego como free-lancer de jornalista.
Sua facilidade com a escrita também contribuiu para escrever um diário, que considerava seu testamento caso fosse capturado.
Joaquim só não esperava que esse caso fosse elucidado tão rápido, como também foi surpreendente e ao mesmo tempo decepcionante o seu desfecho.
Um dia, ao vasculhar um baú da despensa, na tentativa de achar um antigo álbum de fotografias, Joaquim descobriu uma brochura amarelada entre livros antigos de Ana Maria: seu diário secreto.
O que lhe chamou a atenção de imediato foi um marcador de livro atravessado ao meio, que notou ser recente, pois continha a propaganda de um lançamento editorial deste ano.
O diário estava sendo ou tinha sido lido por alguém, e como as suspeitas recaíam sobre Vanessa, preferiu não removê-lo do lugar onde encontrou, guardando isso para um segundo momento, em que estivesse só em casa.
Num final de semana em que Vanessa partiu sozinha para a casa dos pais, Joaquim pegou alguns acepipes na geladeira e se refestelou com o diário em sua poltrona preferida.
Seria uma longa volta ao passado, sobre a qual sua alma se debruçaria bem mais que um final de semana.
Demoraram poucas páginas para ele comprovar o que já era evidente: Vanessa mimetizava o comportamento de Ana Maria.
Não apenas da rotina do convívio de Ana e Joaquim, mas também todos os aspectos de sua personalidade, visão de mundo, opiniões, suas aflições, esperanças.
Qualquer linha do diário era dissecada para ser reescrita no script da personagem de Vanessa.
Num insight Joaquim percebeu como a festiva Vanessa era tão distante da introspectiva cover de Ana Maria.
Essa discrepância só não tinha levantado maiores suspeitas porque seu relacionamento com a falsa Vanessa não completara ainda seis meses.
Isso explicava porque ele ainda não tinha se enfastiado da moça: Vanessa era Ana Maria, de quem Joaquim ainda guardava uma harmonia de convívio que não encontrara em nenhuma outra mulher, se é que isso não poderia ser chamado de amor.
Ao final de leitura, Joaquim ficou com o sentimento dividido entre a compulsão de desmascarar a farsa e a compaixão pela autora da mesma, o que se explicava também porque não desejava excluir a Vanessa verdadeira de sua vida.
Assim, Joaquim optou por ocultar o diário e fingir sua descoberta.
Vanessa desconfiaria de um sumiço intencional, mas teria tempo de reverter seu erro e incorporar de novo a personalidade inquieta e espevitada que conquistou Joaquim, mas da qual desconfiou que pudesse segurá-lo.
Procurou médicos, psiquiatras e até monges para comprovar que não estava imaginando coisas.
De todos recebeu um diagnóstico negativo em qualquer suspeita de demência, esquizofrenia ou a mínima tendência à alucinação.
Portanto estava convencido de que os últimos acontecimentos não provinham de manifestações de um inconsciente liberto.
Inclusive porque não era afeito a nenhum tipo de substância alucinógena. Não fumava e não bebia também, restringindo seus vícios a sexo e uma coleção de baralhos de tarô.
Três situações de tentativa de assassinato acometeram Joaquim nos últimos seis meses, que ele interpretou como premeditadas.
Não entraremos em detalhes sobre como ocorreram.
Preferimos dar ênfase ao que Joaquim suspeita como sua motivação: a descoberta sobre sua ex-namorada, Vanessa, morta em condições muito misteriosas. Mas também não vem ao caso elucidá-las.
O fato é que durante seu relacionamento de 2 anos, Vanessa, que era 25 anos mais jovem que Joaquim, apresentou um comportamento muito semelhante a Ana Maria, ex-mulher do nosso protagonista.
Foram tantas as coincidências, tantas lembranças do antigo relacionamento de Joaquim, que ele começou a desconfiar que as duas eram a mesma pessoa.
A princípio, guardou essas constatações para si mesmo, mas a confluência de similaridades entre as duas mulheres o levou a um estado que beirou a insanidade. Daí a procura por vários especialistas que malograram explicar qualquer coisa.
No dia em que conheceu Vanessa, Joaquim foi involuntariamente atraído pelo mesmo charme de sua ex-esposa: o jeito de andar, de jogar o cabelo, de piscar o olho ao falar.
Foi uma constatação fria e calculista, pois embora sentisse falta de Ana Maria, não estava mais enamorado da ex-mulher a ponto de enxergar tudo isso em seu novo alvo de cobiça.
Em grupos diferentes naquele bar, eles trocaram olhares insinuantes e não foi difícil "marcar um encontro" junto ao balcão, onde se apresentaram e com uma breve amostra de seu poder sedutor, Joaquim logo arrancou risos e o telefone de Vanessa.
A paixão fulminante aflorou logo no primeiro encontro, e um mês depois ele já abria espaço em seu armário para as badulaques dela.
O estranhamento veio com o tempo, quando além de seu comportamento, Vanessa relatou fatos do passado que Joaquim lembrou que observara em sua ex-esposa ou mesmo tinha compartilhado com ela.
A mesma data de aniversário, a mesma cicatriz no ombro por causa de um acidente doméstico, uma temporada no exterior nos mesmos país e cidade, o nome do primeiro cão de estimação, tudo isso e mais uma série de peculiaridades em comum unia aquelas vidas separadas por gerações e que nunca coexistiram.
O que no início deixou Joaquim curioso, aos poucos foi evoluindo para um encantamento, até terminar em franca obsessão.
Não demorou para Joaquim estar convicto de que Ana Maria e Vanessa eram a mesma pessoa.
Reencarnação, coexistênca em dimensões paralelas, para Joaquim não importava como chamariam isso, apenas que ele era testemunha única de um fenômeno natural.
Esteve a ponto de compartilhar o segredo com Ivone, sua ex-sogra afastada de sua convivência.
Mas decidiu guardar para si, pois a senilidade da mulher potencializada por seu envolvimento emocional de nada ajudaria a elucidar o caso. Além do que, envolver testemunhas nesse caso "esotérico" poderia expor sua reputação de renomado pesquisador.
Para Joaquim, ter Vanessa como confidente de sua experiência já supria sua carência de um interlocutor para debater o que lhe acontecia.
Mesmo que a possibilidade de abrigar a alma de outra pessoa passasse ao largo de um temperamento descompromissadamente jovial.
Até que um fato tirou Joaquim e Vanessa de seu "laboratório" para aterrissar em terreno mais sério.
Foi no dia em que Joaquim, andando sozinho pela rua, foi arremessado no meio do asfalto com violência, fazendo um carro frear seco e por um triz não enviando ele para o plano espiritual, onde pelo menos elucidaria o mistério.
Nas suas contas, Joaquim sofreria mais dois "atentados", primeiro num vazamento de gás do aquecedor de sua casa e depois num quase sequestro, onde conseguiu escapar escalando o muro de uma casa.
Estava convencido de que era o castigo por ter descoberto o "segredo da reencarnação de Ana Maria em Vanessa".
E não via como escapar, porque decerto era alvo de gente muito grande, se é que isso se tratava de obra de seres humanos.
