Jeferson, Jef para os mais chegados, era um rapaz de ótimo vigor físico.
Tanto por sua genética como por um corpo moldado pela prática dos mais diversos esportes ao longo de uma vida inteira.
Mas à sua fortaleza aparente contrastava uma série de intolerâncias alimentares.
Não podia chegar perto de laticínios, ovos, morango, camarão, amendoim, pãozinho francês, etc,etc,etc.
Alguns amigos mais rechonchudos até atribuíam a boa forma de Jef, que já era um coroa sarado de "40 e uns" segundo o próprio, a essa frescura alimentar que o mantinha longe de tudo que era bom de comer.
Mas Jef de fato tinha intolerância a esses alimentos, pois sempre que era desafiado a encarar o medo, acabava sucumbindo e parando no pronto socorro, ou no mínimo em algum banheiro público.
Talvez por colocar tanta ênfase em seu físico e pouco dedicar às questões do espírito, ele não percebeu que suas intolerâncias tiveram início em eventos emocionalmente difíceis.
Quando da primeira vez que ficou de castigo aos 4 anos de idade, por exemplo, ele tinha comido o sanduíche de sua irmã, daí seu trauma ao pão francês.
Ou o primeiro fora de namorada aos 14, quando acabou engasgando com um pedaço de torta de morango ao ouvir o fatídico clichê "a gente precisa conversar".
Em outro ocasião que envolveu um coquetel de camarões, Jef foi avisado da morte de seu pai em plena temporada de férias no Caribe, e imediatamente correu para aliviar sua angústia no mar, devolvendo os camarões à sua casa.
Já sua ojeriza ao amendoim, como não podia deixar de ser, começou numa final de campeonato onde seu time levou uma virada histórica, levando 5 gols em sequência depois de estar vencendo por 4.
Claro que as intolerâncias incomodavam, mas não eram limitadoras ao ponto de fazer Jef se sentir restrito, mal-aventurado, castigado.
Até o dia em que Jef começou a sentir algo se revolvendo em seu estômago, um incômodo constante que não teve como gatilho nenhum tipo de alimento.
Um sintoma inexplicável que nenhum dos 10 médicos consultados conseguiu diagnosticar, onde ele sentia ânsia mas não vomitava, sofria cólicas mas não defecava, enfim, era um paciente não-doente.
Claro que acabou num consultório psicanalítico, onde Jef começou uma epopéia investigativa, apalpando sua própria alma em busca de seus nódulos emocionais.
Como dedicado atleta que era, encarou esse trabalho como se aprendesse, com dedicação extrema até fazer o cérebro decorar os novos movimentos.
Assim Jef foi perscrutando a si mesmo, entendendo não apenas seus problemas com alimentos, mas fazendo uma descoberta primordial: a maneira como ele deixava que a vida e os outros invadissem seu íntimo, suas prioridades, e contraditoriamente não apresentasse nenhuma intolerância a esse abuso.
Recobrou em sua memória os momentos decisivos em que fez concessões inaceitáveis aos outros, às circunstâncias, a uma necessidade besta de sentir seguro.
Se revoltou ao rever sua imagem passiva, abaixando a cabeça, anuindo passivamente e se agredindo com patadas em sua auto-estima.
Depois de meses de treinamento - preferia esse termo a tratamento - Jef abandonou o consultório mesmo sem receber alta.
Na verdade tinha recebido alta.
Tinha intolerância a regras.
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