quarta-feira, 1 de junho de 2016

Profissão mendigo

Em 40 anos de carreira bem sucedida, a qual havia declinado apenas nos últimos anos, ele tinha feito um belo pé de meia.
O suficiente para que pudesse manter as aparências quando o baque da demissão veio, ocultando dos familiares e amigos sua condição de desempregado.
Por orgulho, para manter o status, ele jamais contou nada em casa.
Todo dia cumpria o ritual de acordar cedo, vestir seu terno e todo o aparato de sua farsa, inclusive crachá da empresa, trabalho levado pra casa - um calhamaço já todo amarrotado - e sua indefctível e brega capanga, hábito herdado do pai.
Cumpria todo o protocolo falso de se aprontar para o trabalho, mas de fato ia para seu novo "emprego": uma "vaga" de mendigo no centrão da cidade.
O ex- alto executivo já vinha cultivando uma vida mais simples, bem abaixo de seu padrão, como um treino para o dia em que não pudesse mais encher sua adega e as malas de volta de Miami.
Quando enfim ele recebeu o ultimato de sua carreira, colocou em prática o plano de levar uma vida estóica, porém de maneira radical, exercendo uma mendicância legítima, com direito a vestir trapos, mal comer e conhecer a humilhação da recusa dos pedidos de esmola.
Tomou gosto pela coisa.
A vida do lado de fora dos escritórios, ainda que no ambiente inóspito do centrão degradado, era muito mais adequado ao seu temperamento.
Era como se tivesse saído de 40 anos de internamento auto-imposto, anestesiado por uma rotina de reuniões, gráficos, cumprimento de metas e promessas de bônus anuais.
Lhe agradava muito mais o ambiente caótico do vai-e-vem dos transeuntes apressados, da gritaria dos camelôs, dos vendedores de bilhetes de loteria.
Conheceu o bom e o ruim das ruas, e percebeu que o pré-julgamento de quem observava de longe, por trás do olhar blindado da vida abastada, era mais que equivocado.
No chão de fábrica da vida havia efervescência, transparência, decência.
Estranhos logo se tornavam confidentes perante a opressão da dificuldade.
O ex- executivo descobriu o verdadeiro significado da amizade e solidariedade, conhecendo figuras das mais excêntricas.
Intelectuais, expatriados, filhos de lares degradados, os mais estranhos tipos não eram estranhos à indumentária de mendigo.
Estranhos eram os outros.
Os que disfarçavam sua condição humana precária por trás de ternos caros, restaurantes da moda e um protocolo de poses e sorrisos premeditados.
Mesmo a frustração de não revelar sua identidade verdadeira para seus novos companheiros de "trabalho", não diminuía a legitimidade da experiência do ex executivo.
Nunca as horas de expediente foram tão prazerosas e passaram tão rápido.
Era com pesar que ele deixava seu posto ao final do dia, alegando preferir dormir em um albergue, motivo de galhofa por parte dos outros mendigos.
Literalmente juntava seus trapos, se trocava num banheiro público e, refeito em seu terninho de terceira, tomava o caminho de sua antiga e desbotada vida.
Essa sim, misereavel.

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