Passou a medir seus movimentos, só saindo de casa quando extremamente necessário, se valendo da mobilidade do emprego como free-lancer de jornalista.
Sua facilidade com a escrita também contribuiu para escrever um diário, que considerava seu testamento caso fosse capturado.
Joaquim só não esperava que esse caso fosse elucidado tão rápido, como também foi surpreendente e ao mesmo tempo decepcionante o seu desfecho.
Um dia, ao vasculhar um baú da despensa, na tentativa de achar um antigo álbum de fotografias, Joaquim descobriu uma brochura amarelada entre livros antigos de Ana Maria: seu diário secreto.
O que lhe chamou a atenção de imediato foi um marcador de livro atravessado ao meio, que notou ser recente, pois continha a propaganda de um lançamento editorial deste ano.
O diário estava sendo ou tinha sido lido por alguém, e como as suspeitas recaíam sobre Vanessa, preferiu não removê-lo do lugar onde encontrou, guardando isso para um segundo momento, em que estivesse só em casa.
Num final de semana em que Vanessa partiu sozinha para a casa dos pais, Joaquim pegou alguns acepipes na geladeira e se refestelou com o diário em sua poltrona preferida.
Seria uma longa volta ao passado, sobre a qual sua alma se debruçaria bem mais que um final de semana.
Demoraram poucas páginas para ele comprovar o que já era evidente: Vanessa mimetizava o comportamento de Ana Maria.
Não apenas da rotina do convívio de Ana e Joaquim, mas também todos os aspectos de sua personalidade, visão de mundo, opiniões, suas aflições, esperanças.
Qualquer linha do diário era dissecada para ser reescrita no script da personagem de Vanessa.
Num insight Joaquim percebeu como a festiva Vanessa era tão distante da introspectiva cover de Ana Maria.
Essa discrepância só não tinha levantado maiores suspeitas porque seu relacionamento com a falsa Vanessa não completara ainda seis meses.
Isso explicava porque ele ainda não tinha se enfastiado da moça: Vanessa era Ana Maria, de quem Joaquim ainda guardava uma harmonia de convívio que não encontrara em nenhuma outra mulher, se é que isso não poderia ser chamado de amor.
Ao final de leitura, Joaquim ficou com o sentimento dividido entre a compulsão de desmascarar a farsa e a compaixão pela autora da mesma, o que se explicava também porque não desejava excluir a Vanessa verdadeira de sua vida.
Assim, Joaquim optou por ocultar o diário e fingir sua descoberta.
Vanessa desconfiaria de um sumiço intencional, mas teria tempo de reverter seu erro e incorporar de novo a personalidade inquieta e espevitada que conquistou Joaquim, mas da qual desconfiou que pudesse segurá-lo.
quarta-feira, 13 de agosto de 2014
O escritor errante
Ernesto tinha consciência de sua falta de talento, mas não via isso como entrave a uma carreira de escritor.
Ainda que as evidências não eram nem um pouco promissoras: contava com alguns artigos publicados em jornalecos de bairro, um blogue jogado às moscas e uma carreira medianamente sucedida de publicitário.
Sua esperança provinha da crença de que os modelos não nascem prontos e valia a pena lapidar sua vocação às custas de horas debruçadas sobre o pobre material de sua vida, já que ao se dedicar tanto à escrita se esquecia de sua fonte primordial, as experiências.
Não obstante Ernesto ainda não vislumbrasse uma nesga de sucesso, algo que comprovasse sua premonição de se tornar um grande escritor, era agradecido ao que tinha alcançado na arte de ordenar letras.
Mas já contava 30 anos de estrada, por isso quando aquele material jornalístico chegara em suas mãos, reagiu com o sentimento misto entre euforia e medo.
Há tempos um amigo, um ex-policial afastado da narcóticos, investigava o caso do assassinato de uma bela garota de classe média baixa, executada por um traficante.
A narcóticos arquivara o caso, já que recebera a cota da milícia para abafá-lo, por conta de um graúdo "cala-boca" enviado pelos comparsas do traficante.
Mas o ex-policial infiltrado na favela conseguira as provas por intermédio de um bandidinho alcaguete.
E antes que ambos fossem parar no "microondas", o material do ex-policial lhe foi entregue num encontro arquitetado pelo próprio.
O ex-policial ouvira falar de Ernesto por um amigo em comum, e este último promoveu um encontro às escuras entre os dois, para selarem um pacto de publicação do material caso pegassem o investigador.
Não se passaram dois meses para que a "autorização" chegasse.
Ernesto já falara em segredo com uns 5 editores, que recusaram pela alta periculosidade do material, uma bomba-relógio para todos os possíveis envolvidos.
A história traria à tona mortes de inocentes, policiais e jovens, tudo na conta do traficante, que até então, por uma postura low profile e nem um pouco midiática, reinava incólume no pequeno morro de sua sede.
O traficante, conhecido por Tio Leo, ignorava a existência dessas provas, e a princípio Ernesto não corria risco de vida.
O dilema em que se encontrava, entre a glória póstuma e a mediocridade perene, angustiava Ernesto já há algum tempo.
Ernesto tinha tempo para se decidir, mas sabia que o potencial de seu livro era proporcional ao ineditismo de sua denúncia.
Temia ser furado por algum veículo, pois seu material já circulara por vários editores, alguns sabidamente inescrupulosos.
Mas uma ligação telefônica foi o suficiente para transmutar seu temor em euforia, o contato de um editor obscuro, porém em sintonia com sua concepção da obra que enfim começava a germinar.
Marcou um encontro com Steve, era esse seu codinome, num boteco perto da casa daquele.
Ao entrar no recinto teve dificuldades para identificar seu interlocutor, cuja voz grave sugeria uma figura amendrotadora, desmentida com um sujeito mignon de constituição frágil, dessas reversões de expectativa típicas dos filmes.
O papo foi franco e rápido, ficando acertado que caberia 60% dos lucros ao editor, que iria bancar toda a produção e divulgação do livro.
Ernesto teria 40 dias para revisar todo o material, deixando uma versão em inglês engatilhada, já que o editor apostava nesse título para livrá-lo do prejuízo acumulado em 3 anos de publicações malsucedidas.
Quando o material começou a rodar na gráfica, um galpão clandestino alugado por Steve para resguardar o sigilo, Ernesto passou a frequentar o local diariamente, como se fosse a sala de espera da maternidade.
Era com orgulho de progenitor que via as páginas sendo paridas das rotativas, atividade que tomava boas horas de seu dia, divididas entre reuniões com Steve e sua costumeira ronda noturna na Praça Roosevelt.
Pois foi com o sentimento de uma mãe abortada que Ernesto um belo dia se deparou com o galpão totalmente vazio, nenhum sinal de que aquilo abrigara uma gráfica improvisada.
A essa reação estupefata se somou a traição de Steve, descoberta quando este surgiu ao lado de Tio Leo, revelando que negociara seu projeto de best-seller com o meliante por um preço mais compensador.
Ernesto foi colocado de joelhos e, apesar de sua execução instantânea, ainda conseguiu ouvir o estampido do tiro que penetrou seu crânio sem resistência.
Tiro que seria seguido por uma saraivada que mergulhou o malandro Steve em sua própria piscina de sangue.
Os dois corpos foram encontrados alguns dias depois, e jamais se chegou nem perto de revelar a razão de seu aniquilamento.
Ainda que as evidências não eram nem um pouco promissoras: contava com alguns artigos publicados em jornalecos de bairro, um blogue jogado às moscas e uma carreira medianamente sucedida de publicitário.
Sua esperança provinha da crença de que os modelos não nascem prontos e valia a pena lapidar sua vocação às custas de horas debruçadas sobre o pobre material de sua vida, já que ao se dedicar tanto à escrita se esquecia de sua fonte primordial, as experiências.
Não obstante Ernesto ainda não vislumbrasse uma nesga de sucesso, algo que comprovasse sua premonição de se tornar um grande escritor, era agradecido ao que tinha alcançado na arte de ordenar letras.
Mas já contava 30 anos de estrada, por isso quando aquele material jornalístico chegara em suas mãos, reagiu com o sentimento misto entre euforia e medo.
Há tempos um amigo, um ex-policial afastado da narcóticos, investigava o caso do assassinato de uma bela garota de classe média baixa, executada por um traficante.
A narcóticos arquivara o caso, já que recebera a cota da milícia para abafá-lo, por conta de um graúdo "cala-boca" enviado pelos comparsas do traficante.
Mas o ex-policial infiltrado na favela conseguira as provas por intermédio de um bandidinho alcaguete.
E antes que ambos fossem parar no "microondas", o material do ex-policial lhe foi entregue num encontro arquitetado pelo próprio.
O ex-policial ouvira falar de Ernesto por um amigo em comum, e este último promoveu um encontro às escuras entre os dois, para selarem um pacto de publicação do material caso pegassem o investigador.
Não se passaram dois meses para que a "autorização" chegasse.
Ernesto já falara em segredo com uns 5 editores, que recusaram pela alta periculosidade do material, uma bomba-relógio para todos os possíveis envolvidos.
A história traria à tona mortes de inocentes, policiais e jovens, tudo na conta do traficante, que até então, por uma postura low profile e nem um pouco midiática, reinava incólume no pequeno morro de sua sede.
O traficante, conhecido por Tio Leo, ignorava a existência dessas provas, e a princípio Ernesto não corria risco de vida.
O dilema em que se encontrava, entre a glória póstuma e a mediocridade perene, angustiava Ernesto já há algum tempo.
Ernesto tinha tempo para se decidir, mas sabia que o potencial de seu livro era proporcional ao ineditismo de sua denúncia.
Temia ser furado por algum veículo, pois seu material já circulara por vários editores, alguns sabidamente inescrupulosos.
Mas uma ligação telefônica foi o suficiente para transmutar seu temor em euforia, o contato de um editor obscuro, porém em sintonia com sua concepção da obra que enfim começava a germinar.
Marcou um encontro com Steve, era esse seu codinome, num boteco perto da casa daquele.
Ao entrar no recinto teve dificuldades para identificar seu interlocutor, cuja voz grave sugeria uma figura amendrotadora, desmentida com um sujeito mignon de constituição frágil, dessas reversões de expectativa típicas dos filmes.
O papo foi franco e rápido, ficando acertado que caberia 60% dos lucros ao editor, que iria bancar toda a produção e divulgação do livro.
Ernesto teria 40 dias para revisar todo o material, deixando uma versão em inglês engatilhada, já que o editor apostava nesse título para livrá-lo do prejuízo acumulado em 3 anos de publicações malsucedidas.
Quando o material começou a rodar na gráfica, um galpão clandestino alugado por Steve para resguardar o sigilo, Ernesto passou a frequentar o local diariamente, como se fosse a sala de espera da maternidade.
Era com orgulho de progenitor que via as páginas sendo paridas das rotativas, atividade que tomava boas horas de seu dia, divididas entre reuniões com Steve e sua costumeira ronda noturna na Praça Roosevelt.
Pois foi com o sentimento de uma mãe abortada que Ernesto um belo dia se deparou com o galpão totalmente vazio, nenhum sinal de que aquilo abrigara uma gráfica improvisada.
A essa reação estupefata se somou a traição de Steve, descoberta quando este surgiu ao lado de Tio Leo, revelando que negociara seu projeto de best-seller com o meliante por um preço mais compensador.
Ernesto foi colocado de joelhos e, apesar de sua execução instantânea, ainda conseguiu ouvir o estampido do tiro que penetrou seu crânio sem resistência.
Tiro que seria seguido por uma saraivada que mergulhou o malandro Steve em sua própria piscina de sangue.
Os dois corpos foram encontrados alguns dias depois, e jamais se chegou nem perto de revelar a razão de seu aniquilamento.
terça-feira, 5 de agosto de 2014
Amores relâmpagos
O que motiva as pessoas a assistir e gostar de melodramas é o fato desse gênero preencher o seu vazio existencial com requintes de horário nobre.
Olavo se encaixava a esse perfil, sua rotina casa-trabalho-padaria-casa reservava o período entre 9 e 10 da noite para exibições maçantes de seu folhetim preferido, a que ele acompanhava com seu cérebro no "automático".
Não era casado, não tinha filhos, nem constava em seu currículo uma paixão tórrida que pudesse um dia relatar em algum romance açucarado de banca de jornal.
Era, por assim dizer, um cidadão-mediano-espectador-do-SBT, sem grandes vitórias ou derrotas, nem grandes aspirações futuras além do bilhar com os amigos na noite de sexta-feira.
Para pessoas com essa folha corrida, é de se presumir que o inesperado possa causar danos psíquicos ou no mínimo reações instintivas de desenlace imprevisível.
Era o que se imaginaria de Olavo quando este encostou o carro na mesma cabine do Banco 24 Horas, nas 19h05 da sexta-feira, antes do excitante embate que travaria com Pingo, Duarte e Queixada sobre o feltro verde da mesa de bilhar.
A abordagem ensaiada de duas assaltantes na casa dos 20 anos - bem apessoadas, na visão de esguelha de Olavo - que o obrigou a servir de motorista de seu próprio carro durante as horas que durou o sequestro, poderia ter sido o ponto de inflexão negativo de sua vida.
Ao contrário, foi o momento mais agradavelmente memorável de sua árida existência.
Como coadjuvante de clichê masculino, em êxtase Olavo se deixou dominar pelas vontades de suas "donas".
Cada novo saque era um considerável desfalque em suas minguadas economias, mas o que deveria deprimir em Olavo tinha efeito excitante.
E nem ele sabia de onde vinha essa situação.
Decerto do misto de sentimentos que uma arma apontada para si e a intimidade inédita com duas gatas poderiam provocar num tipo como ele.
Lá pelas tantas, já saciadas e com seus bolsos cheios, as assaltantes deram abertura ao tímido Olavo:
- Ô, rapaz, o gato comeu sua língua?
- ...
- Pode falar, ninguém aqui vai te machucar.
- É, fez tudo direitinho. Qual o seu nome?
- O-Olavo.
- Olavo? Nome mais coxinha.
- Haha, verdade.
- Ei, rapaz, ia fazer o que hoje à noite?
- Sinuca.
- Que? Sinuca numa sexta à noite?
- Maluco...
- A gente tem uma proposta melhor pra você.
- Hã?
- Isso mesmo. Um programa muito melhor que esse seu aí da sinuca.
- Quer ir pra uma festinha da pesada?
- Festa? M-mas...
- Lá no Morro da Cocada. É do Brito, o dono da boca.
- Fica tranquilo, a gente faz a sua segurança. Simbora?
- Vamos lá.
A resposta veemente da até então hesitante vítima surpreendeu as duas garotas, que deram de ombros e começaram a indicar o caminho para Olavo.
Entrar no barraco da festa foi para Olavo como transpor um portal psicológico. Um ritual de transição para uma vida até então na desfrutada e que começava mostrar suas garras.
Claro que Olavo sentiu medo com os olhares de todos aqueles bandidos, de quem se poderia esperar qualquer reação.
Mas com o aval de Brito, que simpatizou imediatamente com Olavo, aquele clima pesado se desanuviou completamente.
Olavo estava em extase, aceitou todas as drogas que lhe ofereceram e inebriado por elas embarcou num delírio que poderia classificar de onírico, se algum tivesse sonhado com tamanha intensidade.
Como um lapso de memória antecipado, Olavo se viu nu na cama com suas duas ex-algozes, protagonizante cenas entrecortadas de um videoclip erótico psicodélico.
A avalanche de sensações até então virgens foi tamanha, que ao despertar em sua cama, ainda que com as mesmas roupas do dia anterior e o perfume adocicado das garotas, Olavo não conseguiu distinguir fantasia de realidade, atribuindo à primeira o que tinha vivido ou imaginado.
Consultou seu saldo bancário e, verificando que estava de fato alguns milhares de reais mais pobre, ainda assim não conseguiu concluir a veracidade do que tinha vivido.
O certo é que Olavo não era sombra do dia anterior, e teve certeza disso quando entrou na sala do chefe e sem nem dizer bom dia, pediu suas contas.
Nem pegou suas coisas.
Sabia que 23 anos de vida de contador seriam uma pífia experiência diante do mínimo que o destino lhe prometia daqui para a frente.
O que lhe garantia isso era o dia anterior, seja vivido ou imaginado.
Olavo se encaixava a esse perfil, sua rotina casa-trabalho-padaria-casa reservava o período entre 9 e 10 da noite para exibições maçantes de seu folhetim preferido, a que ele acompanhava com seu cérebro no "automático".
Não era casado, não tinha filhos, nem constava em seu currículo uma paixão tórrida que pudesse um dia relatar em algum romance açucarado de banca de jornal.
Era, por assim dizer, um cidadão-mediano-espectador-do-SBT, sem grandes vitórias ou derrotas, nem grandes aspirações futuras além do bilhar com os amigos na noite de sexta-feira.
Para pessoas com essa folha corrida, é de se presumir que o inesperado possa causar danos psíquicos ou no mínimo reações instintivas de desenlace imprevisível.
Era o que se imaginaria de Olavo quando este encostou o carro na mesma cabine do Banco 24 Horas, nas 19h05 da sexta-feira, antes do excitante embate que travaria com Pingo, Duarte e Queixada sobre o feltro verde da mesa de bilhar.
A abordagem ensaiada de duas assaltantes na casa dos 20 anos - bem apessoadas, na visão de esguelha de Olavo - que o obrigou a servir de motorista de seu próprio carro durante as horas que durou o sequestro, poderia ter sido o ponto de inflexão negativo de sua vida.
Ao contrário, foi o momento mais agradavelmente memorável de sua árida existência.
Como coadjuvante de clichê masculino, em êxtase Olavo se deixou dominar pelas vontades de suas "donas".
Cada novo saque era um considerável desfalque em suas minguadas economias, mas o que deveria deprimir em Olavo tinha efeito excitante.
E nem ele sabia de onde vinha essa situação.
Decerto do misto de sentimentos que uma arma apontada para si e a intimidade inédita com duas gatas poderiam provocar num tipo como ele.
Lá pelas tantas, já saciadas e com seus bolsos cheios, as assaltantes deram abertura ao tímido Olavo:
- Ô, rapaz, o gato comeu sua língua?
- ...
- Pode falar, ninguém aqui vai te machucar.
- É, fez tudo direitinho. Qual o seu nome?
- O-Olavo.
- Olavo? Nome mais coxinha.
- Haha, verdade.
- Ei, rapaz, ia fazer o que hoje à noite?
- Sinuca.
- Que? Sinuca numa sexta à noite?
- Maluco...
- A gente tem uma proposta melhor pra você.
- Hã?
- Isso mesmo. Um programa muito melhor que esse seu aí da sinuca.
- Quer ir pra uma festinha da pesada?
- Festa? M-mas...
- Lá no Morro da Cocada. É do Brito, o dono da boca.
- Fica tranquilo, a gente faz a sua segurança. Simbora?
- Vamos lá.
A resposta veemente da até então hesitante vítima surpreendeu as duas garotas, que deram de ombros e começaram a indicar o caminho para Olavo.
Entrar no barraco da festa foi para Olavo como transpor um portal psicológico. Um ritual de transição para uma vida até então na desfrutada e que começava mostrar suas garras.
Claro que Olavo sentiu medo com os olhares de todos aqueles bandidos, de quem se poderia esperar qualquer reação.
Mas com o aval de Brito, que simpatizou imediatamente com Olavo, aquele clima pesado se desanuviou completamente.
Olavo estava em extase, aceitou todas as drogas que lhe ofereceram e inebriado por elas embarcou num delírio que poderia classificar de onírico, se algum tivesse sonhado com tamanha intensidade.
Como um lapso de memória antecipado, Olavo se viu nu na cama com suas duas ex-algozes, protagonizante cenas entrecortadas de um videoclip erótico psicodélico.
A avalanche de sensações até então virgens foi tamanha, que ao despertar em sua cama, ainda que com as mesmas roupas do dia anterior e o perfume adocicado das garotas, Olavo não conseguiu distinguir fantasia de realidade, atribuindo à primeira o que tinha vivido ou imaginado.
Consultou seu saldo bancário e, verificando que estava de fato alguns milhares de reais mais pobre, ainda assim não conseguiu concluir a veracidade do que tinha vivido.
O certo é que Olavo não era sombra do dia anterior, e teve certeza disso quando entrou na sala do chefe e sem nem dizer bom dia, pediu suas contas.
Nem pegou suas coisas.
Sabia que 23 anos de vida de contador seriam uma pífia experiência diante do mínimo que o destino lhe prometia daqui para a frente.
O que lhe garantia isso era o dia anterior, seja vivido ou imaginado.
quarta-feira, 30 de julho de 2014
O anjo da guarda suicida
Como dizem por aí, a vida nos reserva imprevistos.
Mas quando Heitor saiu pela janela do escritório e se equilibrou no parapeito da do 15º andar da fachada, era como se tivesse colocado suas funções motoras no automático.
Seguia apenas a última página de um script mórbido há muito pensado, mas escrito de improviso na última meia hora.
Nesse intervalo de tempo, Heitor foi da esperança ao desespero ao ouvir sua ex-mulher ao telefone.
Da esperança do "oi, tudo bem?" ao desespero do "conheci o grande amor da minha vida".
Mas, peraí, não era assim que ela o chamava há 9 anos, quando eles se conheceram?
No entanto, a frivolidade da alcunha "grande amor da minha vida" não era o que mais incomodava.
O que o incomodava era não se incomodar com isso.
Não havia desintoxicação para o vício de amar incondicionalmente Alice.
Era uma droga tão forte essa mulher, que se houvesse clínica de reabilitação para ela, demoraria uma vida para receber alta.
Por isso ele estava ali, dando passinhos cuidadosos sobre o parapeito, para o lado e de costas para a parede , procurando o melhor local para o salto da morte.
Mas eis que encontra uma janela aberta pelo caminho e presencia uma cena tão bizarra quanto a de quem o visse no contraplano: uma executiva solitária, sentada à sua mesa, brincando de roleta-russa.
A princípio ele imaginou mesmo uma brincadeira, mas sua expectativa foi revertida quando a mulher levantou os olhos contra o espelho, e neles Heitor viu o mesmo tom de desamor que se acostumou a identificar nos seus.
Seu instinto de sobrevivência, que há pouco o havia abandonado, alojou-se de novo em seu corpo para dar o primeiro passo para dentro do apartamento da mulher, que a fez sobressaltar num grito abafado:
- Ai!!
- Calma, eu sou quero ajudar, só ajudar.
Mulher aponta a arma para Heitor:
- Sai, sai daqui!!
- Calma, eu vi o que você estava tentando fazer, quero ajudar.
- É um assalto? Ah, não, foi ELE né? Mandou me matar, é isso?
- Quem é ELE?
- Larga a arma!!
- Mas eu não tenho arma, olha (levantando e tirando de dentro da casa) Não sei quem é você e não conheço ELE, seja quem for.
- Quem é você? O que fazia lá fora?
- Olha, é difícil explicar, mas se você abaixar a arma, eu posso...
A mulher abaixa a arma e se acalma.
- Meu nome é Heitor, trabalho num escritório de advocacia desse prédio. Queria te pedir desculpa pela forma como eu invadi sua privacidade.
- Você quase me matou do coração, isso sim.
- Bom, é que eu imaginei que você...
- Que eu ia me matar? Ah, sim, tava ensaiando. Mas a arma está descarregada. Agora que você não é mais uma ameaça, posso te contar.
- Desculpe, achei que era tudo verdade e quis impedir essa besteira.
- Tá, tá desculpado. Só não fica invadindo apartamento por aí porque é perigoso. Pra pessoa e pra você.
- Não vou fazer mais isso.
- Você não me parece um limpador de vidraças. Tava fazendo o que lá fora?
- Pois é, (disfarçando) o dia tava tão bonito...
- Ah, sem piadinhas, desembucha logo.
- Hã?
- Cara, também tô passando por isso.
- Isso o que?
- Teu momento difícil, pô. Acha que não saquei?
- O que?
- Olha pra mim! Eu sei o que é uma dor de cotovelo!!! Não viu que eu estava ensaiando me livrar dela com um tiro?
Só tô avaliando se é suficiente.
- O que é suficiente?
- Tirar minha própria vida. Não sei se vai machucá-lo como eu preciso. E pra você, é suficiente?
- Não pensei em vingança, estou viciado nela e essa crise de abstinência tá me matando. Droga.
- Paixão das bravas?
- Amor da minha vida. Mas a cagada foi minha.
- A sempre diz que é a nossa cagada. Mas essa é a desculpa que damos para o imponderável. A gente tem que entender que um dia o outro desencana, é só isso.
- Não, eu fui muito negligente, ela tava pedindo socorro faz muito tempo.
- Homem, o comodista de sempre, né? Os homens sempre merecem o que lhe acontecem, mas não acho que seja o seu caso. Assim, olhando de fora.
- É uma longa história, não sei se quero te contar isso agora.
- Bom, agora que você me impediu de me matar, temos tempo.
- Você não ia se matar, a arma nem tava carregada.
- Você também não.
- Como você pode saber?
- Ora, no primeiro pretexto você desistiu, né?
- Não desisti ainda, a janela tá ali, aberta.
- Então se joga, ué?
- Você quer que eu me jogue?
- Ah, pára, vai. Não vem com essa.
- Pode ser que você não fosse só um pretexto.
- Olha só, do suicídio à cantada em questão de minutos. Sua terapeuta ficaria orgulhosa.
- Nunca fiz terapia na vida. Acho um desperdício de tempo e dinheiro.
- Bom, mas voltemos à cantada. Como é que eu estava com uma arma na cabeça? Sexy?
- Pô, eu desisti de me matar pra te salvar e você fica de brincadeira?
- Eu já te falei, você não ia se matar.
- Como pode ter tanta certeza?
- Eu sei o que é se tentar se matar.
- Só porque faz roleta russa com a arma descarregada?
- Não, olha aqui.
Ela mostra os pulsos com cicatrizes de corte.
- Tá vendo, isso sim é a morte à sua espreita.
- Quando foi isso?
- Há uns 6 anos.
- Dor de cotovelo?
- Não,foi o maior amor da minha vida.
- Quem era ele?
- Tinha 10 anos.
- Nossa... sinto muito.
- Uma vida ceifada por um carro desgovernado, um filho da puta de um motorista bêbado.
- ...
- Eu sei o que significa a expressão "ferida que não fecha". É exatamente esse o sentimento.
- Então o cara era só um pretexto.
- Nem isso. Se eu me decidisse me matar, era pra me juntar de novo ao meu bebê. Nenhum cretino mereceria isso de mim.
- Entendo.
- Então, quer falar sobre você e ela?
- Não, não quero.
- Pode falar, a minha tristeza não desmerece a sua.
- Não, a minha tristeza não faz sombra à sua. Independente disso, eu não quero falar do meu problema.
- Eu também não quero falar do meu. Falemos de que, então?
- Por hoje é só, eu já vou indo.
Heitor já passava uma perna pela janela, quando ela o interrompe.
- Ei, ei, aonde você vai?
- Voltar ao meu escritório.
- Tá louco? Use a porta.
- Só se você me prometer que toma uma cerveja comigo?
- Aí fora? Nem pensar.
- Não, to falando do Neco's. Atravessando a rua.
- Tá, então volta.
- Ok.
Heitor desce da janela e volta para dentro do apartamento. Ele abre a porta para ela e os dois saem, fechando a porta atrás deles.
FIM
Mas quando Heitor saiu pela janela do escritório e se equilibrou no parapeito da do 15º andar da fachada, era como se tivesse colocado suas funções motoras no automático.
Seguia apenas a última página de um script mórbido há muito pensado, mas escrito de improviso na última meia hora.
Nesse intervalo de tempo, Heitor foi da esperança ao desespero ao ouvir sua ex-mulher ao telefone.
Da esperança do "oi, tudo bem?" ao desespero do "conheci o grande amor da minha vida".
Mas, peraí, não era assim que ela o chamava há 9 anos, quando eles se conheceram?
No entanto, a frivolidade da alcunha "grande amor da minha vida" não era o que mais incomodava.
O que o incomodava era não se incomodar com isso.
Não havia desintoxicação para o vício de amar incondicionalmente Alice.
Era uma droga tão forte essa mulher, que se houvesse clínica de reabilitação para ela, demoraria uma vida para receber alta.
Por isso ele estava ali, dando passinhos cuidadosos sobre o parapeito, para o lado e de costas para a parede , procurando o melhor local para o salto da morte.
Mas eis que encontra uma janela aberta pelo caminho e presencia uma cena tão bizarra quanto a de quem o visse no contraplano: uma executiva solitária, sentada à sua mesa, brincando de roleta-russa.
A princípio ele imaginou mesmo uma brincadeira, mas sua expectativa foi revertida quando a mulher levantou os olhos contra o espelho, e neles Heitor viu o mesmo tom de desamor que se acostumou a identificar nos seus.
Seu instinto de sobrevivência, que há pouco o havia abandonado, alojou-se de novo em seu corpo para dar o primeiro passo para dentro do apartamento da mulher, que a fez sobressaltar num grito abafado:
- Ai!!
- Calma, eu sou quero ajudar, só ajudar.
Mulher aponta a arma para Heitor:
- Sai, sai daqui!!
- Calma, eu vi o que você estava tentando fazer, quero ajudar.
- É um assalto? Ah, não, foi ELE né? Mandou me matar, é isso?
- Quem é ELE?
- Larga a arma!!
- Mas eu não tenho arma, olha (levantando e tirando de dentro da casa) Não sei quem é você e não conheço ELE, seja quem for.
- Quem é você? O que fazia lá fora?
- Olha, é difícil explicar, mas se você abaixar a arma, eu posso...
A mulher abaixa a arma e se acalma.
- Meu nome é Heitor, trabalho num escritório de advocacia desse prédio. Queria te pedir desculpa pela forma como eu invadi sua privacidade.
- Você quase me matou do coração, isso sim.
- Bom, é que eu imaginei que você...
- Que eu ia me matar? Ah, sim, tava ensaiando. Mas a arma está descarregada. Agora que você não é mais uma ameaça, posso te contar.
- Desculpe, achei que era tudo verdade e quis impedir essa besteira.
- Tá, tá desculpado. Só não fica invadindo apartamento por aí porque é perigoso. Pra pessoa e pra você.
- Não vou fazer mais isso.
- Você não me parece um limpador de vidraças. Tava fazendo o que lá fora?
- Pois é, (disfarçando) o dia tava tão bonito...
- Ah, sem piadinhas, desembucha logo.
- Hã?
- Cara, também tô passando por isso.
- Isso o que?
- Teu momento difícil, pô. Acha que não saquei?
- O que?
- Olha pra mim! Eu sei o que é uma dor de cotovelo!!! Não viu que eu estava ensaiando me livrar dela com um tiro?
Só tô avaliando se é suficiente.
- O que é suficiente?
- Tirar minha própria vida. Não sei se vai machucá-lo como eu preciso. E pra você, é suficiente?
- Não pensei em vingança, estou viciado nela e essa crise de abstinência tá me matando. Droga.
- Paixão das bravas?
- Amor da minha vida. Mas a cagada foi minha.
- A sempre diz que é a nossa cagada. Mas essa é a desculpa que damos para o imponderável. A gente tem que entender que um dia o outro desencana, é só isso.
- Não, eu fui muito negligente, ela tava pedindo socorro faz muito tempo.
- Homem, o comodista de sempre, né? Os homens sempre merecem o que lhe acontecem, mas não acho que seja o seu caso. Assim, olhando de fora.
- É uma longa história, não sei se quero te contar isso agora.
- Bom, agora que você me impediu de me matar, temos tempo.
- Você não ia se matar, a arma nem tava carregada.
- Você também não.
- Como você pode saber?
- Ora, no primeiro pretexto você desistiu, né?
- Não desisti ainda, a janela tá ali, aberta.
- Então se joga, ué?
- Você quer que eu me jogue?
- Ah, pára, vai. Não vem com essa.
- Pode ser que você não fosse só um pretexto.
- Olha só, do suicídio à cantada em questão de minutos. Sua terapeuta ficaria orgulhosa.
- Nunca fiz terapia na vida. Acho um desperdício de tempo e dinheiro.
- Bom, mas voltemos à cantada. Como é que eu estava com uma arma na cabeça? Sexy?
- Pô, eu desisti de me matar pra te salvar e você fica de brincadeira?
- Eu já te falei, você não ia se matar.
- Como pode ter tanta certeza?
- Eu sei o que é se tentar se matar.
- Só porque faz roleta russa com a arma descarregada?
- Não, olha aqui.
Ela mostra os pulsos com cicatrizes de corte.
- Tá vendo, isso sim é a morte à sua espreita.
- Quando foi isso?
- Há uns 6 anos.
- Dor de cotovelo?
- Não,foi o maior amor da minha vida.
- Quem era ele?
- Tinha 10 anos.
- Nossa... sinto muito.
- Uma vida ceifada por um carro desgovernado, um filho da puta de um motorista bêbado.
- ...
- Eu sei o que significa a expressão "ferida que não fecha". É exatamente esse o sentimento.
- Então o cara era só um pretexto.
- Nem isso. Se eu me decidisse me matar, era pra me juntar de novo ao meu bebê. Nenhum cretino mereceria isso de mim.
- Entendo.
- Então, quer falar sobre você e ela?
- Não, não quero.
- Pode falar, a minha tristeza não desmerece a sua.
- Não, a minha tristeza não faz sombra à sua. Independente disso, eu não quero falar do meu problema.
- Eu também não quero falar do meu. Falemos de que, então?
- Por hoje é só, eu já vou indo.
Heitor já passava uma perna pela janela, quando ela o interrompe.
- Ei, ei, aonde você vai?
- Voltar ao meu escritório.
- Tá louco? Use a porta.
- Só se você me prometer que toma uma cerveja comigo?
- Aí fora? Nem pensar.
- Não, to falando do Neco's. Atravessando a rua.
- Tá, então volta.
- Ok.
Heitor desce da janela e volta para dentro do apartamento. Ele abre a porta para ela e os dois saem, fechando a porta atrás deles.
FIM
segunda-feira, 21 de julho de 2014
Carta a um velho escritor
Já reparou que todas as pessoas com, digamos, um pouco mais da meia-idade, se parecem?
Não me refiro ao proliferar de cabelos brancos e rugas, ou aos primeiros dentes falsos alugando seus espaços na boca.
É do temperamento que falo.
Existe um lugar comum entre pessoas de uma certa faixa etária, compreendida entre o final da juventude e o começo da velhice.
Esse lugar é o do desalento pelo fim dos anos dourados e o porvir das dificuldades físicas.
É quando sentimos que o terreno fértil de sonhos de antes se torna relutante em brotar novas idéias.
Tudo passa a ter um gostinho de releitura de vida, de flashback de filme obscuro.
A verdade é que se fica mais exigente, fica mais difícil encontrar algo que faça jus ao surrado termo reinvenção.
Com a idade, algumas características de personalidade como auto-crítica e inflexibilidade, tomam um caminho irreversível de crescimento.
É necessário um esforço de auto-ilusão para se continuar ambicioso.
Além de alcançar uma alta auto-estima, capaz de fazer a pessoa se apaixonar de novo por si mesma, por esse novo ser que é uma soma dos seus novos projetos.
Então, que tipo de personalidade seria capaz de fazer jus à expressão "a vida começa aos 40?".
Seria aquele tipo otimista por natureza, desde que se conhece por gente?
É bem provável, porque se na meia-idade se inicia a decrepitude física, e nessa se inclui a atrofia da confiança, então somente alguém capaz de encontrar dentro de si o elixir da juventude poderia empreender uma mudança drástica de trajetória.
Chamar de crise de meia-idade me parece uma simplificação.
Não se trata apenas do desalento com os seus fracassos, mas também com o enfado com a mecanização da vida.
Você quer se apaixonar por uma projeção em alta definição de si mesmo, encarar sua verdade de peito aberto e sair de cara lavada na tela da vida.
Isso é mais do que lutar pela sobrevivência.
É querer se agarrar desesperadamente à ponta do cipó que o destino faz passar na sua cara, sem saber quantas chances ainda se oferecerão.
Não é uma promessa do sucesso que não se alcançou.
É a possibilidade de um êxito pessoal onde você é o principal membro da comissão julgadora, o único capaz de dar a chancela pela qual se esperou a vida inteira.
Por isso quero escrever e dirigir.
Não é uma homenagem à vida.
É só coerência comigo.
Não me refiro ao proliferar de cabelos brancos e rugas, ou aos primeiros dentes falsos alugando seus espaços na boca.
É do temperamento que falo.
Existe um lugar comum entre pessoas de uma certa faixa etária, compreendida entre o final da juventude e o começo da velhice.
Esse lugar é o do desalento pelo fim dos anos dourados e o porvir das dificuldades físicas.
É quando sentimos que o terreno fértil de sonhos de antes se torna relutante em brotar novas idéias.
Tudo passa a ter um gostinho de releitura de vida, de flashback de filme obscuro.
A verdade é que se fica mais exigente, fica mais difícil encontrar algo que faça jus ao surrado termo reinvenção.
Com a idade, algumas características de personalidade como auto-crítica e inflexibilidade, tomam um caminho irreversível de crescimento.
É necessário um esforço de auto-ilusão para se continuar ambicioso.
Além de alcançar uma alta auto-estima, capaz de fazer a pessoa se apaixonar de novo por si mesma, por esse novo ser que é uma soma dos seus novos projetos.
Então, que tipo de personalidade seria capaz de fazer jus à expressão "a vida começa aos 40?".
Seria aquele tipo otimista por natureza, desde que se conhece por gente?
É bem provável, porque se na meia-idade se inicia a decrepitude física, e nessa se inclui a atrofia da confiança, então somente alguém capaz de encontrar dentro de si o elixir da juventude poderia empreender uma mudança drástica de trajetória.
Chamar de crise de meia-idade me parece uma simplificação.
Não se trata apenas do desalento com os seus fracassos, mas também com o enfado com a mecanização da vida.
Você quer se apaixonar por uma projeção em alta definição de si mesmo, encarar sua verdade de peito aberto e sair de cara lavada na tela da vida.
Isso é mais do que lutar pela sobrevivência.
É querer se agarrar desesperadamente à ponta do cipó que o destino faz passar na sua cara, sem saber quantas chances ainda se oferecerão.
Não é uma promessa do sucesso que não se alcançou.
É a possibilidade de um êxito pessoal onde você é o principal membro da comissão julgadora, o único capaz de dar a chancela pela qual se esperou a vida inteira.
Por isso quero escrever e dirigir.
Não é uma homenagem à vida.
É só coerência comigo.
sexta-feira, 4 de julho de 2014
O michê da terceira idade
Jurandir saiu da Câmara dos Deputados exultante.
Seu projeto de lei, que estabelece aposentadoria para michês, tinha passado em primeira instância.
Pela primeira vez na vida ele se sentia útil.
Não que achasse inglório vender sexo, do contrário não estaria lutando pelos direitos de uma categoria que não tinha regulamentação, muito menos carteirinha do INSS.
Justamente lutar pelos direitos de alguém em sua condição, isso era inédito.
Até então, sua baixa auto-estima o impedira até de muitas vezes se defender fisicamente.
Agora, como autor de um projeto de lei polêmico, que suscitou um acalorado debate envolvendo setores conservadores e liberais da sociedade, Jurandir precisava impedir que sua vaidade vulnerável tirasse o foco de seu objetivo.
Por anos ele sofreu batendo ponto na boca do lixo, atendendo a clientes de todos os tipos, desde adolescentes virgens a abastados chefes de família não assumidos.
Seu sonho era ser primeiro bailarino do municipal, ideal que perseguiu até ser enganado por um ex-bailarino sodomita, que tinha um cargo burocrático no teatro e se passou por caça-talentos para atraí-lo e violentá-lo.
Até esse episódio, suas experiências homosexuais tinham se resumido a uns "amassos" com amiguinhos de infância, cuja memória fora prontamente reprimida por uma educação que beirava a militar.
Mas embora sua iniciação no mundo gay tivesse beirado ao trauma, ao menos Jurandir se livrou do peso da vida falsa, e mesmo sobrevivendo de prostituição, acabou se encontrando.
Os dias - ou melhor, as noites - trabalhando nos arredores do Trianon lhe rendiam, além da sobrevivência, um punhado de amizades e a carteirinha de sócio de um mundo que aos olhos dos outros era bizarro, mas aos seus, bastante aprazível.
Naquelas poucas quadras que circundavam o parque, Jurandir se sentia apenas mais um, um camelô sexual de seu próprio corpo, livre para negociar seu produto como bem queria.
No seu auge podia escolher os clientes, e tinha preferência pelos mais jovens, sarados e endinheirado, que podiam proporcionar um pouco de conforto nas poucas horas juntos.
Já mais tarde, no crepúsculo da carreira, não podia mais se dar ao luxo de escolher clientes, quando não implorava a algum jovem mais requisitado para fazerem programas em dupla e dividirem o cachê artístico.
Foi nessa fase que ele começou a pensar em sua retirada.
Não queria acabar como muitos michês que não souberam fazer a transição para a derradeira etapa da vida, e acabaram ficando por ali mesmo, agora na mendicância.
Resolvou comprar a briga dos michês, se tornar um porta-voz não de uma profissão não regulamentada, mas de um ser humano invisível.
Afinal qual posição ocupa numa sociedade preconceituosa o homosexual prostituto?
O de duplo enjeitado, no mínimo.
Esse preconceito o repugnava ainda mais do que ele ao mais radical membro da TFP.
Mas não via a aprovação de sua lei como uma vingança, um revide de um tapa na cara.
No máximo uma vaidade, pois antes de tudo Jurandir era um pragmático.
Queria garantir o seu próprio leitinho, o da criança que ele ainda se julgava aos 62 anos.
Talvez posar de herói até para seus inimigos do Trianon, reação compreensível naquela fauna bizarra.
Por tantos motivos, não era de se esperar outra reação de Jurandir senão acompanhar a última votação do projeto de Lei no auditório do Senado, acompanhado dos amigos do Trianon e militantes de uma penca de entidades LGBT.
Foi quando os ecos da vitória se fizeram ouvir em todo o Planalto e vimos Jurandir sendo carregado em triunfo para fora do templo do poder, que vimos o quão efêmeros podem ser os sonhos.
Uma dúzia de Skin Heads, mais próximos de seus genéricos baratos, se atiraram contra o grupo que carregava Jurandir em êxtase, tombando e afundando seu líder em uma poça de sangue escuro, um adorno à arquitetura do Senado que Niemeyer não criaria nem em seus mais terrível pesadelo.
Jurandir foi carregado novamente pelos seus pares, agora como o mártir de um gueto, o gueto dentro do maior gueto de todos, um amontoado chamado Brasil.
Seu projeto de lei, que estabelece aposentadoria para michês, tinha passado em primeira instância.
Pela primeira vez na vida ele se sentia útil.
Não que achasse inglório vender sexo, do contrário não estaria lutando pelos direitos de uma categoria que não tinha regulamentação, muito menos carteirinha do INSS.
Justamente lutar pelos direitos de alguém em sua condição, isso era inédito.
Até então, sua baixa auto-estima o impedira até de muitas vezes se defender fisicamente.
Agora, como autor de um projeto de lei polêmico, que suscitou um acalorado debate envolvendo setores conservadores e liberais da sociedade, Jurandir precisava impedir que sua vaidade vulnerável tirasse o foco de seu objetivo.
Por anos ele sofreu batendo ponto na boca do lixo, atendendo a clientes de todos os tipos, desde adolescentes virgens a abastados chefes de família não assumidos.
Seu sonho era ser primeiro bailarino do municipal, ideal que perseguiu até ser enganado por um ex-bailarino sodomita, que tinha um cargo burocrático no teatro e se passou por caça-talentos para atraí-lo e violentá-lo.
Até esse episódio, suas experiências homosexuais tinham se resumido a uns "amassos" com amiguinhos de infância, cuja memória fora prontamente reprimida por uma educação que beirava a militar.
Mas embora sua iniciação no mundo gay tivesse beirado ao trauma, ao menos Jurandir se livrou do peso da vida falsa, e mesmo sobrevivendo de prostituição, acabou se encontrando.
Os dias - ou melhor, as noites - trabalhando nos arredores do Trianon lhe rendiam, além da sobrevivência, um punhado de amizades e a carteirinha de sócio de um mundo que aos olhos dos outros era bizarro, mas aos seus, bastante aprazível.
Naquelas poucas quadras que circundavam o parque, Jurandir se sentia apenas mais um, um camelô sexual de seu próprio corpo, livre para negociar seu produto como bem queria.
No seu auge podia escolher os clientes, e tinha preferência pelos mais jovens, sarados e endinheirado, que podiam proporcionar um pouco de conforto nas poucas horas juntos.
Já mais tarde, no crepúsculo da carreira, não podia mais se dar ao luxo de escolher clientes, quando não implorava a algum jovem mais requisitado para fazerem programas em dupla e dividirem o cachê artístico.
Foi nessa fase que ele começou a pensar em sua retirada.
Não queria acabar como muitos michês que não souberam fazer a transição para a derradeira etapa da vida, e acabaram ficando por ali mesmo, agora na mendicância.
Resolvou comprar a briga dos michês, se tornar um porta-voz não de uma profissão não regulamentada, mas de um ser humano invisível.
Afinal qual posição ocupa numa sociedade preconceituosa o homosexual prostituto?
O de duplo enjeitado, no mínimo.
Esse preconceito o repugnava ainda mais do que ele ao mais radical membro da TFP.
Mas não via a aprovação de sua lei como uma vingança, um revide de um tapa na cara.
No máximo uma vaidade, pois antes de tudo Jurandir era um pragmático.
Queria garantir o seu próprio leitinho, o da criança que ele ainda se julgava aos 62 anos.
Talvez posar de herói até para seus inimigos do Trianon, reação compreensível naquela fauna bizarra.
Por tantos motivos, não era de se esperar outra reação de Jurandir senão acompanhar a última votação do projeto de Lei no auditório do Senado, acompanhado dos amigos do Trianon e militantes de uma penca de entidades LGBT.
Foi quando os ecos da vitória se fizeram ouvir em todo o Planalto e vimos Jurandir sendo carregado em triunfo para fora do templo do poder, que vimos o quão efêmeros podem ser os sonhos.
Uma dúzia de Skin Heads, mais próximos de seus genéricos baratos, se atiraram contra o grupo que carregava Jurandir em êxtase, tombando e afundando seu líder em uma poça de sangue escuro, um adorno à arquitetura do Senado que Niemeyer não criaria nem em seus mais terrível pesadelo.
Jurandir foi carregado novamente pelos seus pares, agora como o mártir de um gueto, o gueto dentro do maior gueto de todos, um amontoado chamado Brasil.
sábado, 21 de junho de 2014
Manicômio da vida normal, introdução
Era uma vez um lugar muito normal de se viver, o manicômio da vida normal.
Um microcosmo habitado por uma elite homogênea, abastada, com comportamentos e ideais de vida muito próximos.
Com uma opção política única, onde um único partido revezava seus comandantes, o manicômio da vida normal evitava contestações da ordem vigente, se concentrando apenas no consumo como objetivo comum.
O consumo de bens era uma finalidade em si, já que não visava distinguir um habitante mais abastado do outro: todos tinham mais do que o suficiente.
Uma bela mansão no alto de morros à beira-mar, jatinho e iate particulares, o que se convencionou chamar de alto luxo em sociedades anteriores, no manicômio não passava da normalidade, da condição enfadonha de quem já realizou todos os desejos.
Ainda que o mistério e horror maior da vida, a morte, ainda perdurasse, era amenizado por uma expectativa de vida de 500 anos, tempo mais do que suficiente para o apaziguamento dos conflitos internos.
Todas as crianças eram educadas no mais alto padrão, com todos os recursos tecnológicos disponíveis, além de versadas em pelo menos 5 línguas.
Mesmo atingindo o mais alto grau de proficiência, no final todos eram muito bem empregados, muitos nas empresas das próprias famílias. Isso quando não optavam por não fazer nada ou se dedicar às artes e aos esportes.
O dia-a-dia era quase todo ocupado com diversão e prazeres, onde alimentos, bebidas, sexo e drogas eram fartos, e consumidos à exaustão.
O que antigamente era considerado um sonho de vida, no manicômio da vida normal era o comum, a rotina, a mesmice. Porque os ideais neoliberais já haviam sido atingidos e as desigualdades e males sociais extirpados.
Portanto o que restava era curtir o legado dos antepassados que tudo fizeram para que seus descendentes pudessem gozar desse mundo perfeito, asséptico, onde vidas eram antecipadamente planejadas e nada saía fora do script.
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